Caçadora

9. Jorge

Revisão: Naty Souza e Néfer


 

Jorge estava confiante. Aquele era o seu dia de sorte.

Olhou-se no espelho retrovisor do carro, enquanto dirigia. Seu reflexo exibiu um sorriso vitorioso. Ao seu lado, Damião tamborilava os dedos no painel, acompanhando a música que tocava no rádio. Assim como ele, tinha um sorriso largo, um sorriso que valia dois milhões de dólares.

Passou a mão na fotografia pregada no painel e teve vontade de rir. Dez minutos antes, seu celular tinha tocado e ouviu, com prazer, a voz rouca de Túlio lhe informar que o seu alvo estava no local esperado. Coçou o nariz, já sentindo o cheiro do dinheiro.

Trabalhava para Marcos Alvarenga há quase dez anos e teve poucas oportunidades de crescer dentro da sua organização. As coisas melhoraram quando Tito assumiu a função de braço direito dele, mas ainda assim, era apenas um capanga. Alguém descartável.

Ganhava bem, porém não era rico e, apesar de ter tido inúmeras oportunidades de roubar alguns quilos de cocaína e iniciar seu próprio negócio, não se atrevia a fazê-lo. Desde que tentaram tirar Marcos do poder, três anos antes, a punição para roubo e traição era pior que a morte e o próprio Tito se encarregava da tarefa.

Alguns diziam que ele chegava a ser mais cruel que sua antecessora e não estava disposto a descobrir se era verdade. Por isso, mantinha-se na linha. No entanto, naquele dia a sorte lhe sorriu.

Aquiles era um nome importante no mundo do crime e estava pagando uma boa quantia para quem lhe entregasse a mulher que chamavam de Malena Villalobos. O nome nada lhe dizia, mas quando viu uma foto dela ao lado de sua ex-chefe, soube exatamente de quem se tratava. Diana, era assim que a finada associada de Marcos a chamava e, pelo que se lembrava, dos tempos em que fora apenas um segurança na residência dela, elas eram amantes.

Por isso, quando ouviu a conversa de Tito com ela, pelo telefone, soube de imediato com quem falava. Mal podia acreditar na oportunidade que o destino lhe apresentou.

O próprio Tito lhe ordenou que preparasse o veículo que deixou estacionado na esquina daquela cafeteria. Suas ordens eram claras: deixar o carro e partir, contudo ele tinha outros planos. Dois milhões era muito dinheiro para que não se sentisse tentado. Então, deixou Túlio de vigília à espera da chegada dela.

Assim que estacionou, Túlio se juntou a ele e Damião, apontando discretamente para uma mulher dentro da cafeteria. Jorge sorriu ao reconhecê-la. Ela usava um corte de cabelo diferente, além de ter uma palidez excessiva na pele que, outrora, exibia um encantador bronzeado.

— Senhorita Diana — Jorge chamou, quando ela cruzou a porta com fingido ar distraído.

Ela se voltou para fitá-lo, exibindo uma expressão confusa. O avaliou, de alto a baixo, como se estivesse diante de eletrodoméstico estranho, então perguntou:

— Desculpe, nos conhecemos?

Jorge sorriu, tentando parecer gentil. Um grande esforço da sua parte, visto que permanecer em silêncio era a coisa mais delicada que conseguia fazer.

— Trabalhamos para… — ele inclinou-se na direção dela, diminuindo o tom da voz — Marcos Alvarenga.

Os olhos dela tornaram a percorrer os traços dele devagar, como alguém que busca o reconhecimento em um rosto vagamente familiar. Impaciente, Jorge continuou com seu plano:

— Tito pediu para buscá-la. — Informou, apontando para a porta traseira do carro, que Túlio mantinha aberta.

Diana exalou forte, arqueando uma sobrancelha, enquanto enfiava uma das mãos no bolso do jeans.

— Rapazes, meus negócios com seu patrão estão finalizados. Sinto muito.

Jorge engoliu em seco. Sabia que tinha um aspecto ameaçador, perfeito para a profissão a que se dedicava, mas usou de uma voz tão macia para lhe falar, que até os companheiros o estranharam.

— Ele deseja mantê-la em segurança. Houve um vazamento de informações e não é mais seguro que pegue aquele carro — indicou o veículo estacionado na esquina com o queixo.

O capanga olhou para os lados, como se estivesse investigando as redondezas, em busca de alguém indesejado. Esperava que Diana caísse naquela história e não os obrigasse a colocá-la no carro à força, chamando a atenção das pessoas.

 Ela o mediu com o olhar pela terceira vez, desmanchando a seriedade para dar lugar a um sorriso, o que encorajou Jorge.

— É mais seguro vir conosco. — Ele voltou a afirmar, estava tão próximo dela que invadia seu espaço pessoal.

