Caçadora

14. Bento

Revisão: Naty Souza e Néfer


 

I

 

Carla tomou o celular das mãos de Diana e, sem cerimônias, o atirou no chão e esmagou até que restasse um amontoado de cacos de vidro e peças quebradas. Uma frieza quase marmórea dominava a face alva, que ainda continha respingos do sangue de Miles, Juan e companhia.

A camiseta que usava estava rasgada onde alguns arranhões vertiam sangue. O pior dos seus ferimentos era um corte profundo no braço, no qual Cristina enrolou um lenço sob protesto dela. Por sua vez, a própria Cristina também não se encontrava com a melhor das aparências. Assim como a loira, tinha hematomas e cortes pelo rosto e braços.

As duas trocaram um olhar cúmplice, que não escapou de Vanessa.

Não havia nada amoroso no beijo que trocaram. Ele não passou de um subterfúgio que lhes permitiu tomar um bom posicionamento para observarem os inimigos que as espreitavam sem levantar suspeitas por parte destes e, assim, partirem para o ataque.

— Não me olhe assim — Diana pediu a amiga. — Precisava ser feito.

Deu alguns passos para longe dela, esfregando o queixo, onde um hematoma começava a adquirir uma tonalidade arroxeada. Em um tom sabichão, explicou:

— Ele ficará à minha espera e isso o deixará ocupado por algum tempo.

Baixou o olhar para o chão, varrendo-o com o pé, enquanto se abraçava. Estava cansada de fugir e perseguir o tio, ao mesmo tempo. Era irritante ter de admitir que cometeu muitos erros ao longo daquele ano.

— Fiz uma promessa a mim mesma, Loira. Não voltarei a permitir que Aquiles me tire alguém outra vez.

— Só existe um meio disso acabar — Carla declarou, sombria.

Um suspiro resignado acompanhou o inclinar de cabeça positivo de Diana. A ideia não lhe agradava, mas estava certa de que a sua mão não tremeria outra vez. Não se agarraria a princípios que Aquiles sempre fez questão de rejeitar.

— Tudo bem. — Carla falou, prendendo os cabelos que o vento assanhava, atrás das orelhas. — No fim, você não pode se esconder para sempre e, depois do que me contou, entendo seu desejo de vingança.

Diana voltou a erguer a face para encará-la e principiou um sorriso, enquanto ela continuava:

— Entretanto, só fará isso quando estiver completamente recuperada.

— É justo. — Concordou a ladra.

— E eu irei com você. — A amiga concluiu.

A gatuna deixou os ombros se curvarem, fazendo uma pequena careta, enquanto argumentava: 

— Você não precisa fazer isso. O que houve hoje… você fugiu disso e acabei te arrastando de volta para a lama.

Carla ajustou o lenço que envolvia seu braço e já estava completamente encharcado de sangue. Era certo de que precisaria de alguns pontos, todavia isso poderia esperar um pouco mais.

— Sim, eu preciso. — Assegurou, vendo Diana franzir o cenho em preparação para uma discussão.

Fato era que não havia nada que a ladra pudesse lhe dizer para que mudasse de ideia. Além disso, Diana bem sabia que a sua lábia não tinha efeito sobre ela.

— Não é só por você, Diana; é por mim também. Eu fiz uma promessa, lembra?

Como Diana poderia esquecer? Aquiles tinha regras muito rígidas sobre envolvimentos amorosos com clientes, entretanto, fora difícil resistir ao fascínio que Carla Maciel, braço direito do narcotraficante Marcos Alvarenga, lhe instigara. Diana cruzou uma barreira perigosa e foi punida por isso. Entretanto, Aquiles cometera grave de erro de fazê-lo diante de Carla.

Na época, o envolvimento delas não passou de uma noite de prazer, que veio a se repetir meses depois, durante outro trabalho. Até então, não haviam sentimentos envolvidos e Carla não precisava intervir quando Aquiles descobriu o que se passava e quis castigá-la.

A verdade era que, assim como Aquiles, Diana também se surpreendeu com a atitude dela e, muito mais, quando Carla prometeu ao seu tio que, se voltasse a tocá-la, seria um homem morto. Para que a promessa fosse levada a sério, Carla o marcou, deixando uma cicatriz profunda no queixo dele, para que sempre que se olhasse no espelho, Aquiles lembrasse dela e dos limites que não deveria cruzar.

— Eu sempre cumpro minhas promessas, mas quero e preciso dar um fim nisso porque, assim como você, não suporto imaginar perdê-la como perdi tantas pessoas que amava.

