Carmem

1. Carmem

Eu sou a divisa.

O Portal do Destino.

Sou Aquela a quem ninguém chega impunemente.

E sei disso.

Ainda pequena percebi que algo em mim quebrava todos os moldes. Nasci para a liberdade extremada, o que na prática significa que não mando em mim mais que um palmo. Minha vida segue adiante como uma folha soprada pelo vento. Assim é, e assim será. Até que o vento pare de soprar.

Quando esbarrei em Carmem sabia que aquilo era o destino dela. Ainda assim me pareceu estranho. De maneira alguma se encaixava no molde daquelas que me estão destinadas. Mas o apartamento em frente ao meu, vago há mais de um ano, finalmente foi alugado.

Carmem era dessas mulheres de roupas antiquadas e olhares baixos. Uma morena linda, mas sem muito tempero. Os vestidos largos escondiam suas ricas formas, o cabelo preso retirava-lhe qualquer charme. Não era de etar que minhas roupas unissex e meu cabelo curto lhe causassem repulsa.

Na primeira semana Carmem entrou no elevador, se encolheu no canto mais distante e encarou o bico dos próprios sapatos. Depois começou a descer pelas escadas. Por quinze dias, apenas. Um pequeno acidente doméstico a obrigou a parar timidamente do meu lado, o joelho direito enfaixado. Andava com dificuldade e encolheu quando fiz menção de ajudar. Mas nos dias seguintes se viu forçada a aceitar tanto minha presença quanto meu apoio. Começamos a conversar. Um mês, dois meses. No terceiro me olhava nos olhos e fazia pequenas confissões. Estava prestes a se casar. Veio do interior para concluir a faculdade, contra a vontade da família e do noivo. Mas era questão apenas de mais uns meses e voltava para casa.

Onde há repulsa quase sempre há um desejo irracional e a jovem Carmem, que acreditava em céu e inferno e tinha medo da própria sombra, começou a me olhar de um jeito diferente. E apareceu de cabelo solto e roupas mais justas. Segredou um desejo de romper o noivado, ficar em São Paulo. O que eu achava? Não tinha amigos, sentia-se sozinha. Como era minha vida? Ela estranhava morar sozinha, há quanto tempo eu vivia assim? Tinha família? onde moravam? Eu não tinha medo de ser diferente? Não me importava com o que as pessoas pensavam? Sabia o que os vizinhos diziam a meu respeito?

E de pergunta em pergunta Carmem foi chegando mais perto. E por se tornar cada vez mais longa, a conversa vazou do elevador para a sala. E os assuntos se tornaram mais íntimos. Não me ache muito tola mas nunca conversei sobre sexo com ninguém. Você não acha que é pecado transar antes do casamento? Não sente falta de um homem em sua vida? Não sente desejo? Tenho uns desejos estranhos às vezes. Tenho medo deles. Você não sente um fogo em certas noites? E de confissão em confissão Carmem foi chegando perto. Mais perto. Da poltrona ao lado para o mesmo sofá. E no sofá foi se chegando até estar tão perto que caiu em meus braços. O primeiro beijo foi dado com sofreguidão. E já puxou minhas mãos para seu corpo, já confessou seu desejo pecaminoso. E foi logo dando que era pra não ter tempo de se arrepender.

Frequentou minha cama por quase um mês, todas as noites, infalivelmente. Mas como não poderia deixar de ser, rapidamente o medo se tornou maior que o desejo. E o carinho virou repulsa, a amizade virou ódio. Você tem pacto com o diabo, me faz sentir coisas proibidas. Você me envenenou. Você me enfeitiçou, colocou em mim esses desejos diabólicos, me obrigou a ir contra a natureza!

E saiu batendo a porta, voltou a descer pelas escadas.

Continuávamos a nos ver todos os dias, convivência forçada pela vizinhança. Então em uma manhã chegou com um homem de meia idade que me deu um soco e uma cusparada. Pela última vez vi Carmen. Olhou-me com a cabeça baixa, as lágrimas descendo silenciosamente, e se deixou ser arrastada.

