Caçadora

8. Olívia

 

A porta do táxi se fechou com um pequeno estrondo e as três mulheres o observaram partir, circulando devagar pela rua quase deserta. O motorista, um simpático senhor com um bigode grande e branco, que lembrava o personagem Leôncio do Pica-pau, as conduziu até ali falando sem parar sobre as belezas da cidade.

A alegria do homem era tão contagiante que, por alguns instantes, Vanessa se sentiu uma turista em viagem de férias e até ficou curiosa para conhecer os locais dos quais ele falava. Mas uma rápida olhada para o banco do passageiro, ao lado dele, a trouxe de volta a realidade.

Diana conversava com ele, animada. De vez em quando, fazia perguntas sobre alguns locais e atrações. Durante todo o tempo, um sotaque ehol acompanhou suas palavras e quando “Leôncio” perguntou algo para o casal no banco de trás, com olhar fixo no retrovisor, ela apressou-se a dizer que não falavam português.

— Que foi? — Diana indagou, notando o olhar insistente das duas.

Estavam em uma das principais avenidas do centro da cidade, onde alguns turistas se arriscavam a visitar as poucas lojas abertas, vez ou outra, correndo para escapar da chuva fina que caía insistente até chegarem em outro estabelecimento.

— Não consigo parar de me perguntar quem é você de verdade — Vanessa respondeu, simplesmente. Observava os olhos castanhos por trás das lentes grossas dos óculos. Dirigiam-se para todas as direções, analisando com minúcia cada indivíduo presente na rua, como se estivesse à espera de um ataque.

Uma ideia desagradável lhe ocorreu e deu voz à ela, perguntando:

— Foi por ela que você armou aquele circo?

A testa de Diana vincou-se. Estava absorta, observando o carro estacionado na esquina e apertando a chave que Tito lhe dera, no bolso da calça. Porém, a fitou com atenção, enquanto se abrigavam debaixo do toldo de uma cafeteria.

— O que quer dizer? 

— Não se faça de idiota! — Vanessa reclamou.

— Assim você me magoa. — Diana fingiu-se ofendida e a morena revirou os olhos.

— A loira na foto, foi para ficar com ela que armou a sua morte?

Os olhos de Diana se abriram um pouco mais, enquanto absorvia o real significado da pergunta. Ela riu, os ombros balançando suavemente. Seria mesmo possível que estivesse vendo ciúmes nos olhos e palavras de Vanessa? Rejeitou a ideia e a esperança pueril que lhe trouxe, todavia não conseguiu evitar provocá-la um pouco:

— E se tiver sido?

A resposta veio em forma de um tapa que, novamente, lhe arrancou os óculos de grau. Desta vez, as lentes se partiram, deixando um amontoado de cacos na calçada. Vanessa tentou bater nela de novo, mas Cristina a impediu e Diana voltou a sorrir, debochada, enquanto esfregava a face.

— Realmente, você era mais carinhosa. Cuidado, loirinha! — Zombou, então se voltou para a porta da cafeteria e entrou com um dar de ombros, aumentando a raiva da ex-namorada.

— Maldita! — Vanessa berrou para a porta cerrada, que refletia seu rosto cansado e colérico, chamando a atenção de um casal que passava pela calçada.

Paciente, Cristina a puxou para um abraço. A manteve dentro dele por um tempo, então se afastou com um meio sorriso e um beijo na testa. Aquela não era a Vanessa que conhecia. A sua namorada era calma, uma mulher de ideias concisas e firmes, mas que nunca se deixava envolver por emoções extremas como a raiva ou o ódio. Exatamente o contrário do que estava presenciando.

Era mais que evidente que, apesar de tantos anos, Diana ainda a afetava. Talvez o fizesse com mais intensidade do que Vanessa deixava transparecer e, a cada minuto que passavam ao lado dela, esse descontrole crescia.

— Calma. — Cristina pediu, os dedos deslizando pelos cachos negros e grossos que  caíam sobre a face dela.

Vanessa respirou fundo algumas vezes, olhando a chuva se tornar mais forte.

— Estou ficando louca, Cris. Ela me tira do sério com aquele sorriso presunçoso. Me olha como se fosse dona das verdades do universo, quando não passa de uma reles salafrária. Você viu aquilo? Ela troca de voz e sotaque como se trocasse de roupas. Agora, me pergunto o quanto dos seus gestos eram verdadeiros quando namoramos.