— A bagunça é minha, cabe a mim limpá-la. — Diana protestou, embora soubesse que o fazia em vão.

— A bagunça é nossa! — Carla afirmou, deixando claro que não havia espaço para outros protestos.

Ela se voltou para o horizonte escuro, de onde as luzes e o som do motor de um avião vinham.

Estavam em um aeroporto abandonado no meio de uma propriedade rural que, em outra época, tinha sido usado para transportar drogas. Carla conhecia uma dezena de lugares como aquele em todo o país, onde Aquiles não poderia se informar de seu paradeiro.

Enquanto conversavam, Vanessa observava as duas com as sobrancelhas arqueadas e a mão de Cristina na sua. Não sabia o que pensar de tudo que tinha sido revelado, exceto que estava ainda mais magoada com Diana e, agora, a amava muito mais que antes.

A simples ideia de perdê-la novamente a atormentava e estava firme na certeza de que não permitiria que ninguém a machucasse. Nem ela, nem Cristina.

Apertou a mão da namorada e a fitou demoradamente. Queria lhe perguntar onde aprendera a manejar uma arma com tanta destreza, como havia feito mais cedo e de onde vinha toda aquela intimidade com que tratava Carla, porém aquele não era o momento, então resignou-se ao silêncio.

O celular de Carla vibrou e ela o retirou do bolso. Suas sobrancelhas quase se uniram ao ler a mensagem recebida e voltou a guardá-lo, enquanto perguntava para a amiga:

— Por que Dominick Benson está oferecendo um prêmio por você?

A ladra enxugou um pouco do suor na testa. Estava, outra vez, febril, e o vento frio da noite parecia dez vezes mais gelado, então voltou a se abraçar, antevendo a censura da amiga. Explicou devagar:

— Como disse, tirei quase tudo de valor que Aquiles possuía. E não era pouca coisa, você sabe. Porém, não poderia fazer tudo sozinha, então fiz um acordo com Dominick.

— Que tipo de acordo? — A voz dela era cortante.

— A ajuda dele em troca do Coração Púrpura. — Contou, fazendo uma ligeira careta.

A loira se empertigou, alteando a voz, irritada:

— Pode esquecer! Você não vai roubar aquela pedra idiota.

Enquanto ela respirava fundo, fitando o mordiscar de lábio de Diana, Cristina abandonou o silêncio e indagou:

— O que é esse tal Coração Púrpura?

Carla deslizou a mão pela face e afastou alguns fios de cabelo que lhe caíam sobre os olhos, explicando:

— Um diamante vermelho.

Ao seu lado, Diana sorriu, presunçosa. A amiga não era uma apreciadora de jóias e pedras preciosas, principalmente, se envolvesse milhões e uma história sangrenta.

— Não “um”, mas “o” diamante vermelho. Um grande e raro diamante de 10 quilates que pertenceu à uma das maiores monarquias da Europa. A história dele é longa e sangrenta. Ficou desaparecido por meio século, até ser arrematado em um leilão clandestino no início do século passado. — Seu sorriso aumentou, como se fosse uma criança a falar do super-herói favorito. — Há trinta anos, meu pai e Aquiles o roubaram de um colecionador russo. É a coisa mais preciosa que Aquiles possui, foi o que o tornou famoso no mundo do crime e será a sua ruína.

— Uma pedra não vai arruiná-lo — afirmou Carla, semicerrando os olhos de irritação.

Diana distribuiu pequenos abanares de mão, com um sorriso convencido, que ia de orelha a orelha.

— Quando o seu maior rival a tiver, ele se tornará uma piada. Sim, uma pedra irá arruiná-lo. E não precisa ficar de cara amarrada, eu não pretendo roubá-la, porque já a roubei há quatro anos. Aquiles é tão cheio de si, que nunca percebeu que a pedra que possui é uma imitação.

Seu sorriso se alargou e fez uma reverência, como se estivesse em um palco. Aproximou-se da amiga e pousou as mãos nos braços dela, carinhosa.

— Considere uma pequena vingança pela forma como ele me tratou quando soube do nosso envolvimento.

A amiga balançou a cabeça, descrente. Diana era mesmo uma caixinha de surpresas e apesar da raiva que o momento e as decisões que tomou lhe inspirava, não conseguiu deixar de admirá-la ainda mais. No entanto, não permitiu que percebesse seus sentimentos e questionou:

— Devo supor que não cumpriu sua parte no acordo?

