As Peças do Jogo

Capítulo 1 e 2 – O Roubo e o Acordo

As Peças do Jogo

Texto: Carolina Bivard

Revisão: Isie Lobo e Nefer

Ilustração: Táttah Nascimento

  • Modificações foram feitas na ilustração para se adequar ao padrão de tamanho do site, eximindo a ilustradora de qualquer distorção da imagem.

Capítulo 1 – O roubo.

Vária corria, como louca, sobre a terra vermelha e árida da vasta da planície de Treider. Queria chegar, rápido, ao labirinto de caminhos das rochosas, que a esconderiam de seus perseguidores. Labirintos que eram tão conhecidos por ela.  Desviava de pedras e se embrenhava, cada vez mais, pela passagem, sem se molestar em dar um único olhar para trás.  Não poderia vacilar. Não poderia se preocupar em demasia, com quem a perseguia para não ser apanhada nas garras de seu próprio descuido.

Conhecia a “Cidade do Princípio” como a palma da mão. Trabalhara ali durante anos, desde que sua mãe adquirira uma doença, que não era conhecida por ninguém. Sua mãe fora a cozinheira do “Grande Alcaide Trevor” da “Cidade do Princípio” e quando ficou doente, fora descartada como pó, que se varre das pedras encardidas do chão.

Aprendeu a “arte das ruas” com seu pai. Um mandrião que na sua lábia, fez apaixonar uma mulher virtuosa, levando-a a se entregar às promessas vazias de sua patifaria. Respeitava seu pai? Não. Não o respeitava. Somente deu a ele o crédito da sabedoria que precisava aprender para sustentar sua mãe, bondosa e de alma pura e, agora entrevada em uma cama bolorenta, numa casa humilde, de um bairro tosco e esquecido pelas autoridades locais.

Roubou o alcaide Trevor durante anos, para dar à sua mãe algo mais confortável e nunca havia sido pega. Entrara na sala de tesouros sem ser vista, pois ela era mais uma empregada invisível do palácio. Mas nesse dia, um alarme soou. Estendera sua mão para pegar uma coleção de peças de um jogo de tabuleiro, lapidadas em pedras preciosas. Fora o seu maior erro. Nunca havia pegado algo de tanto valor. Sempre fora discreta roubando coisas da sala de tesouro, de aparência simples. Nunca algo que demonstrasse visível monta de importância.

A ganância, que a levara ao infortúnio, tinha um motivo. Sua mãe precisava ser levada a Telmov. Vária teve notícias de uma bruxa-curandeira naquela cidade que com sua magia, conseguia desviar a morte dos passos de qualquer ser vivente; mas esta mulher era ambiciosa. Nunca o fazia por bondade. Sempre mediante alto pagamento.

Finalmente, chegou ao labirinto de rochosas e precipitou pelas veredas que a esconderia de seus algozes. Esgueirou-se e se espremeu nas arestas das pedras das inúmeras trilhas de arenito. Eles nem chegaram a passar pelo caminho estreito onde ela se escondeu. A noite caiu, o dia nasceu e novamente a noite vinha encobrir-lhe os passos, que agora Vária se atrevia a andar. A boca seca e o sorriso nos lábios que se permitiu esboçar, embora ainda apreensiva.

Vária sabia que não poderia comercializar na cidade o que trazia no alforje. Como faria? Correu para casa, ainda tomando cuidado. Sabia que não haviam visto quem ela era, pois cobrira a cabeça com um pano, que também escondia seu rosto, deixando apenas os olhos livres. Havia trocado as roupas com que trabalhava por vestes masculinas. A bata larga presa por dentro das calças, igualmente folgadas, não dariam a nitidez das curvas de seu corpo de mulher.

Entrou apressada na pequena habitação, emaranhada no beco escuro, onde tantas outras casas mal-ajambradas eram dispostas.

– Mãe!

– Vária, onde esteve?

– Fiquei presa na “Cidade do Princípio”. O alcaide fez uma festa e tive que permanecer no trabalho. Não consegui avisar. Trouxe um pouco de pão. Telamir veio cuidar da senhora?

– Ela esteve aqui comigo nestes dois dias, mas ainda pouco teve que ir para casa. Mesmo que você pague, o marido dela reclama do tempo que ela dispensa a mim.

– Aquele lá, é um vagabundo. Se ela não tivesse o dinheiro que lhe dou, ele também não teria a bebida e as mulheres que arruma na taberna. Ele, certamente, queria que ela lhe arrumasse algum dinheiro.

– Não fale assim, Vária. Telamir não merece ouvir isso.