Diana sorriu mais, balançando os ombros. Tito nunca lhe mandaria aqueles sujeitos sem antes combinarem algo. Além disso, ele tinha lhe dado a entender que era a última vez em que se encontravam e esperava sinceramente que fosse assim.

— Hmm… Não. — Respondeu.

O capanga piscou, surpreso. Sorriu, sem graça, enfiando a mão no bolso do paletó, antecipando a necessidade de usar a arma para obrigá-la a fazer o que desejava.

— Desculpe, mas…

A moça ergueu a mão.

— Na boa, Jorge! — Reparou na testa franzida dele e quase gargalhou. — É, eu me lembro de você e de para quem trabalha, mas não vou entrar nesse carro.

O capanga limpou a garganta, envolvendo o cabo da pistola no coldre axilar por baixo do paletó.

— Senhorita… — Desta vez, ele não conseguiu ocultar a aspereza na voz.

— Vamos deixar de enrolação, Jorge. Assim você insulta a minha inteligência. — Diana o cortou, lançando uma olhada rápida para o interior da cafeteria.

Jorge rilhou os dentes, ainda tentando se mostrar prestativo, embora sua pose fosse uma ameaça declarada.

— Acho que não está entendendo. Só viemos para protegê-la.

Diana ergueu um das mãos, fazendo um gesto de descaso.

— Rapazes, já disse para não me insultarem assim. Não é à toa que a minha cabeça vale alguns milhões, os mesmos milhões que vocês estão querendo faturar. Se me permitem lhes dar um conselho, voltem para casa e permaneçam como paus-mandados. Será menos desgastante para os seus cérebros minúsculos.

A cor sumiu da face de Jorge e ele desistiu, de vez, da atuação. Tentou puxar a arma, contudo Diana bloqueou seu movimento com a mão, então o empurrou para trás. Jorge retrocedeu alguns passos e tentou esmurrá-la, mas a moça desviou do golpe e lhe acertou um soco nas costelas. O capanga gemeu de dor, tentando pegá-la pela cintura, mas recebeu uma cotovelada no rosto e cambaleou para trás.

Enquanto isso, os outros dois se acercaram, bloqueando a passagem de Diana. Ela percorreu os rostos brutos com um sorriso presunçoso. Não tinha para onde ir, exceto retornar para a cafeteria, mas isso não era uma opção. Não os levaria até Vanessa.

— Pensando bem, Rapazes, acho que vou aceitar a carona. — Disse, antes de correr em direção ao carro, cuja porta traseira ainda estava aberta. Se enfiou dentro do automóvel, surpreendendo-os. Fechou a porta atrás de si e abriu a porta oposta, saltando do veículo e correndo, em disparada, pela rua.

— Tá de brincadeira! — Damião deixou escapar, recuperando-se da surpresa.

As pernas dela estavam trêmulas, graças ao sangue perdido, mas continuou com passadas longas e ligeiras, forçando-se a ir cada vez mais rápido. Virou a esquina, dando uma rápida olhada sobre o ombro e avistando os homens em seu encalço.

Damião, o mais alto dos três, se encontrava a poucos metros de pegá-la.

Enquanto corria, Diana analisava suas possibilidades de escapar e não eram promissoras. Afinal, estava desarmada, em desvantagem numérica e ferida. O fato de estar no centro da cidade, com pessoas por perto, não importava para homens como aqueles.

Virou em outra esquina e, de repente, parou. Abaixou-se, firmando os pés no chão. Segundos depois, Damião surgiu, percebendo o movimento tarde demais. Diana usou o corpo como uma alavanca, abraçando as pernas dele e o projetando no ar, direto no vidro da fachada de um restaurante. Os cacos se espalharam por todos os lados, enquanto ele caía com estrondo sobre a refeição de um casal.

O capanga permaneceu imóvel por alguns segundos, olhando fixamente para a ilustração da camiseta do homem sentado à mesa, onde se lia: “Bebo até cair, depois continuo bebendo deitado”. Um gemido lhe escapou quando rolou para o lado e caiu no chão, cortando as mãos nos cacos de vidro. Escorregou quando levantou, olhando para o sangue que derramava. Ergueu a face, procurando Diana na calçada, no entanto ela não ficou para ver o estrago que causou e continuou a fuga.

Jorge e Túlio continuavam no encalço dela e sequer se deram conta do que houve com o companheiro, visto que este ainda estava jogado sobre a mesa, quando eles por lá passaram.

A chuva forte dificultava a visão e pesava nas roupas encharcadas, fazendo Diana dobrar o esforço para se manter distante dos perseguidores.