— Exatamente! — Ela se afastou, deixando os braços penderem na lateral do corpo. — Devia ter me encontrado com Dominick em Buenos Aires, há três dias.

— Mas com toda essa confusão, você não foi e agora ele está achando que foi usado e enganado. — Cristina voltou a se manifestar.

Diana puxou uma jaqueta da sua inseparável mochila e vestiu, dizendo:

— Ah, não é tão ruim assim. Saber que tem competição deixará Aquiles ainda mais nervoso. Ele começará a cometer erros e eu não sou a única que o quer na lama. Dominick Benson é apenas um entre dezenas de inimigos que ele cativou. 

Tornou a se aproximar da amiga e lhe envolveu o braço.

— Você tem um imã para confusão — Carla se queixou.

— Faz parte do meu charme. — Retrucou.

— Não. Ser convencida faz parte do seu charme. Ser idiota, por outro lado, não é nada charmoso.

A gatuna escondeu uma risada, encostando a cabeça no ombro dela e isso lhe trouxe recordações da última vez em que se viram, em outro aeroporto.

— Sinto muito pelo seu refúgio — falou, com sincero pesar.

— Era apenas uma casa. — Carla recordou, serena.

Uma hora antes, tinham deixado a casa do lago em chamas, apagando quaisquer resquícios de sua presença ali.

— Você falou que aquele lugar era especial porque foi lá que iniciou sua vida com Carolina.

— Sim, mas qualquer lugar é especial com Carol ao meu lado — sorriu, abandonando a expressão zangada de vez.

Por um momento, Diana desejou ter o que ela tinha, um lar para onde retornar e alguém a esperando. Seu olhar cruzou com o de Vanessa e depois com o de Cristina, deslizando até as mãos delas, unidas.

Apesar do beijo que trocaram, do amor declarado, Vanessa jamais voltaria a ser sua. Era um fato. 

— Que droga! Ela vai me matar! — A ladra apertou-se mais no braço da amiga, admirando seu riso solto. — Quando vir o seu estado, Carolina vai querer comer o meu fígado!

— Talvez ela se contente com um dos seus rins — Carla zombou.

Um avião bimotor surgiu no horizonte, iniciando as manobras de pouso, e ocupou a atenção delas até seus motores silenciarem. Dele, saltou um homem alto e magro. Os cabelos ruivos formavam cachos graciosos, enfatizando o rosto gentil.

— Jurava que você tinha matado esse cara! — Diana comentou.

Vanessa sentiu um mal-estar lhe tomar, admirando o rosto bonito e salpicado de sangue da loira. Não conseguia entender como as duas falavam de morte com tanta naturalidade.

— Ele tem suas utilidades.

— Como se derreter pela sua mulher? — A amiga provocou.

— Como pilotar um avião e não deixar que a minha “morena briguenta” saiba que estou neste estado graças a uma certa “ladra beijoqueira”.

Diana gargalhou.

— Neste caso, você foi muito sábia! — Recebeu um peteleco da amiga que, em seguida, estendeu a mão para o recém-chegado.

 

***

 

Vanessa acordou sentindo o vazio ao seu lado.

O som do mar e a luz do sol forte do meio da manhã se infiltravam pela janela aberta, trazendo-lhe uma estranha sensação de paz, embora estivesse muito longe de ter isso, realmente.

Arrastou-se para fora da cama, deixando o olhar passear pelo quarto de paredes brancas, cujo único móvel era aquele sobre o qual dormira. Estavam naquela casa havia quase uma semana e ainda não tinha se acostumado com ela. Não existia calor ali, apesar de ser aconchegante.

O imóvel pertencia à Carla. Segundo Bento, assim se apresentou o rapaz ruivo que as conduziu até ali, primeiro de avião e depois de carro, era uma das muitas propriedades que ela possuía ao longo do litoral do país. A ex-criminosa era dona de uma rede de hotéis e pousadas bastante afamadas. Obviamente, pelo passado criminoso que possuía, ela gerenciava os negócios de forma discreta e evitava situações que poderiam expô-la à companhia de pessoas capazes de reconhecê-la.

Depois do que presenciou na casa do lago, Vanessa ficou verdadeiramente surpresa de que Carla pudesse se dedicar a um trabalho honesto.

A ex-criminosa não viajou com elas. Disse que ainda tinha de tomar outras providências para mantê-las protegidas, enquanto Diana se recuperava. Portanto, Bento cuidaria delas até se reencontrarem dali uma semana.

