As Peças do Jogo

Capítulo 4 – A Bruxa de Telmov

As Peças do Jogo

Texto: Carolina Bivard

Revisão: Isie Lobo e Nefer

Ilustração: Táttah Nascimento

  • Modificações foram feitas na ilustração para se adequar ao padrão de tamanho do site, eximindo a ilustradora de qualquer distorção da imagem.

Capítulo 4 – A Bruxa de Telmov

Sua senhora estava recostada em almofadas, no catre feito com estacas fincadas no chão, couro esticado e mantas. Lia um pergaminho, concentrada. Vária não conseguira ver nenhuma outra manta no chão para que dormisse. Antes de saírem da granja, Amarylis falara que ela se preocupasse unicamente com suas vestes, pois todos os apetrechos necessários para a expedição, seriam arranjados pelos outros empregados. Sem tirar os olhos da leitura, a delicada mulher mandou Vária se deitar a seu lado.

– Não é hora de se prender às normas, Vária, e nem para constrangimentos desnecessários. Venha deitar ao meu lado. Não havia como carregar mais equipamentos; falei com Ailisha que deixasse para trás suas mantas de dormir.

– Senhora, eu…

Amarylis pousou o pergaminho ao lado, olhando a alta mulher à sua frente. Suspirou. Aquela situação estava começando a irritá-la.

– Vária… – falou pausadamente. – Se acredita que eu não saiba o que acontece com você, desfaça essa ideia. Sei, exatamente, o que passa por seus pensamentos.

Os olhos de Vária arregalaram e a cor sumira de seu rosto. Amarylis a observava, em desânimo.

– Agora deite-se e durma. E, por favor, não me faça pedir, novamente.

Vária passou insone, até chegar a Telmov. O corpo delgado de aroma floral, encostado a ela, atormentou-a todas as noites. Não sabia o que estava acontecendo. Nunca fora dada a esses destemperos e cada vez seu desejo se tornava mais forte. Estava a ponto de enlouquecer.

****

Chegaram à cidade e foram direto para uma casa que se encontrava nas cercanias. Era luxuosa e tinha guardas por toda parte. Ficaram de longe, observando. Vária não entendia o que se passava, mas sabia que algo de perigoso os espreitava, pelas reações de Madi e Amarylis. Olhavam o local a distância, como se estivessem avaliando se chegariam mais próximo ou não.

– Tantos anos e ela não aprendeu.

Segredou Amarylis, num tom de repreensão.

– O que vai fazer, Dáma? Não poderá entrar com todos esses guardas. O que faremos?

– De quem é essa casa?

Varia perguntou, tentando entender um pouco aquela interação entre eles. Amarylis se voltou para sua guarda-costas, olhando-a em silêncio. Avaliava o que poderia falar ou não. O menor deslize, colocaria tudo a perder.

– Trata-se de alguém que preciso conversar, mas que não vai gostar de me ver. Por isso você está aqui, Vária. Para assegurar que passemos por aqueles portões, sem que nada me aconteça.

– Eu? Se essa pessoa não quer lhe ver, como posso garantir sua segurança com todos aqueles guardas?

– Você não precisará fazer nada, além de dizer que estamos aqui para ver a bruxa Dalad.

– O quê? Eu estava procurando por ela!

Amarylis retirou um saco do alforje, com muitas moedas de ouro e entregou na mão de Vária.

– Você falará com ela, assim como eu. Porém, dessa vez, eu vou como sua empregada. Ela só nos receberá, se não ver quem sou, além de ter algo que me pertence e que está em poder dela, há muitos anos. Eu a acompanharei de cabeça baixa e vou caminhando atrás de você. Não se preocupe. Quando mostrar o dinheiro nos portões, eles nos deixarão passar.

– E o que acontecerá depois que entrarmos? Quem garante que não mandará nos prender? Se ela não quer se encontrar com você, não consigo ver por que nos deixaria livres, depois que você se apresentasse.

– Ela não o fará, Vária. Acredite em mim.

