Caçadora

4. Diana

Revisão: Naty Souza e Néfer

 


Max soprou a fumaça do cigarro, observando o vento carregá-la. Era o seu último. Tinha fumado uma carteira inteira, sentado naquele banco de praça. Estava faminto e louco para ir ao banheiro, mas principalmente, estava muito ansioso e preocupado.

Ele não conseguia dormir desde que Vanessa sumira, três dias antes, e vinha se empenhando para encontrar qualquer pista que pudesse levar ao seu paradeiro. Havia conseguido algumas, entretanto sabia que havia chegado ao seu limite. Agora, precisava de ajuda, entretanto considerava a polícia daquela cidade dona de uma incompetência sublime. Então, procurou a única pessoa que, sabia, não mediria esforços para trazer Vanessa para casa.

Quanto tempo fazia que não a via? Ele se perguntou em silêncio.

— Onze anos! — Respondeu em voz alta e sorriu para o vento, que bagunçava seus cabelos longos e rebeldes. Coçou o queixo, coberto por fios negros de um cavanhaque ralo, recordando aquele último e triste encontro.

“Eu te odeio”, foram as últimas palavras que disse para ela. Ainda se lembrava da sensação que lhe tomou o corpo ao pronunciá-las. Assim que findou a frase, soube que era mentira.

Era apenas um garoto, jovem demais para entender as escolhas dela. Estava de coração partido por perder alguém que admirava e em quem se espelhava. No fundo, queria segui-la, queria fazer parte das aventuras que a aguardavam, mas ela o atirou de volta à realidade. Não havia espaço para ele em sua nova vida, nem para Vanessa.

— Ei, moleque!

Max se empertigou, saltou do banco e atirou o baseado no chão. Já que a praça estava deserta e seus cigarros tinham acabado, não viu problema em acender um. Tossiu uma vez, sentindo o rosto afogueado, diante do olhar de reprovação da mulher à sua frente.

— É isso que anda fazendo com os seus neurônios? — A mulher perguntou, com um sotaque suave, oriundo do sul do país.

O rapaz reparou que ela não devia ter mais que quarenta anos. Os cabelos eram negros, com algumas mechas loiras. O rosto era bonito, mas comum; o queixo era um pouco quadrado e o nariz levemente arrebitado, porém, os olhos eram impressionantemente verdes e o mediram de alto a baixo, minuciosamente.

Durante aquele exame, ele não conseguiu deixar de notar que havia algo de familiar naquelas feições, mas ignorou a impressão. Encheu os pulmões de ar e disse, com seu jeito de moleque rebelde:

— Não enche! Vai tomar conta da sua vida! — Apanhou o baseado, mas antes de voltar a colocá-lo nos lábios, a mulher o jogou de volta ao banco.

— Você era mais educado e fofo quando criança — ela tomou o baseado e esmagou com a sola do sapato. — E era mais inteligente, também.

Os olhos de Max se arregalaram percorrendo a face alva em busca do reconhecimento, que não veio.

— Di-Diana?! — Ele perguntou, descrente.

Em resposta, recebeu um peteleco na testa e um sorriso de aprovação. O silêncio que se seguiu era cortado apenas pelo vento que anunciava a aproximação de nuvens chuvosas. Fitaram-se, por algum tempo, até que Max fugiu daquele olhar estranho e afastou-se para que ela sentasse ao seu lado.

— Ninguém me chama assim há muito tempo — Ela disse, cruzando as pernas. Um meio sorriso desenhava os lábios vermelhos. — Que permaneça assim, por enquanto.

O sotaque havia desaparecido completamente e dado lugar à voz macia, de tom alegre, da qual Max se recordava. Ele alisou os cabelos, nervoso. Se sentia incapaz de aceitar aquela mudança radical.

— C-como devo te chamar, então?

Ela deu de ombros.

— Do que quiser, não faz diferença — Afastou o olhar para a rua, então sorriu, retornando para ele. — Ana. Era assim que você costumava me chamar, não é mesmo? Me chame de Ana, então.

Ele inclinou a cabeça, concordando. Limpou a garganta, brincando com um dos botões da camisa, inconscientemente.

— Não te reconheci! Você está tão diferente do que me lembro.

Diana riu alto, como havia anos não fazia. Pegou a mão dele entre as suas e apertou com firmeza, quando Max cobriu as suas com a outra mão. Por um instante, ele viu a mulher que tinha conhecido na infância, aquela que o levava ao cinema, ria das suas histórias e o tinha ajudado a escapar do bullying.