O rapaz era muito solícito, apesar de um pouco taciturno. Passava a maior parte do tempo ausente, deixando-as à vontade. No entanto, à vontade era tudo o que não se sentiam.

Depois de lhe contar a verdade, Diana mantinha-se distante e arredia. Sempre que manifestava interesse de se aproximar, ela se afastava. Evitava ficar a sós com ela e lhe dirigia a palavra o mínimo possível.

Cristina, por sua vez, também se mantinha um pouco distante, principalmente, depois que Vanessa lhe contou sobre a conversa que teve com Diana e do quanto tê-la por perto e saber a verdade afetava seus sentimentos. Assim, a atual namorada optou por lhe dar espaço para que seu coração descobrisse quem realmente desejava.

Mas as coisas pioraram ainda mais no relacionamento delas.

Na noite anterior, Cristina lhe contou a forma como entrou na sua vida e isso a deixou tão ou mais magoada quanto se sentia em relação à Diana. Tiveram uma forte discussão. Se encontrava tão alterada que quase a agrediu fisicamente, porém Bento interveio.

Passou a noite entre lágrimas, perguntando-se o motivo de atrair mulheres tão complicadas e de índole questionável.

O espelho no banheiro lhe mostrou um aspecto doentio e olhos inchados e vermelhos. Lavou o rosto e encarou seu reflexo novamente. Os lábios curvaram-se em um sorriso irônico. Agora, mais que nunca, estava com os sentimentos misturados e atormentada.

Retornou para o quarto e puxou a porta de vidro que dava para a sacada. O azul do mar preencheu seus olhos. Era a visão de um paraíso. Havia fileiras de coqueiros ao longo da praia e nenhuma casa à vista, por algumas centenas de metros. A faixa de areia branca não estava maculada por pegadas, exceto pelas das duas mulheres sentadas um pouco à frente de onde as ondas finalizavam.

Seu coração bateu descompassado ao vê-las e debruçou-se na balaustrada, suspirando. Os lábios crispados, enquanto desejava fugir delas e de toda a confusão em que estavam envoltas.

 

***

 

Cristina admirava o mar com o princípio de um sorriso.

Havia visto o dia nascer sentada naquele mesmo lugar. Tinha muito em que pensar e uma grande decisão a tomar. A conversa que tivera com Vanessa fora dura e angustiante, mas sentia-se em paz, pela primeira vez, desde que a conheceu. Agora, ela sabia a verdade e, apesar de tê-la magoado, da dor que sentia por isso e do medo que tinha de perdê-la, acreditava que fez o certo.

Como Carla tinha lhe dito, se Vanessa realmente a amasse não importava a forma como entrou em sua vida.

Diana tinha se juntado a ela, minutos antes, exibindo um semblante travesso enquanto deixava o olhar se perder nas ondas. Nenhum som lhe escapou, nem mesmo quando pousou a mão sobre a sua e apertou carinhosamente.

Cristina a admirou por alguns segundos. Era mesmo uma mulher estranha e interessante.

Ao longe, um pescador solitário cruzava as águas em uma jangada. Possuía a pele morena de sol e uma barba longa que deu passagem a um sorriso, quando acenou para elas. Distraída, Diana retribuiu o aceno e Cristina a imitou. Porém, a ladra não tinha retirado a mão da sua.

— Você parece bem hoje — comentou Cristina.

Desde que chegaram ali, a ladra lutava contra a febre do ferimento mal cicatrizado. Seu corpo cobrava o preço pelos excessos. Tinha dias em que estava bem e juntava-se à elas durante as refeições, noutros optava por ficar em seu quarto. Nem mesmo se esforçava em suas provocações costumeiras.

Não escapou a Cristina, o fato de que ela evitava ficar sozinha com Vanessa e permanecia o mínimo possível em sua presença. Era curioso, principalmente, depois de tudo revelado e o modo como Vanessa descreveu o sentimento que compartilhavam.

— Me sinto bem. — Diana respondeu com voz rouca. — Não tenho febre há dois dias.

— Então, por que não veio passar um tempo conosco e nos irritar com suas piadinhas infames? — Tentou sorrir, mas, apesar do tom alegre na voz, a tristeza a preenchia.

— Algo me diz que sentiu falta disso. — Diana comentou.

— Para ser sincera, senti mesmo. Você é tão irritante que a sua ausência é sentida.

— Esse é um insulto bem fofo — caçoou a ladra, abraçando as pernas antes de se colocar de pé.