A namorada a fitou com carinho, puxando-a para mais perto. Odiava vê-la tão triste e confusa e odiava Diana por deixá-la daquela forma. Cedo ou tarde, a faria pagar por isso, prometeu a si mesma.

— Podemos partir — sugeriu, torcendo para que ela abraçasse aquela ideia e desistisse de obter explicações. No seu entender, era algo que não valia a pena insistir, mas compreendia sua necessidade de pôr um ponto final naquela história.

Vanessa continuou a admirar a chuva, agora precipitando em gotas grossas e formando poças, deixando a rua completamente deserta, exceto por elas, ainda abraçadas debaixo daquele toldo.

— Estou começando a achar que é o melhor a fazer. Ela não é a Diana que conheci. Não passa de uma estranha, uma criminosa, um fantasma que se esconde atrás de mentiras e teatro. Seja lá qual for sua história, não quero mais saber.

 

***

 

Diana estava sentada em uma mesa no canto do estabelecimento, à qual escolheu por ficar perto da saída dos fundos e por permitir uma visão ampla do ambiente. Pela janela, observava o casal com um aperto no peito, repetindo-se que não tinha o direito de se sentir daquela forma, pois foi sua escolha partir. Porém, o que a mente lhe dizia era indiferente para o coração.

Era jovem demais quando descobriu o amor por Vanessa e, apesar dos anos, das mulheres que tinha sido, de outras tantas com as quais dividiu a cama, jamais conseguira esquecê-la. E não fora por falta de tentativas.

O fato era que seu coração sempre pertenceria a ela, mesmo que ela não o quisesse.

Passou a mão no rosto, sentindo a vertigem lhe tomar. Não era a primeira e, com certeza, não seria a última daquele dia. Precisava de um médico. A ferida que Cristina lhe causou não era profunda, mas não parava de sangrar.

Contudo, ir ao hospital lhe traria mais problemas e precisava correr contra o tempo. Logo, Aquiles descobriria onde estavam e precisavam de um lugar seguro. Os braços dele no Brasil e no globo, eram muito longos. Ele possuía contatos até nas menores organizações, até mesmo em agências de vigilância e segurança. Não havia limites para o seu poder e isso quase lhe custou a vida em Madri.

Involuntariamente, tocou o ombro onde a alça da camiseta escondia a cicatriz que a bala do assassino que fora contratado para matá-la, naquela delegacia, deixara. Já tinha se machucado inúmeras vezes, mas nunca levara um tiro. Ossos quebrados não podiam ser comparados aquilo. Jamais esqueceria todo aquele sangue jorrando para fora do seu corpo e a dor que crescia, enquanto lutava pela sua vida.

Foi uma experiência assustadora, principalmente, quando acordou no hospital horas depois.

 

 

Uma de suas mãos estava algemada à cama. A mangueira do soro estava conectada ao braço algemado, enquanto o outro estava imobilizado por uma tipoia.

Encontrava-se em um quarto minúsculo e escuro, cheirando a produtos de limpeza e materiais cirúrgicos. A porta estava fechada, mas conseguia ver, através do vidro da janela, o vulto do policial que a vigiava.

Tossiu algumas vezes. Tinha a boca seca e com sabor amargo. A mente estava confusa, entretanto, aos poucos, as lembranças retornaram, jorrando de todos os recantos do cérebro como um gêiser. Gemeu de raiva, amaldiçoando sua sorte.

De repente, alguém apertou o interruptor da lâmpada ao lado da cama. O quarto se iluminou e ela piscou algumas vezes, até ser capaz de focalizar o ambiente com perfeição. Flores mortas, no quadro pendurado na parede à sua frente, a fizeram se sentir ainda mais confusa, quase angustiada e perguntou-se quem teria tido a infeliz ideia de pendurar aquilo em um quarto de hospital.

Capturou um movimento com o canto do olho e virou a cabeça para se deparar com o sorriso do homem que estava sentado no leito ao lado do seu.