— Não me olhe assim, moleque! Não se assuste. Isso é só maquiagem — apontou para o próprio rosto e se afastou, achando engraçado o rubor na face dele.

— Sério? — O rapaz ergueu a mão para lhe tocar a face, mas ela o afastou com carinho.

— Sério. — Diana garantiu, depois explicou: — É possível ser qualquer um, se tiver as ferramentas necessárias e o talento.

Max se encolheu no banco. De repente, achou algo muito interessante para analisar em suas unhas.

— Por onde você andou? O que fez durante todos esses anos? — Tinha prometido a si mesmo que não faria aquelas perguntas, contudo não conseguiu evitar. A curiosidade era mais forte que a sua vontade e, talvez, jamais voltasse a vê-la de novo.

Diana desviou o olhar para a rua e deixou um suspiro cansado escapar. Quando sentou naquele banco, ainda não sabia a razão de ter ido até ali, atendendo ao pedido de Max. Mas quando o viu, soube que era saudade. Após tantos anos longe, depois do que tinha acontecido em Madri, enquanto usava a pele e alcunha de Malena Villalobos, ansiava por um pouco daquilo que deixara para trás quando seguiu Aquiles.

Aqueles poucos minutos estavam sendo bons e também dolorosos. A presença do rapaz ao seu lado, só servia para lembrá-la do que perdeu e jamais voltaria a recuperar.

— Por que você me chamou? — Desprezou a pergunta dele.

De que adiantaria lhe contar a verdade? No fundo, queria que Max continuasse guardando um pouco da admiração que lhe dedicava na infância, que ainda a visse como a Diana de antigamente, embora soubesse que já não era assim.

— Por que não me responde? — Ele devolveu, sentindo a raiva e o abandono misturarem-se em seu interior. Finalmente, se libertando após tantos anos. 

Quando a conheceu, era apenas um menino gordinho, que sofria bullying pelo excesso de peso e pela inteligência acima da média. Ele morava em frente à casa da namorada dela e o convívio foi inevitável, já que vivia enfiado na casa de Vanessa. Seus pais costumavam deixá-lo aos cuidados dela, desde que se mudaram para o bairro.

Não entendia a razão, mas Diana gostava dele. Assim como Vanessa, ela lhe prestava atenção. Nunca ria de suas trapalhadas, nem reclamava quando começava a falar sobre ciência, um assunto que entediava a maioria das pessoas, lhe rendia provocações e apelidos maldosos na escola.

Ele amava as duas como se fossem suas irmãs mais velhas e, quando Diana “morreu”, sentiu-se tão devastado quanto Vanessa. Não conseguia aceitar aquela perda, nem a explicação da polícia de que ela tinha se suicidado, atirando o carro contra a mureta de proteção de uma ponte.

“Há testemunhas”, a polícia disse.

No entanto, seu coração rebelde se recusou a acreditar. Talvez por ser tão jovem e inexperiente, não conseguia entender o desespero que levava um ser humano a se autodestruir. Não conseguia enxergar a tristeza que as pessoas diziam ter visto no olhar dela nos dias que antecederam sua “morte”.

Para ele, Diana era a pessoa mais alegre que conhecia. Era claro, naquela época, que estava triste com a morte do pai, mas jamais tiraria a própria vida. Então, decidiu provar que a polícia tinha se enganado e usou de todos os recursos que um garoto gênio poderia dispor.

— Já faz muito tempo — ela disse, atraindo seu olhar, novamente. — Você está bonitão! Aposto que tem um monte de namoradas.

— Por favor, não mude de assunto. Não sou mais criança. Pelo menos, desta vez, me conte a verdade — olhou-a fundo nos olhos, tão diferentes dos que lembrava. Eles tinham a cor errada e uma frieza que lhe doeu na alma. 

Ainda se sentia o mesmo garoto bobo e sonhador, que invadiu o sistema de vigilância de trânsito e baixou o vídeo do acidente que matou sua amiga, desejando provar que aquela tragédia tinha sido apenas isso, um acidente, e, assim, levar um pouco de paz a sua outra amiga, Vanessa.

Assistiu aquele vídeo uma centena de vezes. Baixou todos os vídeos do percurso que Diana fez naquele dia. Tinha de haver alguma prova de que o carro apresentou problemas durante o trajeto. Mas não havia nada.

Por fim, acabou chegando à mesma conclusão que a polícia. No entanto, algo ainda o incomodava. O corpo nunca foi encontrado, enterraram um caixão vazio.