– Não falo nada para ela, mãe. Só a senhora sabe de meus pensamentos.

Vária justificou. Sabia que a mãe não gostava que falasse da vida alheia e não queria contrariá-la. Viu as necessidades da mãe, observando que ela estava bem cuidada por sua vizinha. Telamir era uma boa mulher e, a seu ver, não merecia o traste do marido que tinha. Ela havia deixado a casa limpa e as tinas abastecidas com água colhida no poço da praça. Vária tirou a roupa, lavou-se com um pano umedecido em uma das tinas e colocou vestes limpas, para poder deitar no pequeno catre, que ficava ao lado da cama da mãe. Estava com fome e tinha dinheiro para comprar comida, mas não sairia àquela hora, temendo ser abordada pelos guardas reais ou por rufiões que circulavam pela noite, naquele bairro imundo. Aguentaria até a manhã do dia seguinte. Uma noite a mais ou a menos, não faria diferença para a sua fome.

Levantou-se cedo, pois o estômago vazio não a deixara dormir por mais horas além do alvorecer. Trocou suas vestes para ir até a praça, onde as barracas dos comerciantes se alocavam amontoadas, disputando os fregueses que se aproximavam. Quando passava por uma ruela para alcançar a praça, Vária foi abordada por dois homens malcheirosos. Ela percebeu logo o seu vacilo, ao optar pelo caminho mais curto para chegar à praça do comércio, àquela hora. Um deles trazia uma faca na mão, segurando-a firme em direção a ela, enquanto o outro segurava o cabo de seu sabre, guardado na bainha.

– Ora, ora, se não é a mulher que trabalha para o alcaide e acha que todos aqui da vizinhança são escórias.

Vária olhou mais atentamente o homem à sua frente e o reconheceu. Ele vivia bêbado e sempre que ela passava pela taberna, ele a abordava. Ela se desvencilhava com facilidade, pois todos ali a conheciam e a maioria a respeitava por saberem quem era a sua mãe e por ter crescido naquele lugar. Mas este homem não. Sempre que podia, a segurava pelo braço, avançando a mão em seu sexo. Ela nunca o deteve violentamente para não provocar uma briga. Apenas se soltava do gesto agressivo, sem retrucar, e continuava o caminho.

Vária sabia que se entrasse em uma briga, poderia ser pega pelos guardas e a vida da mãe se complicaria sem ela. Por esse motivo, nunca reagiu e sempre que pôde, usava calças e camisas, em vez de túnicas ou batas femininas, para não despertar esse tipo de luxúria por parte dos arruaceiros e bandidos da vizinhança. Mas esse homem…. Esse homem não a deixava em paz!

 Não sabia por que ele implicava com ela; no entanto, desta vez, ela se encontrava sozinha em um beco com ele a ameaçando e, ainda por cima, levara um amigo para ajudá-lo. Não havia mais como fugir do confronto. Olhou-o diretamente, mas não sem antes dar uma boa olhada ao redor, para ver as possibilidades de escapar.

– Ora, ora, se não é o bêbado imundo que só consegue uma mulher se pagar, ou se tiver que forçá-la…

Deu uma gargalhada cínica, provocando a ira do homem à sua frente. O sorriso sarcástico que ele trazia nos lábios se desfez e os olhos se transformaram em puro ódio. Vária provocara o homem intencionalmente para que ele se descompensasse e funcionou. Ele desembainhou o sabre partindo para cima dela, sendo acompanhado por seu comparsa de delito. Vária pulou agarrando um mastro, que se encontrava acima de sua cabeça, preso no alto do portal de uma casa. Encolheu as pernas, deixando os dois passarem por baixo dela, em velocidade. Soltou-se e quando seus pés tocaram o chão, virou-se se colocando em posição de defesa imediatamente.

Mais uma vez o homem urrou de ódio, partindo para cima dela, em fúria, com o sabre empunhado no alto. Vária não pensou duas vezes. Queria terminar a refrega logo e dar um fim, de uma vez por todas, a este homem nojento e mau-caráter. Sacou suas adagas presas em seus tornozelos, atirou em direção aos dois. Ambos caíram a seus pés em agonia. Ela viu a vida se esvair, sem remorso, através do líquido rubro que vertia e era sugado pela terra arenosa daquela viela. Esperou paciente, os últimos ofegos saírem da boca de cada um, para só então retirar as adagas de seus corações. Seu pai fizera um bom serviço quando a treinara. Ela nunca errava a mira.