Amarylis passou os dedos pelo braço da guarda-costas, acariciando num leve toque. Olharam-se por segundos, num momento de intimidade acolhedora. Cada vez menos, Vária entendia o que se passava consigo. Bastava um olhar, um toque, para que ela acreditasse em tudo que sua senhora falava. Meneou a cabeça, aceitando a incumbência.

 Amarylis desceu de seu cavalo, pondo-se a caminhar ao lado do cavalo de Vária. Passou um lenço em volta da cabeça, cobrindo o rosto, parcialmente. Ela tinha que se colocar numa posição de subserviência. Chegaram aos portões e Vária também desceu de seu cavalo, caminhando até o guarda.

– Venho falar com a bruxa Dalad. Necessito dos serviços dela.

Vária mostrou o saco com as moedas de ouro. O guarda a olhou por segundos e depois se pôs a observar a sua acompanhante. Passou por trás das duas, como se quisesse avaliar algo. Quando terminou, fez sinal para que o outro guarda abrisse os portões para que elas entrassem. As duas acompanharam o segundo guarda até a porta principal da casa. Ele as deixou e, alguns minutos mais tarde, uma mulher veio recebe-las.

– Acompanhem-me.

Pediu a mulher de forma seca. Foram conduzidas até um salão e deixadas sozinhas. Passaram-se dez minutos e o silêncio começava a incomodar Vária.

– Você sabe…

Amarylis sacudiu sutilmente a cabeça, para que a guarda-costas não falasse nada.

– Qual das duas quer falar comigo? Quem eu devo atender?

A voz rude destoava da figura que entrara no ambiente. Tinha uma beleza luxuriante. Trajava uma saia de rendas transparentes que pouco deixavam para a imaginação. O corpete que cingia os seios, fazendo-os saltarem, insinuava que aquela mulher era dada a devassidão. O restante do conjunto se formava com as joias que adornavam o pescoço e braços.

Amarylis retirou o lenço da cabeça, mostrando sua face, fazendo a mulher se assustar.

– Nós duas. Mas, primeiro eu quero ter uma conversa com você, Dalad. Achava que esse dia nunca chegaria?

– Mas como…?

Ela estreitou os olhos e mirou a outra mulher ao lado de Amarylis, soltando uma gargalhada espalhafatosa.

– A bem da verdade, Amarylis, eu achava que não chegaria mesmo. Mas olhando quem está a seu lado, – apontou Vária – agora compreendo como saiu de lá e como entrou aqui.

– Do que ela está falando, senhora?

Amarylis suspirou, em sinal de cansaço.

– Depois conversamos, Vária, mas antes, tenho que falar com essa mulher. Quando eu terminar, ela vai lhe contar algumas coisas.

– Vamos acabar logo com isso. Venha, Amarylis. Minha sorte é que foram muitos anos. Confesso que sentirei falta da quantidade de dinheiro que ganho, mas já estava farta de ficar reclusa nessa casa. Você pode não acreditar, mas chegou a um ponto que eu pedia aos deuses para que este dia acontecesse. Acompanhe-me.

As duas saíram pela mesma porta que Dalad tinha entrado, deixando Vária sozinha e atônita. Dalad levou Amarylis por um corredor e chegou a uma outra porta. Abriu-a e deu passagem para a visitante entrar. Assim que Amarylis entrou na sala pôde ver, apoiado em um pedestal, a insígnia pertencente à sua família.

– Viu? Ela está bem guardada.

Amarylis estendeu a mão, mas antes que tocasse na joia, Dalad a segurou, fazendo Amarylis olha-la com raiva.

– Você sabe que não pode me impedir!

A insígnia com a pedra no centro, aqueceu a ponto de queimar a mão de Dalad, fazendo-a soltar a peça.

– Só estava confirmando se era verdade. Eu não posso impedir que você vá embora, mas você sabe que agora que a insígnia voltou à sua mão, ele saberá. Tenha certeza que ele virá atrás de você.

– Ele já veio, Dalad. Os espiões dele estavam lá em Treider. Só não me encontraram, porque procuravam um homem e não uma mulher.