Baixou todos os vídeos possíveis do entorno do rio e após dias vendo-os, finalmente, a encontrou. Diana saía de uma lancha em um pequeno píer de uma propriedade particular, cinco quilômetros rio abaixo. As imagens vinham de uma câmera de trânsito da rodovia. Estavam um pouco desfocadas, mas era ela, tinha certeza.

Ela estava acompanhada por um cara vestido com roupas de mergulho e carregando um cilindro. Entrou em um carro luxuoso, que já aguardava no píer, e se foi.

Max não conseguia conter sua felicidade. Diana estava viva! Mas se era assim, porque permitiu que a dessem como morta? Ele precisava saber de tudo antes de contar para Vanessa, então seguiu as pistas. Primeiro, a placa do carro o levou a uma empresa de aluguel de veículos. Invadiu o sistema, acessou o GPS do veículo e descobriu seus movimentos no dia em que pegou Diana. Pista a pista, o levaram até um quarto de hotel em São Paulo, onde a encontrou depois de fugir de casa e usar todas as suas economias para chegar até lá.

 

— Você ainda é uma criança, Max. Um dia vai entender.

Diana lhe disse naquele dia. Estava assustada por sua farsa ter sido desmascarada tão facilmente pelo garoto. Temia o que poderia acontecer com ele se descobrissem o que sabia.

— Eu nunca vou entender!

Ela baixou a cabeça, dando-se por vencida ou, talvez, cansada demais para discutir com um garoto de treze anos.

— Você não pode contar para ninguém. Entendeu?

— Mas a Vanessa precisa saber — ele chorou.

— Principalmente, ela! Max, eu me meti em encrenca. Fiz um acordo com pessoas muito ruins e para isso tive de fingir minha morte.

— Por quê?

Ela se aproximou, apertando os ombros dele com força.

— Porque Vanessa iria querer vir comigo e eles a usariam contra mim. A vida dela estaria sempre em risco. Entende? Não posso permitir que a machuquem.

— Mas ela está sofrendo.

— Eu também estou! — Ela berrou, as lágrimas lhe chegando aos olhos. — Mas o sofrimento dela irá passar. Ela vai me esquecer e seguir adiante. O meu está só começando. Jamais esquecerei o que deixei para trás. Você é capaz de entender isso?

 

Como ela havia dito, Max era apenas um garoto. Havia muito que não era capaz de entender ainda. Diana lhe deu dinheiro para voltar para casa e o acompanhou até a rodoviária. O fez prometer que não contaria nada e ele cumpriu a promessa, e fez mais que isso também.

Apesar da raiva e decepção que sentia, a manteve informada sobre a ex-namorada e, tinha quase certeza, de que ela havia dado um jeito em Mariana. Pois, logo depois que lhe enviou um e-mail, contando sobre a perseguição e ameaças que ela fazia a Vanessa, a moça desapareceu da vida dela de vez.

 — Coisas. Algumas boas, outras ruins. Só coisas! — Diana respondeu, voltando a seriedade. — Talvez um dia, possamos sentar aqui outra vez e lhe contarei tudo o que deseja saber. Por onde andei, as coisas que fiz, as pessoas que fui. Porém, agora, assim como naquele dia, não posso. Para nossa segurança, meu tempo aqui é curto. Então, fale de uma vez a razão de ter me contatado. Você não me envia um e-mail há quase dois anos.

Max engoliu em seco, contrariado. Contudo, obedeceu. Afinal, estava mesmo se desviando do objetivo daquele encontro.

— Ela sumiu — revelou e observou a transformação dela.

A frieza daqueles olhos desapareceu, dando lugar a um brilho assustado. Os punhos se cerraram, os lábios se comprimiram.

— O quê? — Ela perguntou, o sangue congelado em suas veias.

— Ela sumiu. — Max repetiu, deixando os ombros se curvarem, ainda mais.

— Quando? — Diana quis saber, deixando o susto dar espaço a uma expressão de ódio na face estranha.

— Aconteceu há três dias. — Max explicou. — Era madrugada, eu estava voltando de uma festa e vi o portão aberto. Achei estranho, mas resolvi fechar. Foi quando notei que a porta estava escancarada. Entrei na casa e ela não estava. Havia algumas coisas reviradas, restos de um jantar… O carro da namorada dela estava na garagem, mas nem sinal delas.

— Namorada?

Ele ficou vermelho, de repente.

— É, sabe, aquela pessoa que te faz feliz, sai com você, faz carinho, beija, e não parte seu coração fingindo a própria morte. — Max respondeu, deixando vir à tona, outra vez, sua revolta com as ações dela.