Reposicionou os corpos, um de frente para o outro. Atravessou o sabre de um dos homens no coração do outro, deixando a mão no punho da arma. Pegou o punhal do segundo homem e colocou exatamente no corte que seu punhal havia feito no coração do outro. Dessa forma, pareceria que a briga havia ocorrido entre os dois e que eles tiveram o acaso de se matarem. Ninguém se incomodaria muito em investigar as mortes. As autoridades nunca se importavam com as pessoas assassinadas naquele local. Agradeceu mentalmente aos deuses por ninguém passar por ali ou que alguém estivesse acordado àquela hora. Tomou cuidado para não se sujar de sangue. Estava com muita fome e ainda teria que comprar os mantimentos nas barracas do comércio. Caminhou apressadamente para sair rápido daquela estreita e suja rua e alcançar o seu destino.

Comprou leite, frutas, alguns legumes e cereais, um naco de carne seca e por fim, verduras. Não podia gastar muito dinheiro, mas sua mãe estava há muitos dias comendo pão e um ralo caldo de favas. Ela não poderia se enfraquecer. A doença se apoderava, cada vez mais, do corpo débil.

Uma mulher se aproximou da barraca em que Vária escolhia as verduras.

– As verduras não estão frescas. – Falou para si, suspirando. – Vou viajar esta semana para Telmov e a minha empregada não poderá ir comigo. – Novamente suspirou. – Senhor! – Dirigiu-se ao verdureiro. – Conhece alguém de confiança que trabalhe como empregada e tenha disponibilidade para viagens?

Vária, ao escutar que a mulher viajaria para Telmov, ficou atenta à sua conversa e logo se prontificou.

– Eu estou precisando trabalhar e tenho disponibilidade, senhora. Meu nome é Vária e sou daqui da cidade. – Estendeu a mão para a mulher, cumprimentando-a.

A mulher a olhou, reparando em suas vestes de corte masculino e em seus modos. Espremeu ligeiramente os olhos, porém logo depois sorriu, lhe estendendo também a mão para cumprimentar a estranha mulher.

– O meu é Amarylis. Moro às margens do rio, ao sul da cidade. Se me acompanhar, poderei lhe mostrar a propriedade e conversaremos sobre suas habilidades e seus afazeres.

Vária se sentiu motivada, mas havia saído antes de sua mãe acordar. Não queria deixa-la sozinha por muito tempo. Hesitou. A mulher percebeu seu desconforto.

– Algum problema? Se quiser, deixamos para depois…

Ao escutar as palavras, Vária logo esclareceu, com receio de que a mulher mudasse de ideia.

– Não é que… Bem, deixei minha mãe sozinha e ela está doente. Tenho que falar com uma vizinha para ficar com ela, caso ela necessite de alguma coisa.

– Onde você mora?

O desconforto estampou novamente o rosto de Vária. Seu bairro tinha a pior fama da cidade. Lugar de ladrões, prostitutas, trapaceiros e todo tipo de gente execrada da sociedade que se misturavam às pessoas de bem, no entanto pobres.

– Aqui perto. Nas cercanias…

Olhou na direção de seu bairro, sendo acompanhada pelo olhar atento da mulher.

– Mmm… Entendo. Então eu lhe acompanho, você fala com a sua vizinha, – apontou a mão de Vária que carregava mantimentos – toma seu desjejum e, aproveito, para conhecer o local onde minha futura acompanhante mora. Desculpe-me, mas se quiser o emprego terá que ser desta forma. Gosto de conhecer quem trabalha para mim.

Um silêncio se fez, momentaneamente, entre as mulheres. Vária avaliou a condição que a outra lhe impôs. Se ela não a levasse, não teria o emprego e não poderia mais retornar à “Cidade do Princípio”, depois do que fez. Mesmo que o alcaide não soubesse quem havia lhe roubado, seria muito arriscado. Também não poderia contar com o dinheiro da venda das peças, pois não sabia como e nem quando conseguiria negociar, além de ser o pagamento da bruxa-curandeira.

— Pode me acompanhar, sim. Perdoe meu embaraço, mas é que moro num bairro pobre e, certamente, não é um bairro para os olhos de uma senhora distinta contemplar.

Virou-se, dando passagem para a mulher caminhar à sua frente, como ditavam as normas, já que ela seria sua patroa. Todavia, Amarylis se pôs a andar a seu lado, deixando Vária, mais uma vez, desconcertada. Parecia que a mulher de perfume delicado, andar gracioso e vestes dignas de uma comerciante de posses, não se importava com as convenções sociais. Vária não pôde deixar de reparar na beleza de sua companhia. O cabelo longo, castanho, em conjunto com a pele morena, contrastava com os olhos incrivelmente verdes. O véu branco, que pendia displicente sobre a cabeça, emoldurava-lhe o rosto de talhe doce e, ao mesmo tempo, de expressões firmes.