Fim. Em poucos dias já não pensava mais nisso. Pra mim não tinha tido importância.

Três meses depois encontrei a porta do apartamento vizinho aberta. Novo inquilino, pensei.

Meu chaveiro fez barulho ao sair da bolsa e antes que eu completasse a volta da chave alguém se aproximou.

– Olá.

A garota aparentava no máximo vinte anos. Cabelos negros repicados na nuca e a frente grande o bastante cobrir toda a testa com uma franja lisa. Tinha fogo nos olhos e roupa provocativa. Minha nova vizinha?

Estranhei a abordagem direta, coisa rara em São Paulo.

– Olá, seja bem-vinda. Espero que goste do apartamento, é chato não ter vizinhos de porta.

– Não estou de mudança, infelizmente. Vim apenas retirar as coisas de minha irmã.

Tive medo de entender. Completei a volta da chave mas não consegui entrar em casa.

– Sou irmã da Carmem.

Falou com segurança, num tom claro de quem esperava causar eto. Ou desconforto. O que diabos ela queria? Vingança?

Abri a porta sem dizer palavra. Para mim bastava, não pretendia saber o que ela queria. Mas a jovem estava decidida a não me deixar escapar.

– Não precisa ter medo, não vou lhe cobrar nada. Só fiquei curiosa.

– Curiosa?

– Você sabe sobre o que estou falando…

– Escute aqui não lhe devo satisfações, ok? Sua irmã é maior de idade e sabia muito bem o que estava fazendo.

– Tenha calma, sei que seu encontro com meu cunhado foi difícil, mas não sou como ele. Não vim brigar. Apenas senti vontade de lhe conhecer.

– Você fala como se eu fosse uma atração turística.

Ela riu com a comparação embora esse não tenha sido meu intento.

– É quase isso – disse com certa malícia na voz – no lugar onde vivo você seria uma atração de circo. Mas não se ofenda com o comentário, por favor. Não é essa minha intenção.

– Foi pra isso que você veio, para conhecer a atração de circo?

– Não. Vim pra ter certeza.

– Estou cansando desses enigmas. Diga logo o que quer. Quer ter certeza de que?

– De que você pegou a irmã errada. Queria lhe ver, olhar nos seus olhos e ver como me sentiria. Sempre me achei diferente das outras pessoas e quando ouvi minha irmã falar de você pensei que talvez…

Parou subitamente e ficou me olhando. Já não aparentava tanta segurança quanto antes.

– Talvez…?

– Me convida pra entrar? Não sei se o corredor é o melhor lugar pra essa conversa.

Já tinha entendido onde aquela conversa ia dar e, estranhamente, não estava gostando. Foi contra minha vontade que fiz um gesto indicando a sala. As coisas estavam em um ponto que não tinham mais volta, e eu não podia fugir de minha sina de ser o desvio de rota de certas pessoas.

Assim que fechei a porta ela acariciou de leve meu rosto e depositou seus lábios nos meus. Puxou meu corpo contra o seu e sussurrou seu desejo em meu ouvido com palavras de volúpia. Suplicou para estar em minha cama e a arrastei com força, as roupas ficando pelo caminho. Tomei entre meus dedos seus seios pequenos e provoquei um gemido rouco quando lambi seus mamilos. Nua era ainda mais bonita, as bochechas levemente coradas num pudor risonho. Levou minha mão para entre suas pernas e soltou um grito quando meus dedos afastaram a vulva e tocaram seu clitóris. A menina mordeu a fronha e rebolou de prazer. Forçou meu rosto, ergueu as ancas e uivou com vontade quando minha língua raspou sua carne, provocativamente.

Depois veio o mergulho e a dança. Os gritos, as lágrimas e o delírio. Dei a ela o que havia de melhor, inclusive a oportunidade de conhecer a textura e o sabor de outra mulher. Gozei em seus dedos, molhei seu rosto, queimei sua pele.