Por um momento, o barulho do vento e dos carros em ruas laterais foi tudo o que ouviram. Ele continuou encarando Diana com ar de desafio até se dar conta de que tinha alcançado seu objetivo e a magoado.

Diana endireitou-se, recostando-se no banco e Max assistiu a dor moldar os olhos dela. Afinal, ela tinha lhe dito a verdade naquele quarto de hotel: jamais esqueceria Vanessa.

— Elas estão juntas há alguns meses. Cristina é legal e a faz feliz — Ele continuou, com voz baixa. Esperou que ela se manifestasse a respeito, entretanto Diana havia voltado a ser a estranha. O fitava tão friamente quanto possível, à espera de mais detalhes. — Eu chamei a polícia, mas eles não têm ideia do que aconteceu.

Ela limpou a garganta e ficou de pé. Enfiou as mãos nos bolsos da calça e alguns pingos de chuva tocaram sua face. Logo, o céu desabaria sobre suas cabeças, como os trovões ao longe anunciavam.

— Eu vou cuidar disso. Vanessa vai voltar para casa, em breve. Prometo!

— Isso tem a ver com você, não tem? — Ele inquiriu, convencido de que estava certo.

Diana percorreu os traços daquele rosto rechonchudo. Era um homem, mas ainda parecia um menino e, outra vez, ignorou sua pergunta.

— Obrigada por me chamar, Max. Cuide-se! — Começou a se afastar, mas ele pegou sua mão, impedindo o avanço.

— Traga-a de volta — pediu, depositando um pendrive na mão dela. — Isto é tudo que consegui. Invadi as câmeras de segurança, como da outra vez.

— Por que não mostrou isso para a polícia? — Ela quis saber.

— Para os imbecis que caíram naquela sua ceninha fajuta de suicídio no estilo Thelma e Louise? Não mesmo! Eu era uma criança e te encontrei, enquanto os paspalhos estavam jogando dominó na delegacia. — Jogou os cabelos para trás, permitindo que ela visse uma fúria momentânea, então baixou o olhar. — Se eu tivesse sido mais atento… Os caras a estavam seguindo há dias.

Diana suspirou longamente, fitando o pendrive, antes de retornar a vista para ele.

— Não se culpe por isso, moleque. Ninguém que leva uma vida normal e tranquila, espera ser seguido e sequestrado. Sim, é por minha causa que a pegaram. — Admitiu.

— O que você fez? — Ela se aproximou, devagar. Sorriu por ter de ficar na ponta dos pés para beijar a face dele e se afastou dizendo:

— Sobrevivi.

 

***

 

Diana se jogou na cama e olhou para o teto branco, com manchas de infiltração, de um motel à beira da estrada. Fora do quarto o céu parecia estar desabando em um pranto doloroso e intenso, entrecortado por trovões e raios.

Ela aninhou-se ao travesseiro soltando um longo suspiro ante o cansaço que a tomava. Seu corpo, praticamente, implorou por uma cama, afinal tinha dirigido durante toda a noite para encontrar Max que, mesmo não tendo deixado claro os motivos para pedir um encontro, foi enfático em afirmar que era urgente.

Durante todos aqueles anos, ele nunca pediu para vê-la. Limitava-se a lhe enviar informações e, às vezes, algumas fotos de Vanessa. Ela nunca pediu que fizesse isso, mas quando ele a encontrou em São Paulo, deu-lhe um endereço de e-mail através do qual poderiam ficar em contato. Imaginou que ele jamais o faria, pois tinha ficado muito magoado. No entanto, meses depois, teve uma agradável surpresa em sua caixa de entrada e, desde então, uma ou duas vezes por ano, Max lhe dava notícias.

Ela puxou o travesseiro sobre a face e o apertou com força. Estava preocupada com Vanessa. Aquiles tinha ido longe demais ao sequestrar sua ex-namorada, todavia, Diana não poderia fingir que não sabia o que esperar quando aceitou trabalhar para ele. Aquiles era uma víbora traiçoeira, sua amiga Carla sempre a alertou para nunca fechar os olhos para ele e, embora contasse vantagem sobre ser esperta e estar preparada para as artimanhas do chefe, Diana acabou deixando que o orgulho a cegasse e isso quase lhe custara a vida.

Jogou o travesseiro para o lado, ainda não era o momento para tirar um cochilo. Se colocou de pé, pegou o notebook na mochila e o ligou, enquanto observava a chuva tocando a janela, trazendo-lhe recordações da traição de Aquiles, em Madri, na última vez em que assumiu a identidade de Malena Villalobos.