— Sabia que você era demais para aquele idiota convencido do Antônio — disse ele, os lábios se contraindo em um sorriso desagradável, quase cruel. Ela tremeu, levemente, ao recordar do rapaz que se apresentou como advogado, na delegacia. — Ele te admirava, sabia? Disse que queria se tornar uma lenda como você. E o primeiro passo para isso, seria matá-la. Confiei na audácia dele, sabe que aprecio isso, mas confesso que, lá no fundo, esperava me decepcionar. — Riu, balançando os ombros, e saltou da cama.

— Veio terminar o serviço? — Ela indagou, a garganta ardendo de tão seca e, involuntariamente, deslizou o olhar para a jarra na mesinha ao lado da cama.

Aquiles lhe admirou as feições, por alguns segundos, ligeiramente decepcionado por estar olhando para a face de Malena e não a da verdadeira Diana. Queria vê-la pela última vez.

— O mais verdadeiro dos ditados é aquele que diz: “Se quer algo bem feito, faça você mesmo”. Bem, aqui estamos! — Abriu os braços. — Não gosto muito de sujar minhas mãos com esse tipo de coisa, mas você é especial e, já que aquele imbecil falhou…

Ela lhe dirigiu um olhar entediado, enquanto deslizava a mão por baixo do lençol, até a presilha da tipoia. A ferida no ombro, respondeu ao movimento com uma onda de dor. Porém, esforçou-se para manter o rosto impassível.

— Por quê? — Quis saber. — O nosso acordo foi de dez anos. Depois disso, estaria livre para fazer o que quisesse da minha vida. Você me deu sua palavra e, desde que me lembro, essa é a primeira vez que o vejo quebrá-la.

Aborrecido, ele fez um biquinho e deu de ombros.

— Acordo é acordo e sempre cumpro os meus. Eu te ajudei em troca de dez anos de serviço e, desde o início, estava disposto a deixá-la partir — esclareceu.

Caminhou em volta da cama e Diana tossiu, aproveitando o momento para soltar a trava da tipoia.

— O que mudou? — Indagou, recuperando o oxigênio.

Aquiles ergueu dois dedos, com um olhar afetado.

— Duas coisas — Juntou as mãos, diante do ventre. — A primeira, sei que deve ter pensado nisso em algum momento ao longo dos anos; você cresceu dentro da minha organização. A cada novo trabalho, se superava e “me” superava. Meus clientes pediam por você com uma frequência cada vez maior, pois sempre fez trabalhos limpos, cuidadosos e sem levantar suspeitas. Quando percebi isso, não hesitei em cobrar caro e eles sempre pagavam…

Diana teve outro acesso de tosse e Aquiles caminhou até a mesinha ao lado da cama, pegou a jarra e encheu um copo com água. Aproximou-se da cama e deixou que ela bebesse dele.

— Se eu sair, eles virão atrás de mim, junto com os seus milhões — ela concluiu, aliviada pela sede saciada e com uma gota a escorrer pelo queixo.

Aquiles sorriu, balançando o corpo e atirando o copo descartável na lixeira, debaixo da mesinha.

— Sempre foi uma garota esperta.

— Não precisava me temer. Nunca tive a intenção de continuar a roubar depois que saísse.

— Você sabe que sempre odiei essa palavra: roubar! Prefiro “coletor de objetos valiosos”. — Riu. — Pode ser que você não queira agora, mas uma vez que se sente a adrenalina de uma vitória, o poder de ser mais ágil e esperto que os outros, isso se torna um vício. E nós dois sabemos que você adora ganhar — enfiou as mãos nos bolsos da calça com um sorriso confiante e caminhou até a janela, com passos suaves.

Diana aproveitou para retirar a agulha do soro e mordeu os lábios com a dor que isso lhe causou. Sangue escorreu pelo braço, enquanto enfiava a agulha em um dos orifícios da algema, movimentando-a suavemente até encontrar a trava. A dor irradiou pelo ombro ferido e, por um instante, o ar sumiu de seus pulmões.

Distraído com o movimento na rua, três andares abaixo, Aquiles continuou:

— Com exceção do seu pai, não conheço ninguém que tenha saído dessa vida e não retornou para ela, mas algumas coisas não podem ser mudadas, Diana. E algumas pessoas também não. — Voltou-se para ela. — Você é muito diferente dele e, no entanto, muito parecida.

Acariciou, pensativo, o queixo quadrado.