— Não acredite em tudo que seus olhos veem. – Falou Amarylis, enquanto caminhava de cabeça erguida, mirando à frente. – Posso ser de uma casta social diferente da sua, mas compreendo que existem injustiças. Penso que, talvez, o mundo não precisasse ter miséria para que outros tivessem tanto conforto.

Estas palavras acariciaram o coração de Vária. Será que o céu lhe abençoou colocando em seu caminho uma pessoa justa? Será que conseguiria melhorar de vida com trabalho honesto?

– Nem todos pensam assim, senhora. E se me permite, creio que deveria ter cuidado com suas palavras. Certamente, se algum guarda do alcaide lhe escutar, a senhora passaria por subversiva.

Vária escutou uma gostosa gargalhada, vindo de sua acompanhante, soar pelo beco por onde passavam.

– Seguramente, o que diz é o correto, Vária, mas meus pensamentos às vezes escapam. Tomarei cuidado.

Entraram no beco que levava até a pequena casa de Vária. Esta se apressou em abrir a porta para a outra mulher.

— Pode deixar, Vária. Você tem muitas coisas na mão e ainda nem é minha empregada.

Amarylis se adiantou, empurrando a porta para que a dona da casa entrasse.

— Mãe, está acordada?

— Acordei ainda há pouco.

– Temos visita, mãe.

Amarylis olhava o cômodo com atenção. O local, apesar de humilde, era bem cuidado e limpo. Pequenos detalhes lhe chamavam a atenção, mostrando, silenciosamente, minúcias a respeito da personalidade dos habitantes daquela casa. Pouco passou despercebido sob o olhar escrutinador da visitante.

— Esta é dona Amarylis, que está à procura de alguém para trabalhar para ela e eu me ofereci. Dona Amarylis, esta é minha mãe, Adla.

Dona Adla, mãe de Vária, tentou virar seu frágil corpo na cama, para olhar a visita que chegara. Não entendia porque sua filha estava querendo outro emprego, se ela ganhava bem trabalhando para o grande alcaide. Em seus pensamentos, a filha ganhava mais que a maioria das pessoas que elas conheciam e que viviam ali, naquele lugar esquecido pelos deuses.

– Senhora Adla, como vai?

– Não tão bem como gostaria, porém melhor do que se espera com a doença que tenho. E a senhora, como vai? – Adla sorriu para a mulher.

Quando seus olhos se encontraram, pôde ver num tênue vislumbre, uma cumplicidade estranhamente confortadora.

– Não tão bem quanto eu gostaria, porém melhor do que nos últimos anos.

Sorriu de volta, fazendo a mulher mais velha rir alto, ao escutar as mesmas palavras que havia utilizado para se apresentar à visita.

Vária havia preparado um mingau para sua mãe, com algumas frutas cortadas. Levou em uma bandeja e a auxiliou, recostando-a nos travesseiros para que ela comesse mais confortavelmente. Sentou-se à cama, para pegar a colher e dar-lhe de comer.

– Ora, Vária. Não vai querer me tratar agora como uma criança. Minhas mãos não estão tão fracas assim, para que não consiga levar uma colher com mingau à minha boca.

Amarylis percebeu o mal-estar de Adla por estar na presença de uma estranha, tendo que ser auxiliada em atividades tão corriqueiras. Resolveu que ajudaria a velha senhora a se proteger dos mimos exagerados da filha.

– Vária, já tomou seu desjejum?

– Sim. Enquanto fazia o mingau para minha mãe.

– Não quero lhe apressar.  Poderia falar com sua vizinha? Tenho algumas coisas a preparar para a viagem e você ainda tem que me acompanhar até a minha casa, para ver as atividades que prestará a meu serviço e acertar seu pagamento.

— Claro. Vou falar com ela e já retorno.

Vária saiu, deixando Amarylis e dona Adla sozinhas. A visitante percebia o esforço que velha senhora fazia para levar a colher à boca. Olhou-a com candura e estendeu sua mão até a colher para pegá-la da mão da senhora. Dona Adla enrubesceu, vendo que Amarylis notara sua dificuldade.