 

Ela estava sentada na sala de interrogatório, muito ereta e com olhar fixo na parede à frente. Tinham lhe dado roupas limpas após a perícia, mas seu rosto ainda continha gotas de sangue seco. Sentia-se tão devastada quanto no momento em que a prenderam. Os cabelos, em desalinho, caíam sobre a face alva, ocultando parcialmente os traços harmônicos.

Desde que ali chegou, não emitiu nenhum som. E o único momento em que abandonou a expressão vazia, foi quando alguém lhe ofereceu água. Sempre que fechava os olhos, via o corpo ensanguentado de Aleksey, o pânico marcado em seus olhos e a expressão de dor. Não era o primeiro corpo que via, mas com certeza, tinha sido uma visão assustadora.

Seu estômago ainda se contorcia, desejando pôr o conteúdo para fora, contudo não havia mais nada nele.

Era uma mulher fria, quando estava executando seu trabalho. Pouca coisa a surpreendia. Mas aquilo tinha sido diferente. Nunca soube lidar com a morte, por isso manteve-se em silêncio, embora sua mente estivesse a todo vapor; trabalhava em busca da verdade. Já a tinha encontrado, entretanto ainda se recusava a aceitar que pudesse ser tão simples e, também, porque não fazia sentido.

— Desculpe, o que disse? — Ela saiu do torpor, encarando, pela primeira vez, o homem de pé à sua frente.

Por instantes custosos, o fitou como se estivesse diante de uma pedra, então se forçou a se manter concentrada, evitando retornar para as lembranças do corpo de Aleksey. O homem de pé do outro lado da mesa não era bonito, todavia possuía algum charme e lábia o que, com certeza, tinham lhe permitido a entrada na delegacia sem grandes questionamentos. Ele vestia um terno de grife e sapatos italianos que valiam mais que o salário do mês de todos os policiais presentes na delegacia.

Ele desabotoou o paletó e alisou a gravata, enquanto passeava o olhar pela sala minúscula e mal ventilada, claramente satisfeito pela ausência de câmeras. Sorriu, irradiando uma confiança quase assustadora.

Algo naquele sorriso desagradou Malena, deixando-a mais alerta.

— Srta. Villalobos, um amigo em comum solicitou os meus serviços. Pediu-me que cuidasse de você com esmero. — Disse o homem, voltando a exibir uma fileira de dentes perfeitos.

— Está bronzeado demais — Malena comentou.

O advogado franziu o cenho, confuso, e ela prosseguiu:

— Um novato, não é mesmo? Seu primeiro trabalho?

Ele ajustou o nó da gravata e limpou a garganta. Aquela mulher era uma lenda no mundo do crime e ele almejava se tornar uma também.

— Por que acha que é a minha primeira vez? — Ele quis saber, incapaz de escapar à curiosidade que o comentário dela gerou.

Malena deu de ombros, com um sorriso presunçoso. A profissão a qual se dedicava exigia que fosse mais observadora que a maioria das pessoas e era muito boa nisso. Ela explicou devagar, tentando observar as reações do advogado:

— Porque você está parecendo um cara saído de um pôster de bronzeador. A tonalidade do seu rosto não combina com a das mãos. Assim como, essa gravata barata contrasta com os sapatos, caríssimos, que está usando. E essa é uma das piores pinturas de cabelo que já vi. Preciso continuar? — Ela mostrou um sorriso presunçoso. — Quem foi o idiota que te deixou sair assim?

O advogado olhou para a porta e sorriu, divertido.

— Estou impressionado — disse, por fim.

Ele tamborilou os dedos na mesa, pensativo, antes de contar:

— Não sou novato nesta profissão. Para ser sincero, disfarces não são um hábito. Prefiro a boa e velha máscara.

Malena se inclinou um pouco, as algemas fazendo ruído sobre a mesa.

— Então, o que está fazendo aqui? — Indagou.

Ele limpou a garganta, fechando a mão sobre a mesa.

— Preciso saber, exatamente, o que você disse para a polícia.

— Não há nada para dizer — Malena respondeu com um olhar enfastiado, todavia suas mãos tremeram, e ela as uniu para que o advogado não o notasse. Um sabor amargo se espalhou na boca dela e a voz soou estranhamente rouca e distante. — Não sei o que aconteceu. Perdi os sentidos e, quando acordei, o rapaz estava morto. É tudo.