— Se tivesse aceitado a proposta que lhe fiz na noite passada, não estaríamos aqui — afirmou, um pouco absorto.

— Claro que não! E Papai Noel também existe! — Escarneceu. — Talvez queira convidar o Coelhinho da Páscoa para essa conversa também.

Ele lhe admirou em silêncio, alternando o olhar para a noite estrelada que se apresentava através da janela. Estava falando sério. Se ela tivesse dito que ficaria, nada daquilo teria acontecido.

— E a segunda razão… — continuou.

— Ah, por favor, deixe-me adivinhar! Tem algo a ver com uma certa loira? — Ela riu, percebendo a irritação que o comentário lhe causou.

Sabia que, embora fingisse que estava tudo bem, ele jamais a perdoou por aquela falta. Principalmente, porque Carla Maciel era uma cliente importante e, definitivamente, alguém que odiava ser contrariada.

— Você ri, mas considero este motivo mais grave que o primeiro.

— E eu considero uma das melhores coisas que já fiz na vida. Carla me deu prazer em dobro. Primeiro, na cama. Depois, ao lhe marcar, provando que você não era tão temível quanto pensava.

— Você poderia ter a mulher que quisesse, por que ela?

— Porque, como você disse, eu adoro um desafio e Carla era um dos bons e o fato dela não se encolher na sua presença a tornava ainda mais atraente. Além disso, você há de convir que era uma gata! Mas vamos deixar de enrolação. Faça o que tem de fazer.

Concordando com um inclinar de cabeça, ele se aproximou da cama, pegando o travesseiro dela, que dirigiu o olhar para o guarda do outro lado da porta. Ele estava recostado à parede, aparentemente, distraído com o celular. Aquiles riu, dizendo:

— Não se preocupe com ele, recebeu uma boa quantia para se tornar cego, surdo e mudo hoje — então, pressionou o travesseiro no rosto dela. — Bons sonhos, minha bela Caçadora. Nos vemos no inferno!

Embora já estivesse com mais de sessenta anos, Aquiles era muito forte. Ele a privava do oxigênio, rindo da sua agonia. Mas, de repente, diminuiu a força. Manteve o travesseiro firme, enquanto sussurrava no ouvido dela, uma última confissão antes que a morte a levasse.

Aquelas poucas palavras, ecoaram em sua mente, levando para o corpo o peso das emoções que sentia. Então, ela o surpreendeu. Fincou a agulha no pescoço dele, fazendo-o recuar e esbarrar na cama ao lado. Diana tossiu, jogando o travesseiro no chão e buscando o ar. Saltou da cama e foi tomada pela vertigem. Apoiou-se no leito, olhando para a porta.

O policial não estava mais lá. Com certeza, tinha ido dar uma volta. Provavelmente, usaria uma ida rápida ao banheiro como justificativa para a ausência durante o seu assassinato. Sofreria algumas punições, mas teria a conta bancária recheada.

Aquiles a empurrou, jogando-a no chão. Sangue escorria do ferimento no pescoço dele que arrancou a agulha sem hesitação, então a chutou no estômago. E, enquanto Diana tentava respirar, ele afundou o dedo no ferimento do ombro dela que deixou escapar um grito fino junto com algumas lágrimas.

— É o fim! — Ele sussurrou, envolvendo o pescoço dela com as mãos. Desesperada, Diana atingiu os olhos dele com a ponta dos dedos.

 Aquiles levou as mãos aos olhos e Diana o empurrou, ficando de pé. Pegou o tripé que sustentava o soro e acertou o ventre dele com a base. Girou o objeto e atingiu a face dele com a ponta que possuía ganchos. A pele foi rasgada, deixando um vinco profundo e vermelho. Deu um passo atrás e repetiu o movimento, causando outro corte.

Ela ignorava a própria dor, preenchida pela adrenalina da ação. Por fim, atirou o tripé no chão e usou de todas as suas forças e raiva para chutá-lo até a inconsciência.

Quando ela saiu do hospital e encontrou o vento gélido daquela noite sem luar, os últimos resquícios de Malena Villalobos tinham ficado no fundo de um saco de lixo hospitalar a caminho do incinerador.