– Sua filha lhe ama muito e entendo o zelo. Não se sinta constrangida por seu contratempo. Façamos o seguinte. Eu lhe ajudo, enquanto conto uma pequena história para a senhora. Estive quase na mesma condição que você em certa ocasião. Fiquei um tempo privada de minha liberdade para fazer estas coisas simples, como comer, caminhar… Eu consegui me livrar destas limitações e a senhora irá também. Agora vamos à história que iria lhe contar. Há muitos anos….

Enquanto contava uma pequena parábola, Amarylis ia alimentando a velha senhora que comeu todo o conteúdo da tigela de madeira, sem perceber.

– Pronto. Quando Vária chegar, não se preocupará em deixa-la aos cuidados da vizinha, sabendo que a senhora se alimentou.

Sorriu, recebendo outro sorriso terno de volta. Naquele instante, Vária chegava com a vizinha, que ao ver a linda mulher, arregalou seus olhos.

– Telamir, esta é dona Amarylis.

A visitante se levantou, pousou a tigela vazia sobre a mesa e se adiantou para cumprimentar a vizinha de sua futura empregada. Lançou um olhar sério para a mulher que acabara de chegar, fazendo com que esta baixasse sua cabeça, desviando dos olhos da estranha jovem.

– Muito prazer, como a senhora está?

– Bem, Dáma!

Telamir se curvou, fazendo com que Vária se intrigasse com a atitude e por ela ter utilizado a expressão de subserviência, diante da mulher que ela acabara de conhecer. O desconforto no cômodo se dissipou quando a visitante caminhou até a velha, segurando-a pelos ombros e falando de maneira suave.

– Não precisa me tratar com tanta reverencia, Telamir. Não sou sua Dáma, certo? Entendo que a presença de uma pessoa da minha casta entre vocês possa ser intimidante, mas acredite em mim, não sou uma pessoa dada a essas convenções.

Telamir se aprumou, elevando o rosto; olhou a jovem mulher e sorriu tímida.

— Desculpe-me, senhora…

****

Vária, mais uma vez, sentia-se desconfortável ao caminhar lado a lado da mulher de modos pouco comuns. Tentou não pensar tanto sobre o assunto, pois estas atitudes estavam mexendo com o seu íntimo. Apesar da estranheza, ela se sentia muito bem ao lado desta mulher que acabara de conhecer. A caminhada fora longa e, em dado momento muito silenciosa, mantendo um certo distanciamento entre as duas. Amarylis percorreu um caminho pouco conhecido por Vária, chegando a uma granja bem afastada da cidade. Local agradável, onde uma grande construção, erguida no meio da quinta, era cercada por um jardim florido com uma fonte ao centro, deixando a frente da casa colorida e um ar fresco no entorno.

— Venha, Vária. Preciso fazer umas perguntas e, dependendo da sua disposição nas atividades que tenho para você executar, poderá começar hoje mesmo.

Amarylis se encaminhou até uma sala ampla e acolhedora, com pouca mobília e arranjos, contudo muito agradável. Toda a casa era na cor branca, por dentro e por fora, dando um aspecto arejado e limpo ao local. Ela bateu palmas duas vezes, antes de se sentar em uma poltrona de aparência confortável.

– Sente-se, Vária.

– Estou bem de pé, senhora.

Novamente, Vária se intrigava com a atitude daquela mulher. Não era comum empregados e nem pessoas de castas sociais inferiores, sentarem na presença de seus patrões.

– Vária, vamos deixar uma coisa clara. Eu falei anteriormente que não sou de convenções e espero que compreenda isto. Quando te chamei para trabalhar, não foi para que cozinhasse para mim ou algo parecido. Mesmo que fosse, não costumo conversar com pessoas que ficam de pé, enquanto estou sentada.

Uma jovem entrou na sala sem cerimônia e se dirigiu à Amarylis.

— Ailisha, traga sidra, água e também algo para nós comermos.

O tempo que levaram caminhando até a granja, mesmo a passos apressados, havia sido suficiente para a hora do almoço se aproximar.

– Sim, senhora.

Embora a atitude, visivelmente, respeitosa da jovem, o clima era leve e descontraído. Em nada se parecia com o que Vária viveu na “Cidade do Princípio”. Ela se perguntava novamente se os deuses haviam lhe sorrido. Sentou-se em outra poltrona, de frente para sua interlocutora, mas o constrangimento era visível em seu rosto.

Amarylis observava as atitudes e o comportamento dela com atenção. Estava prestes a tomar uma decisão e tinha que ter certeza se aquela mulher, que estava à sua frente, aceitaria o encargo. Suspirou longamente, pois entendera pelas atitudes de Vária, que seria difícil que ela deixasse a postura tão respeitosa e as normas sociais de lado. Analisou-a novamente e resolveu que a abordagem direta seria a melhor forma. Pressentia que ela era uma pessoa com determinados valores e, se Amarylis fosse dúbia em sua abordagem, faria a mulher recuar.

