Até que o Porta-Retrato nos Separe

Até que o Porta-Retrato nos Separe

Como se fosse fácil desviar do vaso voando, minha atenção era mais atraída para a água no tapete. Não poderia esvaziar antes de ficar histérica?

Esta falta de praticidade, acima de tudo, me enlouquecia. Já não dava mais para continuar assim. Eu tinha perdido até o direito de dar um motivo antes da briga começar.

Na verdade, o vaso, a água, o tapete molhado, tudo isto começou com a porta se abrindo. E o meu dia, que já tinha sido de cão até aquela hora, terminava no canil completo.

Entrei sem falar nada. Na verdade, não tinha mais vontade de falar. Há tempos meu cérebro não processava o motivo daquela gritaria. Lembro-me vagamente de “você mudou”, “não me dá atenção”, “preciso de mais”. Desde então, o máximo que fiz foi tentar reaver meus passos para entender em que hora eu mudei, ela mudou, a atenção deixou de existir e o que antes era tudo, passou a ser insuficiente.

As flores que enfeitavam o chão molhado atraíram minha atenção. Era mais bonito de se ver do que aquela veia dilatada no pescoço, o som estridente sem fim. Em que lugar do passado elas deixaram de ser “ah, meu bem, que lindas, como você é carinhosa” para ser só instrumento de ataque, não consegui descobrir.

Olhei para o aparador ao lado da mesa. Restava o porta-retratos nele.

Não pude impedir meu riso irônico. Justamente ele era mantido. De todos os objetos voadores, aquele permanecia fixo. Parecia saber da promessa secreta que eu havia me feito: o dia que ele saísse do lugar, eu iria embora. Não daria satisfação, não pensaria duas vezes. Simplesmente iria embora, sem olhar para trás.

Desde então, me desvio dos vasos, das flores, das almofadas e copos aerodinâmicos, sempre rezando para que ele seja o próximo. Mas talvez ela adivinhasse, pois o porta-retratos jamais era tocado.

Acho que ela admirava o seu cabelo esvoaçante na foto, assim como eu admiro o olhar completamente embevecido que trocávamos, juntamente com as alianças e a promessa de estarmos juntas, nos amando e respeitando até que a morte nos separasse.

A morte do casamento agonizante chegaria com a destruição daquela foto, o desrespeito àquele símbolo. Mas ele parecia ser fixo demais, denso demais para que ela o atirasse sobre mim. Parecia ter mais peso que aquelas palavras carregadas de rancor, que minha indiferença e desprezo só faziam aumentar.

Nós éramos tão boas namoradas, por que a infeliz idéia de casar? Claro, já morávamos juntas. Mania estranha esta que assola as mulheres de querer compartilhar todos os momentos juntos. Mulheres apaixonadas por mulheres então chegava a ser dramático. Um primeiro encontro já vinha com a certeza do amor eterno. No segundo a pergunta que deveria se calar: no meu ou no seu? E não, não era só para saber onde passaríamos uma louca noite de amor. Era para saber na casa de qual das duas deixaríamos nossas escovas de dentes lado a lado, quem iria apertar seu guarda-roupas para compartilhar com sua nova esposa. Sim, porque como insanidade pouca é bobagem, esta união precisa ser oficializada. A gente curte casamento, cartões de natal personalizados, dividir despesas, tarefas, conta no banco, testamento e o diabo a quatro.

Tudo o que dá errado para os héteros nós queremos também. A sorte deles é que os homens nascem com alergia à palavra casamento, o que com as mulheres funciona como um imã.

Claro que existem as mulheres que também querem só aventura, querem se divertir. Bem como existem os casamentos que dão certo.

Entretanto, é complicado pensar nisto quando a minha ‘mozinho’ acabou de atirar a caneca do Mickey em minha direção. Minha caneca da sorte! A companheira desde a viagem pra Disney.

Como ela pode? Meu olhar de indignação só não era maior do que o de susto total que se lia naqueles olhos arregalados e súbita mudez.

Cheguei a considerar, confesso que com um raio de esperança, que ela se arrependeu de estragar algo que me era caro.

Fiquei lá, olhando para ela e de repente me lembrei da dengue que me deixou com febres e dores horríveis, onde só o que me confortava era o carinho que ela cuidou de mim. Das noites acordadas terminando aquela dissertação diabólica do meu mestrado. Quantos cafés, que ela fez, eu tomei naquela mesma caneca? Às vezes, ela fazendo as revisões e pesquisas auxiliares, compartilhava comigo daquele café, dos cochilos sobre o pc. Foram os olhos dela que eu procurei quando enfrentava a banca e foi daquela boca que veio o sorriso que me encorajou.

Assim, sem mais nem menos, da mesma forma que um dia foi embora, a paixão que sentia por ela retornou.

Naquele silêncio, consegui ouvir todas as suas queixas e perceber que era verdade. Há tempos havia colocado no anseio de ser promovida, de ser valorizada dentro da empresa muito acima da necessidade dela de ser abraçada, de ser ouvida. Era eu quem tinha me afastado, quem tinha parado de ouvir. Sua indignação era só para ser vista.

Grande cretina eu era, no final das contas! Como tinha coisas para reparar. E pensar que até então só me importava com a água no tapete.

E foi então que meu olhar se voltou para o chão. A água e as flores jaziam companhia para os cacos da caneca, que em seu vôo maluco em minha direção, atingiu sem querer nosso porta-retratos.

E lá jazia ele… Quebrado ao meio. Definitivamente destruído.

Sai sem nada pronunciar. Um adeus mudo e a sensação que poderia ter sido tudo diferente. A grande frustração de não ter feito tudo diferente, de não ter tempo para consertar os estragos. A estranha sensação que o amor renasceu nos cacos, mas que como caco não poderia viver.

Compreendi então que, simples assim, amar não implica em viver junto com a pessoa amada, e que é preciso amar demais para se dizer adeus quando chega a hora.



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