Um carro parou na esquina, um segundo antes dela passar escorregando sobre o capô. Túlio não teve a mesma sorte, foi arremessado no chão por outro carro. Mas tudo não passou de um susto e, alguns segundos depois, ele retornava à perseguição ao lado de Jorge. Impetuoso, retirou a arma do coldre e atirou. A bala acertou a placa de “pare” na esquina seguinte e Diana se encolheu, correndo em ziguezague. Alguns transeuntes se jogaram na calçada e outros correram para dentro das lojas, assustados.

— Pare de atirar, seu idiota! Ela não vale nada morta! — Jorge gritou, cuspindo o sangue que escorria do nariz e invadia seus lábios, resultado da cotovelada que recebeu.

Ao virar a esquina, Diana esbarrou em um grupo de pessoas que se abrigava da chuva embaixo do toldo de uma galeria. O impacto derrubou dois adolescentes, cujo vocabulário era um conjunto extenso de palavrões. O tecido da calça dela rasgou, ralando seu joelho, mas ela sequer sentiu a dor. Se pôs de pé e entrou na galeria. Subia a escadas no fundo do salão, quando ouviu outra sucessão de palavrões e avistou os perseguidores.

O primeiro andar da galeria exibia uma coleção de estátuas de artistas locais. Alguns turistas circulavam entre elas e se assustaram quando a viram cruzar o salão enlameada e correndo, abrindo uma das janelas, em seguida. A chuva invadiu o lugar, trazida pelo vento forte e foi acompanhada pelo som de um trovão, enquanto seus olhos buscavam uma rota de fuga. Não era uma queda muito alta, pelo que se lembrava da última vez em que esteve naquele local como turista, anos antes.

Pouco mais de um metro e meio a separava da sacada do prédio vizinho.

— Ali! — Túlio gritou, chegando ao topo da escada e sorriu ao perceber que ela não tinha mais para onde ir.

Diana os fitou por um segundo, então tomou impulso e saltou, pendurando-se na grade de metal retorcido que formava a balaustrada da sacada do prédio ao lado. Um grito ecoou do interior do quarto ao qual a sacada pertencia e uma moça loira levou a mão a boca, tomada pelo susto.

Os três capangas se amontoaram na janela, vendo-a escorregar pelo cano de metal, preso a lateral do prédio.

— Ela é doida! — Disse um deles.

Os pés de Diana tocaram o chão encharcado, espalhando água e lama para os lados, então ergueu o rosto para eles e sorriu, dando um tchauzinho e correndo para fora do beco.

— Doida e escorregadia — comentou Jorge, rilhando os dentes.

 

***

 

Vanessa caminhava de um lado para outro, olhando a chuva que precipitava cada vez mais violenta, acompanhada por ventos fortes e trovões. Repetia-se, mentalmente, que não se importava com o que poderia acontecer com Diana, contudo, apertava a pedra que ela lhe dera, inconscientemente.

Baixou a vista para o objeto, estreitando os olhos. Era apenas uma pedrinha sem graça, como tantas outras, todavia sua existência estava repleta de grandes memórias e sentimentos.

Cristina a observava, sentada de um jeito desleixado em uma mesa próxima ao balcão. Tamborilava os dedos longos na perna, como se marcasse o ritmo de uma música, mas os únicos sons que ouviam eram da chuva, vento e trovões. Nem mesmo os atendentes da lanchonete, pareciam dispostos ao diálogo. Ambos, um casal de meia idade, estavam encostados ao balcão mexendo nos celulares com semblantes entediados.

Cristina encerrou o bailar dos dedos e mordiscou o lábio inferior, olhando para a mochila que Diana lhe deu. Estava muito longe de ser uma admiradora da ladra e, como expressou várias vezes, a queria o mais longe possível de suas vidas, mas naquele instante, compartilhava a apreensão da namorada.

Não conseguia esquecer o brilho nos olhos dela quando curvou-se em sua direção e lhe pediu que cuidasse de Vanessa. Pela primeira vez, viu o que ela sentia pela morena. Estava ali, completamente desnudo, refletido no castanho daqueles olhos grandes de cílios longos.

Por debaixo dos sorrisos debochados, dos dares de ombro, e do jeito de dona da verdade, havia um sentimento sincero por Vanessa. Algo que nem mesmo o tempo de separação foi capaz de apagar.

Pensar sobre isso fez o humor de Cristina azedar. Começar a nutrir admiração pela sua rival não era uma boa ideia, ante a confusão para qual ela as arrastou. Todavia, a forma como Diana expressava a vontade de proteger Vanessa a recordou de um passado distante.

Embora se tratasse de uma situação diferente, foi inevitável para Cristina, não ser atraída para as memórias de alguém que tinha ficado para trás e que, um dia, a defendeu da mesma forma que Diana tentava fazer por Vanessa, e que lhe deu a chance de se tornar a mulher que era naquele momento.

Ao mesmo tempo em que isso a deixava mais tranquila em relação a presença de Diana, também a deixava cega de ciúmes e com sérias dúvidas sobre o rumo do seu namoro, depois que aquela história acabasse.