– Eu vou ser direta, Vária. Não a encontrei naquela banca do mercado, por acaso.

Apesar da expressão do rosto de Vária não se alterar, Amarylis viu um sutil movimento de seus olhos, contraindo em apreensão, mas nada falou e continuou a escutar.

– Eu fui hoje mais cedo até a cidade, pois tinha que contratar alguém para me acompanhar até Telmov.

– Isso a senhora falou.

– Falei, mas não expliquei o motivo correto e nem o tipo de trabalho que meu acompanhante terá. Eu fui procurar um guarda-costas. Alguém que possa estar comigo dia e noite, nos meus aposentos, na minha tenda, à hora do meu banho. Seja lá onde eu esteja, não posso estar só. Corro riscos; e tenho que encontrar uma pessoa, em Telmov, que irá me ajudar a me livrar deles.

– Eu não sou guarda-costas…

– Por favor, peço-lhe que escute tudo que tenho a dizer e depois decida se quer ou não o emprego. – Vária assentiu. – Fui até à área baixa da cidade, pois ali eu poderia achar alguém que pudesse me acompanhar. Sei que existem muitos mercenários que moram lá, mas também sei que estaria correndo risco se escolhesse a pessoa errada. Antes que pergunte, eu não posso procurar junto aos guardas da lei e também não vou falar para você por quê.

Amarylis pausou sua fala, olhando o jardim através da porta que se encontrava aberta. Depois de alguns segundos, retornou seus olhos para sua visitante e continuou a explanar.

– Enquanto eu caminhava pelas ruelas da área baixa, deparei-me com dois homens que conversavam a respeito de “pegar aquela garota”. Me escondi em um beco até eles se distanciarem, pois percebi que eu corria perigo. Eram homens de aparência truculenta e desleixada. No entanto, eles abordaram você e vi tudo que se passou naquela rua.

Vária arregalou os olhos, assustada e começou a se justificar.

– Fiz o que fiz em legítima defesa e…

– Calma, Vária. Não estou lhe censurando. Vi muito bem que eles eram bandidos e estavam ali por motivos torpes. Sei o que eles queriam fazer com você e, se eu tivesse as suas habilidades e estivesse na sua situação, eu faria o mesmo e com prazer. Foi nesse momento que vi que precisava tomar muito mais cuidado com quem eu contrataria e nesta mesma hora, decidi que talvez você fosse a minha opção. Entenda, Vária, eu não quero contratar alguém para me proteger e ter que me preocupar com essa pessoa… Que ela venha a me fazer mal. Imagina se eu contrato um homem como esses, que tenha de permanecer no mesmo quarto ou tenda comigo?

– Mas eu nunca fui guarda-costas e não sei nem o que fazer.

– Mas você sabe se defender e tem percepção das coisas ao seu redor. Eu observei o carinho e o sentido de proteção que tem por sua mãe e em relação a você mesma. Vi que você não é qualquer pessoa. Tem uma educação melhor que a maioria e zela pelos seus pertences, por pouco que eles sejam. O que estou oferecendo é um emprego que tirará você e sua mãe da área baixa da cidade. Você poderá morar aqui na granja, em uma casa na vila dos meus empregados, e trazer a sua mãe consigo. O seu salário lhe permitirá tratar a sua mãe com decência, além de ter o auxílio do curandeiro daqui da granja. Tudo que lhe peço é que considere a minha proposta. Tenho muitos guardas que trabalham para mim e nos acompanharão nessa diligência. Preciso de uma pessoa que esteja comigo constantemente, caso alguém consiga chegar perto o suficiente para me pegar.

– E o que acontecerá depois que encontrar a tal pessoa em Telmov? Volto a morar na área baixa da cidade?

– Não. É claro que se eu conseguir o meu intento, não precisará mais me acompanhar o tempo todo, entretanto ainda terá seu emprego; apenas será sem tanta pressão. Pretendo continuar com seus serviços, a não ser que não queira. Neste caso, acertamos que você continuará trabalhando para mim, em outra função. Poderemos ver algo que lhe interesse.

Vária estava atordoada com a gama de informações e a proposta que a mulher, bonita e misteriosa, lhe fazia. Ficou muda por instantes, avaliando tudo que ela tinha lhe oferecido. Não era algo ruim o que foi ofertado pela mulher. Na verdade, nunca em sua vida acreditava que pudesse, realmente, tirar a mãe daquele lugar de ruas fétidas e sujas. Era uma grande oportunidade, afinal!

