Com o amargor da chuva que cai

Com o amargor da chuva que cai

– Vai assinar ou não vai?

Vânia quebrava vinte longos minutos de silêncio. Jogou no meu colo o abaixo-assinado que eu afastei com um pequeno tapa. Estávamos juntas há quase um ano e não era nossa primeira briga pelo mesmo motivo. Mas era a primeira vez que eu não cedia.

– Não, não vou. E me desculpe, não coloque nossa relação no meio, ok? Isso nada tem a ver comigo e você. Temos uma divergência filosófica e se você não consegue lidar com isso… paciência!

– Uma divergência filosófica? É assim que você classifica as coisas, Abigail?

Meti a cabeça no tampo da mesa. De propósito. Dois longos baques que quase derrubaram os copos sujos. Abigail tinha sido a gota d’água. Vânia sabia o quanto eu odiava ser chamada assim. Minha namorada não se abalou com a atitude. Fingiu nem perceber.

– Esse abaixo-assinado é para uma praia GLS. Um lugar onde possamos ficar em paz, entende? Sem medo, sem ressalvas. Precisamos de todas as assinaturas possíveis. E mesmo assim vai ser bastante difícil conseguir. Nem o governo e nem a sociedade querem nos ceder espaços. Custa você assinar?

– Custa. Custa muito, na verdade. Entendo seu ponto de vista, Van, mas quero que entenda o meu também. Não quero uma praia. Não quero cercas, não quero muros. Quero andar de mãos dadas em qualquer lugar. Não quero ter que me esconder em um lugar para fazer o que outras pessoas fazem em qualquer lugar.

– Queremos a mesma coisa! Mas sabemos muito bem que esse desejo é utópico, Big! Então vamos lutar por aquilo que é possível.

– Utópico? Possível? Você fala como se tivéssemos alguma doença contagiosa que as pessoas tivessem razão em temer! Trabalhamos, consumimos, pagamos impostos. Somos cidadãos como todos os outros. Temos os mesmos direitos! Di-rei-tos, Van! É nosso direito, não favor que nos prestam. Quando nos “permitem” – no ar fiz aspas com meus dedos – trocar um beijo em local público não é concessão. É direito nosso! Temos que lutar por respeito e por reconhecimento, não por um mero quilômetro de “território livre”!

O deboche das duas últimas palavras foi como um tapa na cara de Vânia. Chegamos a mais uma pausa no assunto. Levantou ofendida e se trancou no quarto. Voltaria em breve e continuaria a discussão, eu sabia perfeitamente disso. Estávamos juntas tempo o bastante para que eu conhecesse o roteiro. E esse era o problema: havia um roteiro.

Foi exatamente a militância o que me encantou nessa menina de olhos míopes e profundos. Teimava em não usar óculos, meu grau é baixo, e vivia com a testa franzida, o olhar apertado. Determinada, obstinada. Descobrimos sintonias na primeira conversa e isso abriu a estrada para encontros futuros. Ainda lembro sua vibração nas primeiras vezes em que expressei minhas ideias sobre igualdade e respeito. Vamos lutar juntas, ela disse, vamos mudar o mundo!

O mundo não mudamos, não ainda. Mas nossa relação…

A primeira briga demorou a acontecer por culpa minha. As divergências foram surgindo devagarzinho, infiltrando-se aqui e ali nas conversas. Não lhes dei atenção, não pareciam graves. A primeira vez em que Van se exaltou com uma opinião minha preferi concordar para que o confronto não estragasse o clima. Sendo honesta, eu preferia trepar a discutir. Que mal há nisso?

O mal que há nisso é você engolir tantos sapos que o tesão vai pro brejo. O mal que há é ir colocando panos quentes em desavenças que crescem com o tempo. No fim o cansaço é tão grande que a vontade de brigar também não vinga. Tive quarenta minutos para refletir nos acontecimentos daqueles onze meses. Quando Vânia voltou do quarto encontrou-me sentada no mesmo lugar, mas a cabeça morando em muitas decisões.

– E então, Big? Já esfriou a cabeça?

– Sim. Desculpe se me exaltei.

– Tranquilo. Também estou um pouco nervosa. O tempo está quase se esgotando e faltam muitas assinaturas.

Jogou novamente a maldita lista no meu colo. Não a joguei longe como anteriormente. Apenas me levantei e deixei o abaixo-assinado sobre a mesa.

– O que foi? Não vai assinar? Você disse que tinha pensado melhor!

– Eu disse que tinha esfriado a cabeça. Foi isso o que você me perguntou. Mas tem razão, pensei melhor. Pensei e decidi que está na hora de procurar outro canto pra mim. Não dá pra vivermos nesse clima, Van.

– Espera, acho que não entendi direito. Procurar outro canto? Você está me deixando? Por causa de um maldito abaixo-assinado?

– Qual a última vez que a gente transou? Consegue dizer? O abaixo-assinado é o menor dos nossos problemas. O que houve com a gente? O que fomos? O que somos hoje? Percebe, Van?

Se percebia guardou só para si. Não esboçou qualquer reação. Olhava-me. O ar estava abafado, a rua estava quieta, a televisão desligada. Os minutos ficaram suspensos e o que quer que seja que Vânia tenha processado dentro dela terminou apenas com o gesto de pegar a prancheta em que o abaixo-assinado dormitava. Não verteu uma lágrima.

– Vou levar no bar da Zeza e deixar com ela. Espero que consiga mais assinaturas até o fim da outra semana. De lá acho que vou pra casa da minha mãe. Quando sair joga a chave por debaixo da porta. E saiu.

Recolhi meus trecos, meus cacos. O calor da tarde pareceu mais insuportável do que nunca. Das crianças que, costumeiramente, jogam bola aos domingos, nem sinal. Deve ser o calor, murmurei enquanto tirava com a manga o suor que escorria pela testa. Desci a rua com a mochila carregada de passado. Amanhã tem batente. Dormir onde essa noite? Talvez na Cida. Ou na Paula. Fátima. Sim, Fátima.

Foi na casa de Fátima que Vânia e eu nos conhecemos. Precisei de três cervejas para ter coragem de aborda-la. Semanas de conversas até o primeiro encontro. Um quase infarto no primeiro beijo. Para tudo terminar num jogue a chave por debaixo da porta.

O trovão veio junto com os pingos grossos, uma daquelas tempestades de verão que chegam sem nenhum aviso. Veio e me carregou em água, vento e raios. A vida tem dessas. Amores morrem sem que a gente se dê conta. Às vezes só falta a pá de cal por cima.

Nem toda história acaba bem.



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