— Ela já deveria ter chegado — Vanessa falou, arrancando-a de seus pensamentos. — Estamos aqui há quase uma hora.

Ela tornou a olhar para além da janela da lanchonete ao lado da loja de conveniências do posto em que Diana pediu que a esperassem. Desde que ali chegaram, limitaram-se em alternar o olhar entre a chuva e a estrada.

Cristina ergueu a vista para o relógio na parede atrás do balcão.

— Ainda faltam alguns minutos. — Observou ela.

A morena estacou, abruptamente. Voltou-se para olhá-la com o semblante carregado.

— E se ela não vier? — Perguntou.

Cristina respirou fundo, forçando um sorriso tranquilizador. Pensou em deixar uma frase irônica ganhar som, no entanto desistiu, sabendo que isso poderia desencadear uma discussão sem sentido. Por fim, apontou para a cadeira ao seu lado, notando que o “passeio” da namorada diante da janela começava a incomodar os funcionários do local que, de repente, decidiram que não havia mais nada interessante para fazerem no celular e passaram a acompanhar o vai e vem de Vanessa pelo lugar.

A moça demorou-se um pouco, mirando a estrada através do vidro embaçado, então liberou o ar dos pulmões e sentou-se.

— Se ela não vier, faremos o que nos pediu. — Cristina respondeu, finalmente. Então, a observar juntar as sobrancelhas, confusa.

Vanessa deslizou os dedos pelos fios cacheados, observando com apuro o rosto cansado da namorada. Brincou com uma mecha deles, antes de falar em tom baixo para que os funcionários da lanchonete não captassem as palavras:

— Não entendo, Cris. Há algumas horas, você estava disposta a partir e procurar a polícia. Por que mudou de ideia?

Um sorriso fugidio lhe indicou certa tristeza no rosto amado. No entanto, a voz de Cristina soou firme quando respondeu com outras perguntas:

— E se ela estiver certa? Se pegá-la não for o suficiente para aquele tal de Aquiles? E se ele vier atrás de você outra vez, para matá-la, como Diana afirmou? Já pensou nisso?

Vanessa quis rir da ideia, mas não conseguia. Ainda estavam vivas, em sua memória, as palavras que Diana lhe dissera naquele barco. “Você é o meu tudo”, ela afirmou. Aquiles seria mesmo capaz de matá-la apenas para se vingar de Diana?

Recordou o sorriso deformado e maldoso dele, naquela videochamada, e não teve dúvidas de que ele o faria sem pestanejar. Cristina continuou:

— Começo a acreditar que, talvez, o mais seguro seja mesmo ficar com ela por um tempo.

— Ainda que seja verdade, a polícia pode nos proteger — Vanessa soou distante, imaginando o desgaste emocional que dias ao lado de Diana lhe daria.

— Amor, mal chegamos nesta cidade e já havia homens na nossa cola. Creio que a polícia não seja a melhor opção. Esse sujeito, Aquiles, parece ser bem relacionado e poderoso.

— E você acha que ficar ao lado da mulher que ele está caçando é uma boa ideia? Não posso acreditar que estou ouvindo isso! — Deu uma tapinha no tampo da mesa.

Cristina se endireitou no assento, escorregando uma mão pelo pescoço. Aspirou uma boa quantidade de oxigênio e argumentou:

— Sejamos realistas, Vanessa. Esse cara, Aquiles, está certo, não está? Ele precisava encontrar Diana, te usou como isca e ela veio. Se você não fosse importante, ela não teria vindo. — Fez um gesto de pare com ambas as mãos. — Não me olhe assim! A ideia não me agrada também. Principalmente, porque vejo o quanto ela te afeta. E, se quer saber, estou morrendo de ciúmes por isso. Não pense que está sendo fácil sugerir ficar ao lado por mais um tempo.

— Afeta nada! — Vanessa rebateu para ser desmentida pela forma como seus olhos fugiram dos dela antes de terminar a frase. Cristina mostrou um sorriso suave, pousando a mão sobre a sua na mesa.

— Vanessa — chamou, obrigando-a a encará-la novamente. — Sou muitas coisas, menos idiota. Por favor, não me trate como um de seus alunos. Já sou bem grandinha e compreendo, perfeitamente, que você ainda a ama. Você mesma já admitiu isso.

Lhe doía dizer aquilo, contudo era necessário. Tinha passado a última hora analisando a situação com frieza e, embora também lhe soasse estúpido, parecia ser o certo a se fazer. Seu bem-estar não lhe interessava, mas o de Vanessa era tudo para ela.

— Não, eu disse que amava a Diana de antigamente, aquela que foi o meu primeiro amor — Vanessa recolheu a mão.

Cristina tornou a sorrir, triste.