– E de quanto seria meu salário, caso eu aceite?

Amarylis não pôde conter o pequeno sorriso que se delineou em seu rosto. Sabia que o dinheiro que ofereceria a ela, não causaria o menor desfalque em suas finanças e tinha certeza que sua proposta seria irrecusável para aquela mulher de tão poucas posses, que sentava à sua frente.

– Cinquenta “dogmas de ouro” semanal. Está a seu gosto?

Mais uma vez, Vária foi pega de surpresa e arregalou os olhos, confusa. Era uma quantia muito maior do que, um dia, pudesse imaginar receber por qualquer serviço, em um ano de trabalho honesto. Só sabia que tal monta existia, palpavelmente, por ter trabalhado com o alcaide e ter visto milhões a mais que isso na sala do tesouro. Abriu a boca algumas vezes, sem conseguir pronunciar palavra alguma. Sua cabeça começou a raciocinar e pensou que, afinal, não precisaria vender as peças que roubara do alcaide. Em apenas duas semanas de trabalho para aquela mulher, poderia pagar à bruxa-curandeira para salvar sua mãe da doença. Daria um jeito de devolver as peças, sem que o alcaide soubesse e, talvez se livrar de uma futura perseguição, caso os espiões de Trevor descobrissem quem era ela, no futuro.

– Eu aceito, mas com uma condição.

Amarylis não esperava que a outra condicionasse algo, depois da proposta que fez. Meneou a cabeça, sem nada falar, esperando que Vária se pronunciasse.

– Que Telamir possa vir junto para cuidar de minha mãe, quando eu não estiver com ela. Ela, agora, está viúva e não terá problemas para isto. Pagarei Telamir com meu salário e quanto a estadia, se eu terei uma casa na sua vila de empregados, ela poderá ficar conosco.

Amarylis estreitou os olhos. Havia algo naquela afirmação, que ela captara e que não soara bem. Inspirou fundo, tentando perceber o que passara na frase de Vária. – “Ah, sim. Por que Telamir “agora” está viúva”? – Pensou.

– Então, um dos homens que você matou era marido de Telamir.

Afirmou sorrindo, percebendo o desconforto nos gestos e rosto da visitante.

– Creio que pouca coisa passa por sua perspicácia. – Falou Vária, desconfiada.

– Aprenderá que pouca coisa passa despercebido por mim realmente, mas não acredito que você terá problemas com isso. – Sorriu. – Que assim seja. Telamir poderá vir. E para que não haja qualquer dúvida, em relação ao que eu penso sobre essa situação, que você se enfiou hoje mais cedo, posso lhe garantir que não me incomoda. Se o marido de Telamir era um daqueles trastes, ela estará melhor sem ele agora. Só sinto por ela, pois não sei se o amava ou não.

– Ela não o amava. Tinha medo dele. Casou-se com ele num acordo que o pai fez para se livrar de uma dívida. Vivia bêbado na rua da taberna. Sumia dois dias e, às vezes, até mais. Retornava apenas quando lhe faltava dinheiro. Ecava-a quando ela não tinha nada para lhe dar e todos à volta de sua casa, ouviam seus gritos e ninguém interferia.

Amarylis suspirou em entendimento. Compreendia perfeitamente o significado do que Vária acabara de falar. Em outras épocas, quando Trevor ainda não era o alcaide, as leis eram abertas em relação às mulheres e suas escolhas, e mais rígidas em relação a abusos. O povo também não era miserável, a ponto de pessoas fazerem estes tipos de acordo em que, praticamente, vendiam uma mulher em troca de favores.

Ailisha e mais dois empregados entraram para colocar os alimentos sobre uma mesa que havia em outra parte da sala.

— Então, estamos de acordo. Vamos comer e seus serviços começarão nesse exato momento. Embora eu confie em todos que trabalham para mim, você deverá provar a minha alimentação, antes que eu coma. – Sorriu de lado – Entende agora por que pago tão bem? – Sorriu novamente.

– Se confia em seus empregados, por que esta atitude?

– Primeiro, porque você é quem está sendo contratada agora. Acha que eu acreditaria cegamente, tão cedo? E depois, alguém poderia se infiltrar apenas com esse intuito. Algum entregador de alimentos do mercado ou outra pessoa que viesse fazer um serviço qualquer, aqui na granja. Mas não se preocupe com isso. Não acredito que eu esteja em perigo aqui dentro. O perigo maior será quando eu estiver indo para Telmov. Aí, você terá que ficar muito atenta.