Os investigadores Garcia e Ortega, que tinham passado parte da manhã lhe interrogando sobre a morte de Alexei, conversavam diante da porta que dava para a rua e sorriram sem prestar atenção a enfermeira de olhar cansado e cabelos castanhos, que passou por eles com passos lentos e cadenciados e se apressou a pegar um táxi quando chegou na esquina.

 

 

Tudo poderia ter acabado naquela noite.

Mas a Caçadora, como Aquiles tanto apreciava chamá-la, não caçava pessoas. Ela não matava, nunca teve o sangue de outro em suas mãos e assim continuaria.  Aquiles iria lhe pagar, não por ter tentado tirar sua vida, mas por ter roubado algo ainda mais precioso, a mesma coisa que lhe confessou através de um sussurro, enquanto a sufocava.

Naquela noite, enquanto ele era atendido por uma equipe de médicos estarrecida com a fuga de Malena Villalobos e depois interrogado, fervorosamente, sobre os motivos de ter sido atacado e encontrado no quarto da principal suspeita de um assassinato, Diana invadiu a mansão de Armand Favard, a verdadeira identidade de Aquiles. Roubou todos os dados possíveis de suas transações e clientes que estavam em um HD no cofre em uma sala secreta, na adega da mansão.

Ele sempre achou que aquele lugar era seguro e que nenhum dos seus subordinados o conhecia. No entanto, havia muitos anos que Diana tinha invadido o lugar e conhecia cada pormenor da sua organização e transações.

Como último ato, ela ateou fogo à casa centenária, decorada com requinte e repleta de obras de arte de valor incalculável.

Algumas semanas depois desse incidente, a Interpol começou a receber mensagens anônimas, contendo informações que levavam à inúmeras obras de arte, joias e objetos históricos roubados, o que culminou na prisão de muitas pessoas importantes da alta sociedade mundial.

Aos poucos, a notícia de que os serviços de Aquiles não eram mais confiáveis e sigilosos começou a se espalhar no submundo do crime e, lentamente, seus negócios desmoronavam.

Começava assim, a vingança de Diana e a caçada de Aquiles a ela. Uma caçada que já durava um ano.

Ela ainda massageava a cicatriz, quando Vanessa e Cristina se sentaram à sua frente. E passou a mão sobre os olhos, afastando as lembranças. Encararam-se em silêncio, enquanto a garçonete anotava os pedidos e, pela primeira vez, Vanessa ousou analisar seus traços sem afastar o olhar.

Os anos pareciam não ter passado para Diana. Sua real aparência havia mudado pouco. A tez morena de sol não possuía marcas, não contava histórias sobre os lugares por onde havia passado, ao contrário dos olhos que demonstravam, no brilho, o peso dos anos. Ora pareciam estar cheios de raiva, ora tristes e, por fim, brilhavam brincalhões quando a provocava.

Por um instante, ela lhe enviou um meio sorriso, quase tímido, e isso a jogou de volta ao passado. Ela tinha lhe sorrido da mesma forma, quando lhe roubou o primeiro beijo. Abanou a cabeça algumas vezes, afastando aquela lembrança e sentindo vergonha pela saudade que ela lhe trouxe, principalmente, porque Cristina fazia um carinho singelo na sua mão.

De repente, teve medo de dizer que queria partir, afinal, passou tantos anos sonhando em revê-la. Não era daquela forma que sonhava, nem era aquela Diana que desejava, mas mesmo assim, apesar da raiva e da mágoa, temeu o adeus definitivo.

Abriu os lábios, no entanto nenhum som lhe escapou e Diana tomou a palavra, com um sorriso fugaz.

— Quer que eu lhe peça perdão? — Pegou a mão livre dela.

Vanessa tentou se libertar do toque que atirava fogo em sua alma, porém não conseguiu. Por outro lado, o toque suave e carinhoso de Cristina, na outra mão, lhe trazia calma e equilíbrio, lhe fornecendo forças para continuar olhando-a nos olhos.

— Sinto muito. Eu não posso, Van. Não estaria sendo sincera. Nunca desejei te fazer sofrer, mas fiz, e isso não merece perdão. Não posso pedir que faça algo que eu mesma não consigo fazer.

Afastou-se, o olhar ainda preso ao dela.

— Contudo, também não posso dizer que me arrependo, pois não é a verdade.