— É justamente isso. O primeiro amor a gente nunca esquece. E, por mais que afirme que ela não é a garota que amou, ainda será aquela garota que você enxerga sempre que a vê. Ela sorri, fala, olha, cheira como a Diana de anos atrás. Independentemente de quem seja hoje e do quanto você está magoada, lá no fundo do seu coração, você sabe que a mulher que amou e com quem sonhou construir um lar ainda está lá, debaixo do teatro de gênio do crime.

Voltou a tomar a mão dela entre as suas e Vanessa sentiu a boca ficar seca, tornando a mirar a chuva. Às vezes, lhe assustava o modo como Cristina conseguia enxergar sua alma e ler seus pensamentos. Noutras, era reconfortante, mas nem por isso, menos doloroso.

Exalou longamente, retornando o olhar para ela.

— E, ainda assim, você quer que fiquemos com ela — comentou, descrente e incapaz de negar suas afirmações. — Por quê?

— Porque nós te amamos.

 

***

 

— Cara, vamos embora! — Damião pediu para Jorge, desanimado. — Se tiver que entrar em mais uma loja de lembrancinhas para turistas, vou atirar em alguém.

Jorge deixou um rosnado escapar, também havia perdido a paciência. Estava molhado, enlameado, cansado e continuava pobre.

— Ela já deve estar a quilômetros daqui — Túlio completou, passando a mão no pescoço. — O melhor que temos a fazer é retornar para casa e torcer para o Tito não descobrir o que fizemos.

Furioso, Jorge chutou uma poça, espalhando lama na calçada. Então, iniciou o retorno para o local onde haviam deixado o carro. Não conseguia aceitar aquela derrota, mas talvez, a informação sobre o último paradeiro da Caçadora pudesse lhe render algum dinheiro.

Pensava nisso quando um adolescente, usando capa de chuva amarela, esbarrou nele e seguiu seu caminho com ombros encolhidos e cabisbaixo.

— Olha por onde anda, pivete! — Jorge vociferou.

— Foi mal, tio! — Disse o jovem, sem se voltar para olhá-lo, e seguiu seu caminho com um gingado malandro e passos arrastados.

Indignado, Jorge bufou, ouvindo as risadas dos amigos.

— Do que estão rindo, idiotas?

— De nada, tio! — Túlio imitou a voz do adolescente, dando um passo para o lado, a fim de evitar uma possível retaliação física por parte do outro. No entanto, Jorge preferiu deixar a piada passar. Um esbarrão não poderia ser comparado ao fato de ter deixado dois milhões de dólares lhe escaparem.

Os capangas chegaram a esquina, onde tinham deixado o carro que Tito mandou preparar para Diana, e notaram que os pneus do mesmo estavam vazios. Com um arquear de sobrancelhas, Jorge olhou para o próprio carro, ainda estacionado diante da cafeteria, então se assustou ao ver os faróis se acenderem e o motor roncar.

A pessoa sentada no banco do motorista usava uma capa amarela e enfiou a cabeça na janela, gritando para ele:

— Obrigada pela “carona”, tio! — Era o pivete em quem esbarrou.

O garoto puxou o capuz para trás e o sorriso de Diana o atingiu como se fosse uma bala, enquanto ela acelerava o veículo e passava atirando lama em seus pés.

 

***

 

Vanessa não queria admitir, mas foi com alívio que viu Diana descer do carro, que havia acabado de estacionar diante de uma das bombas de gasolina. Ela jogou a capa que tinha comprado de uma adolescente espinhenta, que vinha da escola, por uma “bagatela” de cem reais, sobre o capô. Entregou as chaves do veículo para o frentista, pedindo que enchesse o tanque e entrou na lanchonete quando avistou Cristina recostada à porta.

— Está atrasada! — Vanessa atirou, mordaz.

O sorriso provocador da ladra cresceu de forma charmosa.

— Desculpe, não tenho relógio! — Ela ergueu as mãos e mostrou os pulsos. — Mas pelos meus cálculos, vocês não deveriam estar aqui. O que foi que eu disse? Nem um minuto a mais!

— Idiota!

Diana fingiu não ouvir o insulto e pediu a mochila que Cristina segurava.

— Não ligamos. Nós íamos, mas você chegou na hora. Que aconteceu? — A moça perguntou, olhando-a de alto a baixo, curiosa com a quantidade de lama em suas vestes e o rasgão no joelho, do qual um filete de sangue escorria.

— Estava brincando de pique-esconde. — Diana respondeu com outro sorrisinho e se encaminhou para o banheiro nos fundos do estabelecimento.

Cristina a observou por alguns instantes, em dúvida se devia ficar zangada com aquela atitude ou se sorria. Preferiu a segunda opção por estar cansada demais para sentir mais raiva dela.