O advogado meneou a cabeça e voltou a sorrir. Depositou a maleta de couro negro sobre a mesa e a abriu, com gestos teatrais. Disse:

— Por favor, me permita preencher as lacunas.

Malena se inclinou mais um pouco, curiosa.

— Sabe o que aconteceu?

— Claro, — ele sorriu — eu estava lá.

As sobrancelhas dela uniram-se, demonstrando confusão.

— Era um trabalho simples. Nada que eu já não tivesse feito. Quando você e o bom doutor chegaram, eu já estava no apartamento, escondido no armário. Esperei que você o drogasse e obtivesse as informações que buscava, então saí do meu esconderijo, a dominei e a entorpeci também.

Malena engoliu em seco, com a sensação de uma pedra a afundar em seu estômago. Não gostou de imaginar o que ele diria a seguir.

— Depois disso, foi fácil. Precisava arrumar a cena. Revirei alguns móveis, quebrei algumas coisas… Foi rápido, então o doutorzinho acordou e as coisas se complicaram. Nós lutamos, os vizinhos ouviram a gritaria e os objetos caindo e quebrando pela sala. Para um magrelo rato de laboratório, até que ele era bem forte.

A crueldade ficou evidente no timbre frio com o qual ele narrava os fatos. Os lábios estavam curvados em um meio sorriso.

— Sabe, o doutor gritou como um bebê, quando a minha faca rasgou seu peito. — Ele fez um gesto, como se representasse a cena que descrevia. — A próxima era você. Tinha de fazer parecer que você o matou e se sentiu tão culpada que cortou os próprios pulsos. Mas a polícia chegou e tive de fugir.

— E agora veio terminar o serviço — Malena concluiu, unindo as mãos com mais força.

Ele sorriu, deixando que visse o conteúdo da maleta. Uma pistola com silenciador acoplado ao cano.

— Você está em uma delegacia! — Ela recordou.

— E isso torna as coisas mais divertidas — riu ele. — Ousadia é a sua marca, não é mesmo? Também será a minha.

— Por quê está fazendo isso?

— Porque a sua cabeça vale meio milhão, é por isso. — Ele pegou a arma e apontou para o peito dela. — Antes que eu me esqueça, Aquiles pediu para dizer que o seu contrato acabou.

Ele sorriu, antecipando o prazer de lhe roubar a vida, então ela o surpreendeu. Malena esticou os braços, em um movimento rápido, atirando a arma para o lado. Envolveu o braço dele com ambas as mãos e o puxou sobre a mesa, fazendo com que batesse o rosto na madeira um par de vezes. Contudo, o assassino se livrou das garras dela ao rolar para o lado.

O sangue escorria farto do nariz dele, que deu a volta na mesa e a socou, fazendo com que caísse sobre a cadeira, que tombou, levando-a ao chão.

O advogado assassino, correu para recuperar a arma, que estava caída junto à porta, contudo Malena atirou-se em suas pernas. Os dois rolaram pelo chão, disputando a posse do objeto mortífero. Um tiro foi disparado e acertou uma das lâmpadas. Outro acertou o vidro da porta, alertando os policiais para o que se passava lá dentro.

O terceiro acertou Malena no ombro, mas ela estava cheia de adrenalina. Conseguiu atirar a arma para longe, outra vez, então girou o corpo e enlaçou as pernas na cintura do assassino, enquanto usava as algemas como um garrote, enforcando-o.

Quando os policiais invadiram a sala, ele já estava desacordado e ela caminhava para a inconsciência também, enquanto o sangue vertia intensamente de seu corpo.

 

Um trovão a trouxe de volta ao quarto. Jogou-se na cadeira diante do computador e inseriu o pendrive que Max lhe deu. Havia feito escolhas erradas em nome do amor e, agora, Vanessa sofria as consequências, mas Aquiles iria sofrer muito mais.

 

***

 

Logo o despertador tocaria e acordaria em sua cama, nos braços de Cristina. Tomariam o café da manhã entre beijos e sorrisos e seguiriam para mais um dia de trabalho rotineiro. Era o que Vanessa pensava todas as manhãs e Cristina deu voz aos seus pensamentos.

— Achei que tivesse sido um pesadelo, mas ainda estamos aqui — falou, com voz arrastada. Ergueu a cabeça, que estava apoiada em seu ombro, e coçou os olhos durante um bocejo.