Não nos dissemos mais do que gemidos, não nos preocupamos com detalhes. Para ela interessava a vivência. Pra mim era uma espécie de recordação. Seu cheiro e sabores eram obscenamente idênticos aos da irmã. Amei-a de olhos fechados e sem me importar com o perigo. Seu sexo parecia tão intocado quanto o de Carmen e essa sensação de desbravamento aumentava meu apetite. Demorei-me nas carícias mais íntimas e a cada novo toque seu prazer era maior. Eu retardava intencionalmente a explosão proporcionando-lhe amostras grátis de êxtase. Quando as primeiras sombras da manhã começaram a se mover pelo quarto ela resfolegava frenéticamente, uivava desesperada cravando as unhas em minha carne. Senti o traço de seus dedos descendo paralelos aos ossos de minha coluna, podia adivinhar o sangue que me tirava e isso aumentava meu prazer histérico. Senti uma convulsão subindo pelas pernas, mergulhei em seu corpo e enfiei com força dois dedos. Ela se retorceu em um grito mudo e derramou lágrimas quando foi rasgada pelo terceiro. Montei suas coxas e cavalguei-a com fúria, os dedos entrando e saindo no mesmo ritmo. Ela esmurrava minhas costas, debatia-se de prazer ou sofrimento. Pra mim não fazia diferença e cada solavanco de seu corpo alucinava-me mais e mais. Foi assim até sumirem minhas forças, meu corpo tombando desamparado sobre o dela.

As sombras e o silêncio dormitaram ali por um tempo que não sei dizer. Então, como se ressuscitasse, a morena suspirou, forçou meu corpo para o lado e deslizou para longe das cobertas. Percebi seus movimentos leves no banheiro, o abrir de uma torneira, a água caindo. O cansaço e o êxtase abandonaram meu corpo como pássaros matinais, e a consciência retornou de qualquer escura caverna onde tenha se abrigado naquele período. Lentamente fui refazendo a rota que me levou dos braços de Carmen às pernas da irmã. A primeira lágrima era quente como chumbo derretido, a segunda abriu as comportas e trouxe consigo um rio de desespero. Carmem nunca vai me perdoar, murmurei para mim mesma enquanto mordia a fronha do travesseiro. Então os soluços me sacudiram e desejei que a morte servisse de sobremesa para aquele amargo festim.

Uma ondulação acetinada acariciou minhas costas. Sobressaltei-me com a voz suave que se desculpava pelos arranhões. Mas não era isso que me incomodava, eu merecia cada gota de sangue arrancada de minha pele. A menina beijou de leve o topo da coluna e veio descendo suavemente com minúsculos beijos de carinho. Não virei o rosto, não queria vê-la.

– Não quero parecer grosseira, mas acho melhor você ir embora. Já conseguiu o que queria, agora preciso descansar.

Minha voz soou clara e fria como um caco de vidro. Os movimentos cessaram e ela se levantou abruptamente. Os ruídos seguintes foram tão tímidos quanto seus passos. Mal percebi quando saiu do quarto e andou pela casa resgatando seus pertences. Um pequeno tilintar de chaves denunciou sua saída e soltei o corpo aliviada.

– Obrigada por tudo, de qualquer forma.

A voz inesperada me causou um sobressalto, coração disparado, o susto estampado no rosto que lhe voltei num ato puramente reflexo.

– Você tem razão, consegui o queria – ela continuou, com a voz melodiosamente sincera – e lhe serei eternamente grata por abrir novos horizontes em minha vida. Não sou parva como minha irmã, não vou desperdiçar a oportunidade, tenha certeza.

Olhou-me por uma pequena fração de segundos e então se virou para sair. Mas pareceu mudar de ideia, conteve o passo no umbral e voltou.

– Sei que não posso lhe cobrar nada e ainda que essa noite tenha sido tão intensa não posso usá-la para forçar uma intimidade que não existe. Mas se me permite um conselho, esqueça-a. Carmem é uma idiota e não merece uma única de suas lágrimas.

Saiu tão suavemente quanto entrou.

Nunca soube seu nome.



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