— Qual é a graça? — Vanessa perguntou. Seu rosto demonstrava um profundo desagrado, contudo o coração palpitava alegre por saber que a ex-namorada estava bem. Ao mesmo tempo, repreendia-se por estar se sentindo assim com Cristina ao seu lado. Ainda mais depois da conversa que tiveram.

A namorada lhe sorriu, dando de ombros, e Vanessa sentiu a mesma alegria no peito diante do encanto daquele sorriso.

— É que ela me faz recordar alguém. — Cristina esclareceu.

— Quem?

— Uma amiga — seu olhar nublou por um instante, então catou um chocolate em um mostrador sobre o balcão e sentou-se na mesa próxima a porta. — Ela também tinha esse ar debochado, às vezes, e exalava uma confiança assustadora, mesmo nas piores situações.

Mordeu o chocolate com outro sorriso.

— Peça um café, acho que ela vai querer algo quente. — Terminou o chocolate em silêncio, então se pôs de pé e caminhou até o banheiro, no qual entrou sem fazer questão de bater.

Diana estava apoiada na pia, fitando o próprio reflexo com o olhar vazio. Tinha se lavado na pia do melhor jeito que pôde, vestido jeans preto e calçado botas da mesma cor. A roupa suja e rasgada jazia dentro da lixeira de um dos banheiros.

A ferida no abdômen sangrava um pouco, apresentando-se ligeiramente arroxeada. Cristina fechou a porta, vislumbrando o olhar curioso de Vanessa, recostada ao balcão, enquanto pedia o café que sugeriu.

— Quer ajuda com isso?

Diana a fitou através do espelho, admirando a face bonita de traços suaves. Alguns fios de cabelo lhe caíam sobre os olhos negros de uma forma charmosa. Com efeito, era uma mulher bastante atraente e essa beleza ressaltava quando estava ao lado de Vanessa e vice-versa. Sem dúvidas, formavam um belo casal.

— Você embebeu as mãos em veneno? — Questionou, sem ânimo para mostrar outro sorriso provocador.

Entrando na brincadeira, Cristina beijou uma das mãos com um sorrisinho ligeiro e Diana continuou a avaliá-la por mais um instante, antes de dar-se por satisfeita e falar:

— Fique à vontade.

A ladra recostou-se na pia e deixou que Cristina se aproximasse. A moça analisou o ferimento por um momento, antes de começar a limpá-lo e fazer o curativo. Enquanto isso, Diana mordia os lábios para não deixar os gemidos escaparem de forma expressiva. As dores que sentia pioraram depois de escapar de Jorge e companhia e a adrenalina da fuga, havia muito, lhe abandonou.

Delicada, Cristina aplicou o último esparadrapo sobre a pele lisa dela e se afastou, avaliando seu trabalho com um vinco a se formar na testa.

— Já fui melhor nisso. — Comentou, recordando uma época distante e percebendo que era a terceira vez que pensava a respeito naquele dia. Suspirou e lavou as mãos, enquanto Diana puxava uma camiseta da mochila e terminava de se vestir.

— Obrigada — disse a ladra, novamente fitando o rosto dela através do espelho.

— Era o mínimo que poderia fazer, depois de te ferir. — Cristina retrucou. — Além disso, não quero te ver fazendo cara de doentinha para a minha namorada. Sabe que Vanessa tem síndrome de boa samaritana.

Um dar de ombros acompanhou o sorriso presunçoso de Diana.

— Então, você é uma gatinha do tipo ciumenta. — Ela riu. — Vanessa deve adorar isso. Ela sempre gostou de demonstrações de ciúme, desde que sejam em um nível saudável, é claro.

— Isso deveria ser algum tipo de insulto?

— De modo algum, é apenas uma observação.

Diana abanou a mão ao lado da face. Inspirou fundo, ainda observando o rosto curioso de Cristina através do espelho, então a mirou diretamente. Algo a incomodava naquele semblante sério, desde o momento em que a viu pela primeira vez.

— Já nos vimos antes? — Questionou, dando voz à uma pergunta que lhe martelava a mente havia algum tempo.

Cristina sorriu para o espelho, antes de pegar um papel toalha no suporte ao lado deste e enxugar as mãos.

— Quer dizer antes de você me nocautear e jogar na mala de um carro? Não que eu lembre. Mas isso não vale muito, afinal, pelo que vimos nas últimas 24h, você nem sempre tem essa aparência. Por que pergunta?

A gatuna jogou a mochila sobre os ombros, desprezando a dor que se espalhou pelo abdómen. Não estava satisfeita com a resposta, todavia achou melhor não insistir. Mesmo assim, explicou:

— É que você me parece familiar.

— Tenho certeza de que nunca nos vimos. — Cristina afirmou, jogando o papel toalha no lixo.