O colchão da cama cedeu um pouco mais, quando Cristina se afastou e ficou de pé, esticando os músculos. Um hematoma em tons de roxo se espalhava no canto da boca dela, onde também havia um corte em fase de cicatrização. Era o troco “carinhoso” que o sequestrador mais jovem, que se chamava Juan, o mesmo que Vanessa batizou, mentalmente, de imbecil, tinha lhe dado.

O motivo da agressão foi a tentativa de fuga delas, logo que chegaram ao cativeiro, quatro dias antes. Cristina aproveitou a distração do “imbecil” com um gato que derrubou uma lata de lixo e acertou um chute, certeiro, na virilha dele. Quando ele se curvou, caindo de joelhos e gritando uma quantidade, quase absurda, de palavrões em castelhano, a moça gritou para Vanessa correr para os portões ainda abertos.

As duas foram engolidas pela escuridão da madrugada e correram sem olhar para trás.

— Continue! — Cristina gritava para ela e Vanessa se forçava a avançar um pouco mais pela rua deserta. Mesmo quando sentiu os pulmões queimando pelo esforço, ela não parou, nem soltou a mão da namorada.

A propriedade para a qual tinham sido levadas era grande e isolada, ladeada por uma mata. Cristina a fez pular a cerca que separava a pista da mata, mas antes que ela tivesse a oportunidade de seguir Vanessa, um dos bandidos atirou o carro sobre a proteção e a moça foi jogada no asfalto.

Cristina começava a se erguer quando o sujeito desceu do carro e apontou uma arma para a cabeça dela, ameaçando atirar se Vanessa não se entregasse, o que a professora fez sem pestanejar.

Quando retornaram para o cativeiro, Cristina foi atirada ao seu lado no chão de um aposento estreito e escuro, ela encolheu-se ao receber um chute do sujeito do qual tinham escapado. Vê-la tão frágil magoou Vanessa, que tentou protegê-la, partindo para cima dele. Os dois rolaram pelo chão durante alguns segundos, então Gillian os afastou.

 

— Vou adorar rasgar sua garganta! — Juan proclamou, enxugando o sangue dos arranhões que ela lhe deixou no rosto.

— Talvez seja eu a rasgar a sua! — Vanessa devolveu, estranhando sua própria coragem. Não era mulher de ameaças, muito menos, de briga.

Juan ameaçou partir para cima dela outra vez, mas Gillian o arrastou para fora do quarto.

— Esse daí é um péssimo sujeito para ameaçar, amorzinho — Miles, informou. — Mas foi divertido vê-lo apanhar de uma mulher. — Sorriu, se encaminhando para a porta.

— Espere! O que vocês querem conosco?

Ele se voltou, ainda sorrindo.

— Malena, amorzinho. Nós queremos Malena. Ela virá à sua procura e estaremos esperando. Sejam espertas e obedeçam, se quiserem sair vivas daqui. — Abriu a porta.

— Espera! Do que está falando? Não conheço nenhuma Malena! Pegaram a pessoa errada.

Miles ampliou o sorriso. Assim como Gillian, ele era um sujeito grande e musculoso. No entanto, tinha um rosto gentil e um sorriso bonachão o que, invariavelmente, fazia com que as pessoas o subestimassem.

— Nós nunca erramos. Ela virá! — Fechou a porta, e o som da chave girando na fechadura causou arrepios nas duas mulheres.

 

Cristina se enfiou no banheiro estreito e, um minuto depois, Vanessa ouviu o som do chuveiro. Pelo menos, podiam se refrescar e cuidar da higiene pessoal. Todas as manhãs, Miles ou Gillian, levavam alimentos frescos para elas. Era o único contato que tinham com seus sequestradores.

Entravam mudos e saíam ainda mais calados, ignorando as perguntas de Vanessa, que insistia em dizer que não conhecia a tal Malena. E, quando a porta se fechava atrás deles, as lágrimas forçavam caminho através de seus olhos.

Naquela manhã não foi diferente. Cristina saiu do banheiro, já vestida e com o corpo ainda úmido. Se juntou a ela na cama, envolvendo-a em um abraço apertado.

— Eu não entendo! Por quê? — Vanessa repetia baixinho, com voz entrecortada.

Cristina a puxou para mais perto, esmagando-a em seu abraço.

— Tem certeza de que não conhece essa tal Malena? — Perguntou.

Vanessa se libertou e ficou de pé, tomada pela raiva. Começava a ver a dúvida no olhar da namorada. Não era primeira vez que fazia essa pergunta.

— Já disse que não a conheço! Por que não acredita em mim?

Cristina também se pôs de pé, passando a mão pelos cabelos longos e úmidos. Então, voltou a puxá-la para si.