Ela lhe estendeu a mão, convidando-a para uma caminhada. Cristina desejava solidão, mas acabou por aceitar sua companhia. Enquanto se afastavam, notaram a presença de Vanessa na sacada. A morena se endireitou e afastou-se para o interior da residência sem olhar para trás.

— Ouvi a discussão de vocês ontem. — Diana falou.

— Acho que até os peixes no oceano ouviram.

— Sinto muito.

— Não somos tão diferentes assim, não é mesmo? — Cristina chutou uma conchinha e Diana interrompeu a caminhada, envolvendo seu braço com uma das mãos.

O olhar castanho lhe pareceu perdido e angustiado, circundado por olheiras profundas. Exibia uma palidez doentia, além de estar ligeiramente mais magra.

— Pelo contrário, Cristie. Somos bem diferentes. Aliás, você é uma namorada bem melhor do que eu fui. Você a escolheu e lutou por ela. Eu escolhi por ela, menti e fugi.

— Foram atos bastante desagradáveis, admito. Porém, agora que conheço suas razões, não sei se sou capaz de condená-la. Isso não a exime do que fez, contudo, para mim, torna a situação mais aceitável. — Forçou um sorriso. — Admito que, mesmo não tendo visto isso com meus próprios olhos, tenho um pouco de inveja do amor que você compartilhava com o seu pai.

Fez uma pausa, dando de ombros.

— O meu era um grande filho da puta! — Confessou. — Não fosse isso, eu não teria fugido de casa aos treze anos e chegado até este momento.

Retomaram a caminhada com passos lentos até que, novamente, Diana a fez parar.

— Cristie, me desculpe pelo beijo que te dei. Foi um gesto bem cafajeste da minha parte.

Cristina afastou alguns fios de cabelo, que o vento lhe atirou a face, os lábios se arqueando em um sorriso singelo.

— Ficará magoada se não lhe desculpar?

Pela primeira vez àquele dia, Diana esboçou um sorriso sincero. Assim como Cristina, não tinha conseguido dormir. Sua insônia não tinha nada a ver com a recuperação, mas sim, com o desejo de colocar um fim naquela história com Aquiles o mais rápido possível.

Estar ao lado de Vanessa e Cristina também lhe roubava o sono. Suas escolhas lhe pesavam muito mais agora que a ex-namorada sabia a verdade.

Ficar próximo a ela era terrivelmente doloroso, principalmente, quando recebia um de seus olhares magoados. Também não pretendia lhe dar a oportunidade de retornar ao assunto, nem se deixar envolver pelo desejo de estar com ela e perder o foco do que necessitava fazer para deixá-la protegida.

— Sabia que você tinha gostado!

— Pelo contrário! Odiei — Cristina retrucou, tentando parecer séria, mas acabou por sorrir.

Diana se aproximou, assumindo seu ar provocante.

— Neste caso, terei de me esforçar mais na próxima vez — deu um passo à frente, colando seus corpos e Cristina engoliu em seco, já entreabrindo os lábios para receber os dela.

— Quem disse que terá uma próxima vez, Gasparzinho? — Fez menção de se afastar, porém não foi adiante.

A ladra sorriu. Realmente, não tinha a intenção de beijá-la, embora tivesse ficado abalada pelo beijo que trocaram na casa do lago. Poucas mulheres, e isso se resumia a Vanessa e Carla, foram capazes de deixá-la tão extasiada com um beijo.

A viu dar um passo atrás, mas impediu o movimento, divertindo-se com o receio nos olhos dela.

— Com medo de gostar, loirinha?

Indignada com a troça, Cristina a puxou para mais perto, grudando-se ao seu corpo.

— Acho que é você quem está querendo replay — a surpreendeu, colando seus lábios aos dela, num beijo estalado, e a soltou com uma gargalhada que Diana compartilhou, aceitando a mão que lhe era oferecida para continuarem o passeio.

Ao longe, Vanessa crispou os lábios e cerrou os punhos. Tinha retornado à sacada um minuto após sair e acompanhou o progresso delas pela praia. Sentia-se cada vez mais sufocada e inquieta. Em seu interior, uma briga se desenrolava. Estava magoada e com raiva, mas, também, mais apaixonada.

O problema era que o sentimento era igual para as duas.

 

***

 

— Você não é alguém a quem se possa esquecer facilmente, Diana. Agora, entendo o que se passa no coração de Vanessa.