Contrariada, Vanessa esmurrou a mesa, derramando um pouco do café na xícara, que a garçonete tinha acabado de pôr diante dela, chamando a atenção dos outros clientes. Diana não se abalou com a fúria naqueles olhos amados e recostou-se na cadeira, serena. Deslizava a ponta do dedo no líquido escuro espalhado sobre a mesa, traçando desenhos estranhos, enquanto falava:

— Nunca chame a atenção para si, exceto se quiser desviar o foco das pessoas para que não percebam outra ação. Não pareça paranoica ou desconfortável, nem tenha ataques de fúria em locais públicos, principalmente, quando está em fuga. — Arqueou uma sobrancelha. — Elas lembram disso, sempre lembram. Podem estar entretidas em uma conversa interessante e isso — apontou com o queixo para as mãos dela — parece insignificante agora, mas se, mais tarde, alguém lhes perguntar sobre algo estranho, estará na ponta da língua o que acabou de acontecer.

Algumas pessoas ainda fitavam a mesa que ocupavam e Vanessa recebeu o peso desses olhares, junto com um sorriso de Diana e a mão de Cristina aumentando a pressão na sua.

— Você é uma… — engoliu as palavras, sem saber, exatamente, como xingá-la. Baixou o olhar para a mão que brincava com o café derramado, estava trêmula. O único sinal de que podia estar tão emocionada quanto ela.

— Sou tudo isso que você imagina e muito mais. Por que confiar em mim, afinal?

— É o que venho me perguntando desde que apareceu — Cristina resolveu participar da conversa, entretanto foi ignorada pelas duas.

De repente, Diana se pôs de pé. Enfiou a mão no bolso da calça e retirou algo. Fitou a mão de punho cerrado por alguns instantes, sem perceber que, após o princípio de um sorriso, os lábios se comprimiram em desgosto. Devagar, deixou que vissem o que segurava.

Era uma pedra.

Uma pedra lisa e negra, com um formato triangular. Estava presa a um cordão prateado.

— O que é isso? — Cristina quis saber, observando a emoção nos olhos da namorada e esta respondeu com voz falha:

— Uma promessa.

Diana girou a mão, deixando o cordão balançar diante dos olhos delas. E a morena o pegou, hesitante.

— Pensei que tinha perdido… — girou a pedra diante dos olhos, sendo arrastada para a lembrança à qual ela estava ligada.

 

 

— Ele me odeia! Veja o que fez com você! — Cuspiu as palavras, em meio a uma torrente contínua de lágrimas e se deixou envolver pelo abraço apertado de Diana.

Tinham dezessete anos e estavam sentadas nos fundos da casa de Vanessa, no batente da porta da cozinha. Duas meninas que se amavam e haviam acabado de contar esse fato para os pais dela. Diana se afastou, apanhando uma das pedrinhas que decoravam o jarro de comigo-ninguém-pode. Brincava com ela, distraída, e lhe sorriu o sorriso mais bonito e caloroso que já tinha visto, apesar dela estar com o olho roxo e um provável nariz quebrado.

— Ele sempre foi um idiota! — Resmungou, girando a pedrinha entre os dedos.

— Ele queria me matar! — Chorou. — Se não fosse por você e a mamãe…

Diana acariciou a face dela, tão marcada quanto a sua, e lhe sapecou um beijo. A reação do pai da namorada não foi uma surpresa para ela. Ele era a perfeita encarnação do machismo, um homem mesquinho e abusivo, que mantinha a família sob rédea curta, principalmente, a esposa.

Naquela tarde, Dona Emília subiu, e muito, no seu conceito. Ela não só aceitou a homossexualidade da filha com um sorriso carinhoso, mas, também, pôs um ponto final aos abusos, mandos e desmandos do marido, expulsando-o de casa.

— Ah, foi só uma tapinha — minimizou.

— Uma ova! Acho que o seu nariz quebrou — passou a mão de leve e Diana a prendeu entre as suas.

— Nada que o tempo e um pouco de cafuné da minha namorada não possam curar! — Depositou um beijo nos lábios feridos. — Sempre vou te proteger, Van. Prometo! Não importa o que aconteça, vou sempre cuidar de você.

— E se você morrer? — Perguntou para chateá-la.

— Aí serei sua anja da guarda! Uma anjinha super fofa e linda por sinal, que vai virar uma diabinha sempre que uma garota chegar perto de você!