— Desculpa. Mas está ficando difícil de acreditar que não a conheça.

Vanessa a empurrou e deu um passo atrás.

— Amor, — Cristina passou a mão na testa, procurando as palavras certas — não estou te acusando, mas é que eles parecem estar bem certos de que conhece essa mulher.

— Já disse, mil vezes, que nunca ouvi falar nessa criatura!

Cristina insistiu, com voz suave:

— Talvez a tenha conhecido com outro nome. Sei lá! Uma ex-namorada, talvez. Pense, amor!

Vanessa escondeu o rosto entre as mãos, exasperada.

— Conto nos dedos, de uma só mão, as namoradas que tive, incluindo você. Uma noite de sexo não é motivo para um sequestro e sei, muito bem, onde todas as minhas ex-namoradas estão e como se chamam.

— Tem certeza de que não recebeu nenhuma carta, e-mail, telefonema de uma pessoa estranha? Desculpe, mas temos que explorar todas as possibilidades. Se conseguirmos entender o que está se passando, talvez consigamos sair daqui.

— O que está se passando é um grande equívoco, isso sim. Eles pegaram a pessoa errada, Cris!

Depois daquela conversa, Vanessa se trancou em seu mundo particular. Não queria discutir com Cristina e acabou por rejeitar todas as suas tentativas de puxar conversa. Estava magoada, pois via em seu olhar, cada vez que tocava no assunto, que já não acreditava nela.

 

***

 

A noite tinha chegado, quando Gillian foi buscá-las. Era a primeira vez que saíam do quarto, desde que foram levadas para aquela casa. Vanessa ficou aliviada por poder esticar as pernas e colocar os olhos em algo mais do que aquelas quatro paredes em tons pastéis. Ao seu lado, Cristina demonstrava o mesmo alívio.

Durante o caminho que fizeram até o escritório, Vanessa pôde observar melhor o lugar onde estavam. Graças às janelas altas e largas, presentes no corredor que seguiam, pôde visualizar os jardins iluminados por postes de lâmpadas amareladas e os muros altos com câmeras em pontos estratégicos. Homens armados patrulhavam o lugar.

Quando chegaram, ela não tinha reparado em nada daquilo, graças ao nervosismo e medo.

— Isso tudo é para nós? — Não conseguiu evitar de perguntar.

Gillian riu, enquanto abria a porta do escritório.

— Embora vocês duas sejam um tanto escorregadias, não! Isso é para Malena. — Explicou ele.

Os lábios de Vanessa se apertaram, revelando a raiva que a inflamava.

— Mas quem diabos é essa mulher e o que ela tem a ver comigo?! — Ela gritou, para depois se sobressaltar quando alguém respondeu:

— Tudo!

Ela e Cristina buscaram o dono da voz, mas não havia ninguém além de Miles naquele cômodo.

— Traga-as para mais perto — ordenou a voz, e Gillian as empurrou até a mesa no centro da sala.

Notaram o computador com a câmera ativada. A tela estava escura, mas ainda podiam visualizar a sombra de um homem. Ele tinha um forte sotaque francês, que se acentuou quando continuou a falar com uma mistura de deboche e admiração:

— Ah, você é mais bonita do que me lembrava, Vanessa. Entendo, perfeitamente, a razão dela ter se mantido a par de todos os seus passos.

— Ela, ela, ela! — A moça exasperou-se, erguendo-se da cadeira em que Gillian a tinha feito sentar. — Vocês ficam repetindo que essa mulher virá me buscar, mas eu não conheço nenhuma Malena! Quando vão entender?! Vocês pegaram a pessoa errada!

O homem no vídeo riu alto, antes de explicar:

— Nós não a pegamos por engano, Vanessa. Você e Malena têm uma história. Perdoe-me por não ter esclarecido antes. A chamei assim por tantos anos, que acabei esquecendo seu verdadeiro nome. Você a conhece como Diana.



Notas:



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4 Respostas para 4. Diana

    • Oiii, Carla!

      Nossa, Crimes é o meu queridinho. Também não poderia ser diferente, já que foi o primeiro que escrevi e postei… rs… A Diana é outro personagem pelo qual tenho muito carinho, então não poderia deixar a história dela escondida nas entrelinhas de Crimes por muito tempo. Espero que você goste e se divirta com o que está por vir.

      Beijão! :*

    • Oi, Meg! Encantada e muito grata com a sua companhia nesse texto. Garanto que a diversão está só começando. rs…

      Te vejo no próximo capítulo! :*

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