Diana reprimiu a vontade de fazer uma piada ante o comentário, pois havia notado os olhos marejados de Cristina, que dividia-se entre a vontade de sair andando pela praia e nunca retornar e o desejo de ficar e lutar pelo amor de Vanessa.

— Ela ainda te ama — afirmou para a ladra.

— E eu a ela. — Diana admitiu.

— O melhor que tenho a fazer é me afastar quando toda essa história acabar. Deixarei que ela faça sua escolha com calma, mesmo sabendo que sairei perdendo.

A ladra se pôs de pé. Estavam sentadas sobre uma pedra, cuja metade estava imersa na água. Como o mar era calmo ali, não havia ondas e mergulharam os pés na água salgada e morna.

— Não diga bobagens, loirinha!

— Bobagens? Estou dizendo que pretendo deixar o caminho livre para você!

— E eu digo que acho que passou muito tempo no sol, seu cérebro já deve estar cozinhando ou, talvez, seja a tinta no seu cabelo! — Provocou, então acariciou a face dela. — Não sou a mulher certa para Vanessa. Além disso, volto a repetir…

— “Que não veio para reconquistar o amor dela”. Sei! Você fala muito sobre coisas que não faz. — Cristina se queixou.

Um suspiro audível escapou dos lábios rosados da ladra, que deixou o olhar se perder no horizonte azulado, por alguns segundos, antes de retornar a atenção para ela.

— Tenho pecados demais na bagagem, Cristie. Ficar comigo será sempre um risco. Sim, é verdade que ela me ama. Mesmo que não tivesse dito, saberia pelo brilho em seu olhar. Vanessa nunca soube esconder seus sentimentos de mim, mas ela também ama você. Vejo isso em cada gesto, sorriso e olhar que lhe dirige.

Outra vez, Cristina se perdeu olhando o mar, buscando a calma que não sentia.

— Você sabe que isso deveria fazer de nós inimigas. — Observou.

— Deveria?! — Diana sorriu, com ar provocativo.

— Sabe que sim. Contudo, não consigo sentir raiva ou rancor de você.

— Porque sou linda e fofa? Ou é pelo lindo castanho dos meus olhos?

— Você leva tudo na brincadeira?

Diana chutou a água e respingos tocaram suas pernas. Abandonou a chacota, fitando-a nos olhos, enquanto respondia:

— Não. Mas acho que quando a questão é o amor, não adianta mergulhar em reflexões, fazer mil planos de conquistas ou se apegar aos ciúmes. Se alguém tiver de ser seu, será. Vanessa nos ama, mas cabe à ela escolher. No entanto, apesar de querê-la muito, sei que o caminho que tomei sempre me levará para longe dela.

 

II

 

Uma garçonete lançou um olhar curioso para Carla, que continuou seu avanço pelo bar, desviando de mesas e pessoas. Seus olhos passearam pelo lugar, cuja pouca iluminação passava a falsa sensação de bem-estar e intimidade. Ela parou junto ao balcão, ouvindo o bartender perguntar, enquanto olhava para as suas mãos:

— O que vai querer?

— Nada que você tenha a oferecer. — Ela respondeu, localizando seu objetivo.

Sentada em uma mesa no fundo do estabelecimento, uma mulher encarava uma garrafa de vodka, a qual sequer tinha sido aberta. Ela girava o copo vazio entre as mãos, como se estivesse tendo um diálogo interno sobre se deveria ou não abrir a garrafa.

— Creme e muito açúcar. — Carla empurrou um copo de café sobre a mesa, fazendo a mulher abandonar a contemplação da garrafa para encará-la. — Espero que ainda seja o seu preferido.

Rachel Lorenzzo abriu um sorriso irônico, dizendo:

— Eu tive uma droga de dia infernal e agora está explicado o motivo. Aparentemente, estou participando de um remake de “O Sexto Sentido” e agora vejo “gente morta”.

Com um risinho, Carla puxou uma cadeira e sentou à frente dela.

— Boné e óculos escuros em um bar, à noite. Você é tão discreta! — Rachel continuou com o sarcasmo. Todavia, ela aceitou o café, cujo logotipo no copo indicava que era da sua cafeteria preferida. — O que posso fazer pelos mortos?

Sorveu um longo gole do café e as feições zangadas suavizaram um pouco.

— Você não parece surpresa em me ver. — Carla observou.

— Vaso ruim não quebra. — Retrucou Rachel. — Nunca acreditei naquela queda de helicóptero, embora tenha sido uma ótima encenação. Você deve ter gasto uma fortuna com isso.