Um sorriso descarado bordou o rosto da bruxa.

– Ela sabe?

– Esse papel de contar é seu, não meu.

– Não me diga que não aconteceu ainda?

A gargalhada da bruxa ecoou pela sala, deixando Amarylis envergonhada.

– Esse sempre foi seu problema. Certinha demais. Admito que nossos pais escolheram a pessoa certa para assumir. Talvez, se eu fosse a alcaidessa, Treider estaria pior do que com Trevor. Mas francamente, irmã, se foi ela que tirou vocês da Cidade do Princípio, ela é que é a sua alma.

– Ela é só uma garota!

– Mas é a mulher que vai te defender daquele crápula e me tirar da merda! Acha que estou satisfeita por estar presa todos esses anos nesse lugar?

– Pensasse nisso quando o ajudou a me tirar do trono! Quem fez o encantamento para que eu, ilusoriamente, me apaixonasse por ele? Quem abriu a sala da fonte da Cidade do Princípio para que ele obtivesse o poder? Nós duas só não estamos mortas, porque ele não podia segurar a insígnia.  Você continuou com a sua juventude e ganhando dinheiro dos necessitados, alimentada por ela. Ainda reclama de estar aqui, presa nesta casa?  Pense nos quarenta e cinco anos que vivi presa numa peça de jogo, juntamente com todos aqueles que me foram fieis e o enfrentaram!

– Não adianta me atormentar mais do que eu mesma me atormentei, durante todos esses anos. Ele me enganou também, porque eu era uma idiota juvenil e ciumenta! Eu tinha ciúme de você, mas não queria que acontecesse tudo isso. Eu te amava, mas estava tomada de ciúmes, pois nossos pais nunca confiaram em mim. Ele me disse que te amava e queria estar a seu lado. Que se eu o ajudasse, ele a convenceria a dividir o trono comigo!

Amarylis suspirou, vendo as lágrimas escorrerem do rosto da irmã.

– Eu continuo sem entender, minha irmã. Você disse que me amava, mas me jogou um encantamento para eu ficar com alguém que não amava. Achava isso certo? Você tinha tudo o que gostava; a magia, o conforto, só não tinha a responsabilidade de governar. Isso recaiu sobre meus ombros.

– Agora não importa. Como disse, eu era uma garota burra e ciumenta.  Entretanto, isso não altera o fato de que se ela não tomar você para ela, Trevor continuará sendo mais forte. Não importa que você tenha a insígnia. Ela é sua alma! Lembra-se do encantamento? Só a sua alma poderia tirar você de lá. Só ela poderia entrar com você em minha casa. E eu não poderia permitir que você passasse dos portões se a reconhecesse, senão eu morreria. Lembra? O que ele não contava é que a sua alma fosse uma mulher.

Amarylis riu com gosto, lembrando de algumas palavras do encantamento. “Homem algum poderá entrar nessa sala, a não ser eu. Homem algum poderá tocar nas peças do meu jogo. Qualquer homem que tentar, sumirá como pó.”

– Sabe o que é o melhor de tudo? Ele proferiu as palavras e mesmo assim não entendeu o enigma. Não sabe como as peças foram tiradas da sala do tesouro.

– Talvez não saiba ainda, ou talvez até já saiba. Há quantos dias você está fora da Cidade do Princípio?

– Cerca de duas semanas, mas não poderia me arriscar vir aqui, imediatamente. Eu mandei alguns espiões sondarem sua casa, durante alguns dias. Existem guardas de Treider disfarçados aqui. A sorte é que não sabem como somos. A maioria dos antigos guardas dele já morreram.

– Como ela se chama?

– Vária.

As duas se olharam e inspiraram, ao mesmo tempo.

Para que o encantamento se quebrasse completamente, Amarylis não poderia contar a história para sua alma. Ela teria que saber através de outra pessoa. Chegaram ao salão, onde Vária esperava paciente, olhando, distraidamente, os adornos que enfeitavam as paredes. Dalad olhou na direção de Vária, que estava de costas, e abriu um enorme sorriso.