— Devo ter conhecido alguém parecido com você. — Supôs a ladra, encaminhando-se para a porta, então se voltou para fitá-la.

Pousou a mão sobre a maçaneta, mas não a abriu.

— Eu não sou sua inimiga, Cristina. Não estou aqui para lutar por um amor do qual desisti há muito tempo. Não há mais espaço para mim na vida dela. Eu sou o que restou do passado e você é o presente e o futuro. Tudo que quero é protegê-la dos meus erros e espero que me ajude nisso.

Em silêncio, Cristina concordou com um inclinar de cabeça, embora soubesse no fundo do seu coração que, mesmo ela afirmando não querer lutar pelo amor de Vanessa, já estava ganhando aquela disputa há muito tempo.

 


Um desafio pra vocês!

Não vai ser tão doloroso assim, minhas amadas!

Se este capítulo tiver 10 comentários até sexta-feira, posto um capítulo extra no sábado. Ó praí! Quem topa? Vocês estão com a faca e o queijo na mão! rs… E se passar dos 10 vai ter ilustração! Hehe…

Beijos!

 



Notas:



O que achou deste história?

37 Respostas para 9. Jorge

  1. Cara, tô com uma teoria muito louca sobre a Cristina ser alguém que foi muito importante para uma outra pessoa da vida da Diana (pessoa dona de uma estória que é uma das minhas prediletas). Se isso for verdade, vou ficar feliz, pois sempre quis saber o que aconteceu com ela.
    Estou muito dividida. Gosto muito da Cristina, mas queria que a Diana conseguisse recuperar o amor da Vanessa. Assim como a Carla teve um fim feliz, com a pessoa que ela ama, torço pra Diana tbm conseguir isso.
    Talvez seja um devaneio meu, mas algumas atitudes da Cristina me despertaram suspeitas.

    • Amábile,

      É uma teoria muito interessante, mas se te contar aqui seria um baita spoiler. Então, vamos esperar mais alguns capítulos por essa resposta. rs…

      Quanto a esse triângulo amoroso, é mesmo uma situação complicada. Mas tudo é possível no amor, né? Vamos torcer para dar tudo certo!

      Te espero nos próximos capítulos! rs…

      Beijos!

    • Thaís, obrigada!

      Eu me esforço para trazer algo legal para vocês e esse retorno é muito gostoso.

      Um beijo grande e carinhoso!

  2. Jogou formigas na moita? (como diz a Grande Mestra)
    Agora aguenta!
    Daqui de Matoville eu acompanho a história, continuo adorando sua forma de escrever (outro dia tava comentando justamente isso com a Mestra) e também tô querendo o Extra e a ilustração ?. Nem que pra ler eu precise ficar um tempinho debaixo do nosso pé de cajueiro online?

    • Isinha!

      Minha flôr de Mandacaru, sua presença sempre me alegra. Eu sei que tu fica, literalmente, na moita para ler. rs… Obrigada pelo comentário, pelo carinho e pelos risos!

      Beijo no coração!

  3. Em cada capítulo me apaixono mais pela Diana.

    Ela não perde a chance d uma piadinha / chacota …

    Ansiosa pelo extra e principalmente pelo desenho.

    Já imaginando de qual personagem(s) vc vai fazer.
    Parabéns autora

    • Oi, Branca!

      Não é porque eu a criei, mas esse humor também me diverte. rs… A Diana nasceu para ser o contrapeso da seriedade pragmática da Carla em Crimes do Amor. Todavia o personagem me conquistou e ganhou sua própria história.

      Fico muito satisfeita que você esteja gostando dela.

      Como já postei o capítulo seguinte e a ilustração, espero que tenha apreciado o desenho. Me deixe saber se as imaginava assim, também.

      Beijos!

  4. É sempre um prazer ler uma história com tantos atrativos e tão bem escrita. Quero capítulo extra!
    Boa sorte sempre.

    • Mirian,

      Quanto tempo! rs… Como cê tá?
      O prazer é todo meu de ter a sua companhia nas minhas histórias!
      Espero te ver mais por aqui.

      Beijão e xêro!

  5. Oi autora, pelo visto já garantimos o cap. extra. Mas foi comentar só por garantia. Hehehehe

    Adoro sua história. Bjs

    • Oi, Carla!

      Me alegra saber disso. Bem, é um relacionamento complicado, contudo vamos torcendo para que essa confusão amorosa se ajeite.

      Meu carinho pra você e obrigada por tirar um tempinho para comentar!

      Beijos!

  6. Genteeee! mais alguém aí por favorzinho! Desafio lançado vamos lá!
    Autora nem sempre comento mas adoro suas estórias.
    bj

    • Oiiii, Meg!

      Se for seu nome mesmo, saiba que adoro ele.
      Mesmo que nem sempre comente, fico feliz em ter a sua presença. Me diga um “oi” de vez em quando, vou ficar feliz! 😀

      Obrigada por aceitar o desafio, aquele abraço carinhoso e um beijo no coração!