— Não tanto quanto imagina. — Carla tomou do outro copo de café, que trouxe consigo.

— Você deve ter uma boa razão para deixar o túmulo e, se veio me procurar, é porque quer me cobrar um dos muitos favores que lhe devo.

Ela se recostou na cadeira, passando os olhos no entorno, e ficou satisfeita ao perceber que ninguém parecia interessado nas duas. Suspirou, fitando os óculos escuros de Carla.

— Desembucha! O que quer?

A ex-criminosa apoiou os braços na mesa. Não tinha receio de se mostrar para Rachel, visto que, como Cristina a descrevera, ela era uma mulher honesta e evitava se relacionar com o mundo do crime, ainda que a sua família tivesse os dois pés nele. Porém, “evitar” nem sempre significava estar “longe”. Não fosse assim, elas não teriam se conhecido. Rachel Lorenzzo também tinha um lado obscuro e, este, era o que as conectava. A relação delas, em outros tempos, poderia ser descrita como uma aliança amistosa.

— Antes de qualquer coisa, meus pêsames. Não posso dizer que sinto muito pelo seu pai, mas realmente sinto pelo seu marido.

Rachel fungou forte, girando o copo entre as mãos, e disse:

— Meu pai era um babaca, você sabe. Deve estar ardendo no inferno. Quanto ao Samuel, obrigada pela consideração. Ele também admirava você, apesar do que fazia para viver.

Passou a mão pelos cabelos longos e bagunçados, exalando forte.

— Agora, vamos direto ao ponto, o que você quer de mim?

— O de sempre: informação.

 

III

 

A fumaça do cigarro de Aquiles se erguia lentamente, enquanto o olhar inclemente percorria o rosto rechonchudo do rapaz sentado à sua frente. Ele suava, assustado. Respirava ruidosamente, liberando o ar por entre os lábios cortados e inchados, de onde sangue fresco escorria.

— Onde ela está? — Gillian perguntou e Max se encolheu ao receber outro soco.

Na esperança de descobrir o paradeiro da sobrinha, Aquiles estava usando todas as armas de que dispunha. Sabia que Diana não cometia erros, nem tinha vínculos afetivos que poderiam induzí-la a um deslize. No entanto, ela estava acompanhada pela ex-namorada que poderia se sentir tentada a entrar em contato com amigos e familiares para informar sobre seu bem-estar.

Vanessa era uma mulher de relações estreitas. Não tinha muitos amigos íntimos com exceção de Beatriz, uma colega de trabalho, e Max, seu vizinho desde a infância. Então, enviou Gillian para pegá-los.

Em meio a dor, Max olhou para Beatriz, cujas lágrimas banhavam o rosto assustado. A moça jurou que nada sabia da amiga, desde o seu desaparecimento, mas isso não a poupou do ecamento.

— Eu não sei! — Chorou ele, que tremia descontroladamente.

Irritado, Gillian balançou a cabeça. Miles era seu amigo havia mais de dez anos e descobrir o corpo carbonizado dele e companhia, entre as cinzas da casa do lago, o tornou ainda mais inflexível. Queria vingança pelo amigo e não estava se poupando de descontar sua raiva nos amigos de Vanessa.

Ele passeou o olhar pela cozinha em que se encontravam, abriu uma das gavetas e retirou um cutelo.

— É o seguinte, se não falarem onde elas estão, vou começar a despedaçá-los como se fossem um pedaço de carne.

Beatriz chorou mais alto, enquanto ele soltava uma das mãos de Max e a puxava sobre a mesa. Descia a lâmina quando o rapaz gritou, desesperado:

— Eu falo!

Interrompeu o movimento a poucos centímetros da pele dele.

— Por favor, eu falo. Eu falo tudo que quiser. Por favor!

Aquiles sorriu, liberando outra nuvem de fumaça.

— Onde elas estão? — Perguntou.

O rapaz engoliu em seco, os olhos cheios de lágrimas.

— Eu não sei!

Gillian voltou a erguer o cutelo e Max berrou:

— Mas posso marcar um encontro!

 

 


Vixe! O caldo engrossou de vez! rs…

Bem, sem desafios esta semana, amores! Alcançamos uma parte do texto em que a edição está me tomando um pouco mais de tempo, pois estou adicionando algumas coisinhas!

Me deixem saber o que acharam do capítulo ou história até agora. Podem clicar numa carinha abaixo ou deixar um comentário. Fico feliz com qualquer um deles!

Beijo grande e até a semana que vem!



Notas:



O que achou deste história?