– Nada mal, irmã! Com essa aí, até eu não me importaria de passar alguns dias  – sussurrou.

Amarylis a olhou, sisuda. Durante todo o tempo que viveu presa naquela forma teve consciência de tudo. Os anos passavam e ela nada podia fazer a não ser presenciar os acontecimentos. Quando foi tirada da “Cidade do Princípio”, durante a segunda noite, transformou-se, novamente, em uma mulher. Se viu em uma casa humilde e resgatou todas as outras peças. Seus amigos fieis, em breve, retornariam também e não poderia deixar que isso acontecesse naquela casa. Sabia que havia sido resgatada por outra mulher, pois escutara tudo, mesmo naquela forma. Antes de sair, aproximou-se do catre que embalava o sono da sua salvadora, se arriscando a ser pega, apenas para ver quem era ela. Naquele momento, ela não teve mais dúvidas sobre quebrar a maldição. Era como se já a amasse há mais vidas do que o passado pudesse lhe dar.

Dalad percebeu seu deslize com a brincadeira.

– Desculpa, irmã. Às vezes, retorno ao meu jeito imbecil. – Voltou-se para Vária. –  Vamos, criança. Vou lhe atender.

 



Notas:



O que achou deste história?

8 Respostas para Capítulo 4 – A Bruxa de Telmov

  1. Amarylis é a peça do jogo. Vária roubou Amarylis, e como ela foi retirada da cidade, e por uma mulher, o encanto foi quebrado e ela se transformou em mulher novamente.
    Caramba! Qual será a reação de Varia ao saber de toda a história?

    Beijo, Carol

    • Oi, Fabi! Estava sentindo sua falta! rsrs
      Isso mesmo. Ela e todos os serviçais dela eram as peças do jogo. Foram amaldiçoados pelo usurpador Trevor. rsrs E vou dar um spoiler. Agora Amarylis tem a relíquia de família, que fortalece a magia dela. rs
      Vária… bom essa você vai ver hoje, no novo capítulo que sai daqui a pouco. rs
      Um beijão, Fabi e obrigadão!

  2. Biiii,ameiiiii!!!Belo spoiler..já tava me perguntando o q seria!!Mas com essa vc arrasou!!! Como reagirá Varia?!!!
    Varia soltou ela e nem soube por isso sumiu e ela achando q alguém pegou!! Kkkkk. Muito bom ,Carol!!!!
    Por sorte ,de novo, vi que postou o capítulo 4 hahaha
    Mas vc foi acabar logo aí!! Agora só dia 20..kkkkkk ??
    Obrigada pela explicação,entendi direitinho!:)??
    Sei que vc n coloca sexo sem sentido e sim como consequência!
    Eu sou nova,mas nem tanto, assim que só peguei a era da internet mesmo!! Tirando as estórias homoafetivas de época por aqui, nunca li em outros lugares, me refiro as coisas q vc citou!! Mas vamos ver como vc abordará!!
    Valeu,Carol, pela nota, assim agora sei um pouco mais..sem falar que eu n vivi o q outras pessoas homossexuais viveram… quase parecida com Evernood!! Kkkk .Por isso falo: chuta o pau do barraco e sai do armário, ainda q trato de compreender e tenho feito bem! :).
    Beijão e já falei demais!!!!

    • Viu, Lailicha! O spoiler valeu, né? rsrs
      Por que só dia 20? Vou postar hoje, oxe!
      Então, era bem assim que muitas histórias de ficção e fantasia era lidas. Ou em gibis, ou em livros pockets de jornaleiro. Claro que existiam também os livros de livrarias. Muito autores de ficção científica e de fantasia, que hoje vemos filmes sendo feitos à partir deles, eram autores de livros comuns. Mas houve uma época em que esses pockets de jornaleiro faziam sucesso, como os faroestes de jornaleiro, também. rsrs
      Um beijão, Lailicha e obrigada!

  3. Sensacional, Carol.
    Amo cada palavra e cada frase escrita, tá mto lindoooo…

    Please, não demora mto pra dar continuidade.

    Bjs,

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