  7. Até eu vou entrar nesse desafio! Rrrssss…
    Tattah, tá ótima a história!
    Obrigada
    Abraços

    • Eu devia ter colocado uma nota para não valer comentários de revisoras, masssss… eu fico feliz com o seu também. rs… Afinal, tu ainda não me passou nem um “rela” sobre os meus erros e vícios de escrita! Haha…

      Um xêro bem carinhoso pra tu, Naty!

  8. Não comento, mais amo suas escritas.
    Esse Jorge e um mané… Onde já se viu querer enganar a melhor entre as melhores “apreciadora de artes” hahaha
    Parabéns Tattah …
    Esperando o extra no sábado….

    • Haha… Seja bem-vinda aos comentários, então! Como se sente ao sair da moita? Eu estou feliz e você? Hehe…
      Brincadeiras à parte, obrigada por aceitar o desafio! É um prazer tê-la comigo e quanto ao Jorge, bem, tem idiota pra tudo né? Um dia ele aprende, ou não! rs…

      Como estou respondendo com um pouco de atraso, espero que tenha gostado do capítulo extra.

      Beijos e xêros!

  9. UM PEDIDO AS LEITORAS

    GURIAS, VAMOS COMENTAR, TENHO CERTEZA Q VCS TB SE INTERESSAM POR UM CAP. EXTRA E ILUSTRAÇÃO.
    TATTAH, MESMO TRABALHANDO EM PLENA PANDEMIA LARGA DO DESCANSO DELA E ESCREVE PRA NÓS.
    ISSO É TEMPO Q ELA NOS DEDICA.
    UMA LINHA, DIZENDO SE GOSTOU OU NÃO, OU APENAS AGRADECENDO PELO TEMPO Q ELA NOS DEDICA.
    p.s. esse comentário não entra na conta pra cap extra e ilustração… k k k

    • Que bom que curtiu, Marcia!
      A resposta para o “quem” está bem próxima. Me deixe saber o que achou quando esse capítulo chegar!

      Beijos!

  10. Olha, vc lançou o desafio e eu vim né?! Torcendo por um extra no sábado, rsrsr.
    Mas que capítulo foi esse. Diana fugindo e eu com a respiração presa aqui. Essa é a primeira vez que estou lendo, então não faço ideia do que vai acontecer nos próximos capítulos. Tô achando que a Cristina conheceu a Diana.

    Abrs o/

    • Oi, Patrícia!
      Obrigada por aceitar o desafio! Olha, saber que te fiz prender o ar enquanto lia é muito prazeroso. É bom saber que o texto te afetou assim e que acertei na dose de emoção. rs… Muito bom!
      Então, eu postei esse texto no wonderclub.com.br, mas o site não está mais online e ele ficou “engavetado” por alguns anos, pode considerá-lo um texto, praticamente, inédito. rs…
      E como estou revisando e reescrevendo algumas partes, até quem leu vai se encontrar surpreso com algumas passagens!

      Beijo carinhoso!

  11. Estimada autora, vale se eu comentar mais de uma vez? Kkkkk

    Continuo gostando do modo como escreve.

    As lembranças de Cristina dão a entender que ela (ou ex dela) também já fez parte do mundo do crime. Que situação difícil a dela, ninguém merece amar alguém que ainda ama a ex. Mas ela está lidando muito bem com a situação.

    Aguardando ansiosa o bônus. Bjs

    • Querida, Rafaela, gosto do seu bom-humor. Mas não vale bancar a espertinha nesse desafio! rs… Obrigada por aceitá-lo.

      Um beijão carinhoso pra tu!

  12. Adoro um desafio, mesmo estando no modo mega preguicinha cansada de ser, para escrever, mas não para ler! hahaha

    Espero que o pessoal se mexa e saia da moita, pq eu adoraria ter extra com ilustração!

    Bjus e até sábado! 😉

    • Preguicella,

      Adoro te encontrar nos meus textos. Só acho que tu já devia ter largado essa preguiça de escrever e continuado a nos presentear com a sua escrita!

      Que acha? rs…

      Beijão, visse?

    • Tá louca, vcs que escrevem são minhas heroínas! Escrever dá trabalho demais e meu nome me representa 1000%, eu sou mega preguicela e hiper cansada! hahaha Quando criarem um aparelho que eu penso e ele escreve eu volto a escrever, ok! hahaha

      bjãooo

  13. Tattah!!!

    Lindoooooo…

    Como estou relendo, eu lembro de quem Cristina lembra… amo mto tudo isso.

    Maravilhoso, quero mais…

    • Hehe… Sou eu quem tem a te agradecer pela companhia. Muito obrigada por estar sempre por aqui. Beijos!

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