– Não quer me falar mais sobre os perigos que te rondam? Eu estou às cegas com o que devo enfrentar e saber dos fatos; facilitaria a minha vigília.

Mais um suspiro forte foi exalado por Amarylis.

– Facilitaria sim, Vária, mas infelizmente não será possível. Talvez uma hora eu possa lhe contar. Não agora, mas acredite, não é por falta de vontade minha, apenas não posso ainda.

  • Aviso: Esta história contém cenas de sexo explicito. (É um aviso para quem não me conhece. rs) Porém, diferentemente das outras, o sexo é parte relevante (mas não é o mote do contexto e por isso, não há inúmeras cenas). Este é um texto feito aos moldes da ficção/fantasia erótica da segunda metade do século XX, onde este estilo cresceu e proliferou em livros pockets e quadrinhos, em meio a revolução sexual dos anos 50 à 70 do século passado, decaindo à partir desta última década. Outros estilos eróticos iniciaram com do advento da internet.


Notas:



O que achou deste história?

10 Respostas para Capítulo 1 e 2 – O Roubo e o Acordo

  1. Óia eu aqui TB!!!
    Vixi, já viciei!!
    Gostei dessa senhorita, n sei se é viúva pra tá solteira ainda…interessante!!
    Segredinho, adoro incógnitas!!
    Rindo muito pq vc colocou o recado do sexo explícito pq vc n colocou na outra estória, aí pensei: suas leitoras vão pirar kkkkkk..eu n estou incluída.. já me conhece!:)
    Oxente pq o sexo é uma parte importante? Devido à nota que vc explicou sobre essa época?!
    Teve um momento que pensei q fosse contratá-la como dama de companhia…
    Parece que será uma leitura bem agradável!! Ia deixar transcorrer a estória pra dps ler, mas terei q comer 10 horas sentada praticamente sem fazer nada no trabalho…
    Se cuida
    Beijos de luz.. escrevi pouco pq tenho q me curar rápido do braço..

    • Oi, Lailicha!
      Quer dizer que leu todos os caps de uma só vez. rsrs Isso é legal!
      Essa senhorita tem muitos segredinhos mesmo e vou dar spoiler, porque sai hoje o capítulo 4. rsrs A Vária é um dos segredinhos dela. rsrsr
      kkk O recado sobre sexo tem um motivo. rsrs Sei que escrevo sexo nas minhas histórias, mas essa eu fiz nos moldes de histórias de ficção-fantasia que circulavam em determinada época e era um estilo literário (Isso antes do advento da internet). Eram pockets vendidos em bancas de jornal e o sexo, por esse estilo da época, tinha que ser parte integrante do enredo da história. Com a internet e a variedade de sites de literatura, outros estilos foram surgindo, diferenciando a forma como se escreve o sexo, independente se são de ficção-fantasia ou não. Hoje o sexo está nas histórias naturalmente. Naquela época, existia um tipo específico de estilo em que o sexo aparecia fazendo parte intrínseca da história e os leitores procuravam esses pockets por conta disso. rs Acho que quando rolar o sexo vai dar para entender melhor. rs
      Consegui explicar direitinho?
      Obrigadão, Lailicha!
      Um beijão pra você!

  2. Hum! Lá vem vc com morena de olhos verdes… Tenho um certo crush, rs.
    Que surpresa agradável! História nova!

    Feliz ano novo, Carol!
    Beijo

    • Eu também! Morena de olhos verdes é lindo! Minha mãe tinha olhos verdes e infelizmente não nasci com eles. rsrs Uma vez me falaram que os olhos verdes são um erro genético e não uma cor genética propriamente dito. Não sei se é verdade, se for, é um erro lindo!
      Valeu Fabi!
      Um ano lindo para você também!
      Beijão!

  3. Maravilhoso Carol, eu já li em algum site q não tenho ideia qual?
    O fato é: Quero ler tudooooo… sei q é em tudo excelente e quero…

    Mais uma x parabéns.

    Desejo um final de 2019 satisfatório (pq esse ano não tem como ser mais isso)
    e desejo um 2020 magnifico com plena felicidade.
    bjs…

    • Sim, eu estava participando de um evento, mas tirarei de lá. rsrs
      Obrigadão, Nádia!
      E desejo a você um 2020 cheio de luz e muitas alegrias Que seja muito melhor do que o que foi anteriormente! (Nem quero falar desse ano que passou. rs)
      Um beijo grande para você!

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