10 Respostas para 14. Bento

  1. Eu gosto muito desse poliamor em potencial, ainda mais escrito por vc. Tenho certeza que vai ser maravilhosoooo,vai ser não né?já está sendo kkkkk

  2. Amor é um bicho estranho, esse romance triangular é prova disso. Nossos afetos não são unidirecionais e dificilmente vem um por vez, sentir é uma bagunça boa ou ruim.
    Amo sua escrita e estou esperando a Carolina aparecer com um barraco kkkk

    • Gente, que fama tem a Carol!
      Eu ri demais com esse comentário! kkkkkk…
      Nos vemos nos próximo capítulo, moça!
      Beijos!

  3. Ola! Tudo bem?

    Ah, o poliamor… Mesmo na ficção será que funciona? Sei não…
    Boa a sua história… No entanto, não consigo, ainda, entender e aceitar Carla e Carol aqui, já que na outra história elas pareciam ”felizes para sempre”… Sei lá…

    É isso!

    Post Scriptum: Para mim ”A Ordem: O Círculo Das Armas” ainda é a sua melhor história.

    • Oi, Kasvattaja Forty-Nine!

      Estou muito bem, obrigada por perguntar! Espero que se encontre da mesma forma!
      Hehe…

      Que bom que está apreciando a leitura, ainda que não entenda a presença de certas personagens. Carla e Carol, em parte, é um meio de demonstrar o que houve com elas, mas há outras razões.

      Super feliz que tenha gostado de “A Ordem: O círculo das Armas”. “Caçadora” foi escrita em 2017. De lá pra cá, “A Ordem” nasceu e eu realizei o desejo de escrever uma “fantasia” até o fim. Tinha outros romances iniciados no gênero, mas não foram adiante.

      Já que gostou dele, vou esperar sua companhia na história que postarei quando finalizar “Caçadora”. Também é uma fantasia e já adianto que se passa no mesmo universo de “A Ordem”.

      Beijos! 😉

  4. Hehe…
    Amo mto tudo isso…
    k k k da onde saiu Rachel??
    Personagem nova pintando na história.

    O q eu poso te falar Tattah… odeio qdo
    termino de ler o cap. maravilhoso por sinal,
    e sei q vou ter q esperar uma semana.
    Isso não se faz c’as pissoas.

    Bjs,

    • Nadia,

      Não digo nada! kkkk… Rachel não estava no original que tu leu no Wonder, mas essa é a graça de revisitar um texto antigo: brincar com a história e seus personagens.

      Beijo grande e, relaxa, uma semana passa logo! rs…

  5. Aff, tava gostando tanto de brincar de vencer desafios! Só relevo pq a espera é por uma boa causa! 😉

    Essa história é muito boa, chego a achar que é melhor que a história de origem, a trama é mais envolvente, acredito que a culpa é sua e de Diana, afinal Diana é pura envolvência e ela só é essa envolvência toda pq vc a criou.

    Doida para ver Carol, a ciumenta em cena. haha Aliás acho que se não fosse por Carol esse romance não teria a possibilidade de um triângulo amoroso, seria um quinteto hahahahaha

    Até semana que vem, né, fazer o quê?!

    • Preguicella,

      Ganhar é bom, né?! rs… Mas eu sempre tive vontade de ajustar o final dessa história. Na época do Wonder, eu tava totalmente enrolada da vida, com trabalho e outras coisas, e como tinha que entregar um capítulo por semana, ficou difícil desenvolver melhor o texto e explorar algumas possibilidades.

      Talvez por isso, ele tenha ficado guardado por tanto tempo.

      Obrigada pelo carinho, fico muito feliz mesmo de ler seu comentário.

      Sabe, a Diana nasceu um pouquinho depois da primeira versão de “Crimes do Amor”, lá de 2007.

      [Faz tempo… Nossa, perceber a idade é osso! kkkk].

      Mas naquela época ela não era tão despachada, embora fosse um personagem alegre. Só que quando reescrevi “Crimes”, precisei de um suspiro para aquela personalidade sombria da Carla, digo, no tocante a forma como ela vê a vida alheia e encara a morte. E tinha a Carolina, né? O mau-humor dessa menina, precisava ser destroçado. Hehe…

      E fiquei lá, olhando para o computador e pensando como seria a pessoa que quebraria o clima entre as duas… E a Diana resolveu sair do limbo para ganhar nova vida como melhor amiga da Carla e provocadora profissional! rs…

      Beijos e até a quarta-feira!

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