Vanessa riu. Não conseguia ficar triste ao lado dela, que sempre tinha um sorriso para lhe oferecer. A abraçou, ouvindo-a dizer outra vez o quanto a amava e, assim como ela, catou uma das pedrinhas no jarro e a guardou, como lembrança de um momento doloroso, mas feliz.

 

 

Cristina a trouxe de volta ao presente, deslizando a mão em sua face.

— Ei, tudo bem?

Piscou algumas vezes.

— Sim — respondeu em um sussurro. — Só lembrando de um dia ruim.

Mirou Diana, que permanecia de pé. Ela enterrou mais o boné na cabeça, para que não vissem a emoção que lhe tomava, embora estivesse se esforçando para se manter impassível e objetiva. Tarefa complicada ao lado de Vanessa, cuja presença trazia à tona a menina que um dia foi.

Vestia uma camiseta preta, que deixava à vista a mesma tatuagem no pescoço do capanga que as resgatou. Era uma serpente vermelha, cuja calda deslizava até o ombro. Um desenho que chamava a atenção das pessoas, mudando o foco do seu rosto para a pele.

— Você está sangrando — Cristina observou. Apesar da cor preta, uma mancha ainda mais escura se espalhava pelo tecido da camiseta. — Melhor ver isso.

Ela pousou a mão sobre o local da ferida e exalou, com irritação.

— Droga! Eu já volto. — Apanhou a mochila, que tinha largado na cadeira. Deu alguns passos vacilantes e voltou-se. — Independente do que aconteceu, das decisões que tomei, de quem me tornei, essa promessa — apontou para a pedra — é sincera e irei cumpri-la até o último dos meus dias, você querendo ou não.

Cristina soltou o ar dos pulmões, irritada.

— Estou cansada desse seu nhenhenhém — comentou. — Quando voltar, tomaremos nosso rumo e você o seu.

— Não é uma opção — ela respondeu, tinha o olhar fixo nos dois homens que desceram do carro que estacionou na porta da cafeteria. Um terceiro homem saiu de uma loja, do outro lado da rua e juntou-se a eles.

Cristina seguiu seu olhar, notando um ligeiro desconforto em sua postura e isso lhe pareceu um mau sinal. Diana lhe atirou a mochila, e se aproximou.

— Aquiles? — Cristina indagou.

— Pior. São oportunistas — curvou-se para elas, falando baixo. — Saiam pelos fundos. Peguem um táxi e me esperem no posto de gasolina na saída para a rodovia.

Vanessa agarrou o braço dela, evitando que se afastasse.

— Espera! O que vai fazer?

— Não tenho tempo para explicações. Façam o que digo. Me esperem no posto por duas horas, nem um minuto a mais.

— E se você não for?

— Na mochila, há um celular, com somente um número gravado na memória. Se não me juntar a vocês em duas horas, liguem para esse número. Digam que Olívia Bittencourt precisa de ajuda.

— Que ótimo! Agora você vai nos abandonar a mercê dos seus amigos criminosos! — Vanessa escarneceu.

Com um suspiro, Diana se livrou da mão dela em seu braço.

— Pelo contrário, Van. Estarei deixando vocês sob os melhores cuidados e, assim, mesmo que eu não possa estar com vocês, saberei que estão bem e que cumpri a promessa que lhe fiz. — Virou-se para Cristina. — Cuide bem dela, loirinha.

Afastou-se com passos largos e Cristina tomou a mão de Vanessa, puxando-a em direção a saída dos fundos. Antes de cruzarem a porta, viram os três homens cercando Diana na entrada.



Notas:



O que achou deste história?

4 Respostas para 8. Olívia

  1. Adoro o modo como escreve, me mantendo presa a cada detalhe das personagens. Pra ser perfeito, só tendo mais capítulos por semana. 🙂

    • Oi, Rafaela!

      Tudo bem?! Nossa, muito satisfeita em saber que gosta das minhas palavrinhas, rs.
      Quem sabe não rola um extra qualquer dia desses? Tudo é possível!

      Um beijo grande e carinhoso!

  2. Ahhhhh…

    Maravilhoso, cada x mais perto da onde minhas lembranças aportam.

    Te espero semana q vem… e sabe, se sumir eu vou incomodar.

    Bjs,

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