15.

A porta do quarto de Carla estava entreaberta e Carolina a olhou fixamente por um minuto, cogitando a possibilidade de tentar ter a conversa que ela havia falado mais cedo, então recordou de vê-la com Diana no escritório e decidiu que não se sentiria bem em conversar com ela após presenciar sua intimidade, ainda mais, por ter certeza de que sabia de sua presença a espioná-las.

No entanto, quando se voltou para entrar em seus aposentos, a porta do quarto dela se escancarou para dar-lhe passagem e Carolina desviou o olhar de sua figura apressada, envergonhada por acha-la terrivelmente sexy naquele momento. Usava um baby doll preto e por cima um robe da mesma cor que se encontrava aberto expondo a brancura da sua pele. Seus cabelos estavam soltos e úmidos e o cheiro do banho recém-tomado lhe invadiu as narinas agradavelmente.

Engoliu em seco, perguntando-se como podia ter acordado odiando-a naquela manhã e, naquele momento, a achar estonteante de tão bela e atraente.

— Boa noite — ela disse em um sussurro.

Carolina quase não havia capitado a frase, já que estava distraída tentando não olhar para ela e torcendo para que não percebesse o rubor em sua face, que o calor em suas bochechas indicava.

— Boa noite — respondeu.

Carla quis sorrir, achando adoravelmente linda a sua vergonha, lembrando-se das palavras de Diana. No entanto, manteve a seriedade.

— Você está bem?

Deixando um suspiro longo escapar, Carolina ergueu o olhar para ela e encontrou o rosto da Carla de sempre, isso a deixou mais tranquila e se concentrou em sua face.

— Arrumei o meu quarto — informou, sem graça, já que foi a única coisa que lhe ocorreu.

— Bom.

— Me acalmei um pouco fazendo isso, até me deixar envolver de novo por pensamentos conflitantes e acabei sendo grossa com Maria. Realmente, a ofendi — confessou em um fôlego só, reconhecendo a estranheza de sua atitude.

Esperou que ela perguntasse o que havia dito, mas se manteve em silêncio a observá-la. Os braços cruzados, tornando os seios mais convidativos aos olhos e Carolina mordiscou o lábio indo abrigar seu olhar no chão.

— Estava indo preparar um chá para me ajudar a dormir. Me faz companhia? — Carla a convidou, disposta a descobrir se o que Diana havia insinuado era verdade.

Carolina ainda pensou em declinar, mas acabou aceitando com um inclinar de cabeça e a seguiu em silêncio até a cozinha. E se perguntou, durante os minutos em que ela usou para preparar o tal chá, o que estava fazendo ali. Queria conversar com ela, era óbvio, mas naquele momento não se sentia tão motivada para fazê-lo, mal conseguia olhá-la sem sentir as bochechas arderem.

Carla depositou uma xícara à sua frente e sentou-se à mesa, diante dela. Ainda sentia os efeitos do vinho. Adorava a bebida, mas raramente tomava mais que duas taças, pois gostava de manter sua mente sempre clara. No entanto, havia tomado uma garrafa inteira com Diana e sentia os efeitos do álcool vibrando em suas veias, mas não estava bêbada, apenas relaxada.

— Maria não se ofende com facilidade — afirmou, quebrando o silêncio, divertindo-se com o esforço que Carolina fazia para não olhá-la. — O que disse a ela?

Carolina se empertigou na cadeira, incomodada, mas respondeu com sinceridade. Tinha certeza de que, cedo ou tarde, a própria Maria lhe contaria.

— Insinuei que ela era sua amante.

Em outro momento, Carla poderia ter ficado com raiva. No entanto, preferiu se apegar a leveza que o vinho havia lhe trazido. Amava Maria, mas não daquela forma. Achava-a muito atraente, era verdade, mas era só isso.

— Por quê? — quis saber.

Carolina olhou para a xícara à sua frente, voltando a se sentir um pouco irritada, mas decidida a responder.

— Por várias razões.

— Cite-as.

— Como me disse, certa vez, você não é um anjo e raramente sorri e é sempre dura, rígida. Tem essa profissão do cão… Enfim, não preciso repetir as mesmas coisas que te falei naquele dia na cafeteria, não é?

— Não.

— Então, com ela você é sempre carinhosa e vice e versa e teve aquele par de brincos… Ninguém gasta uma pequena fortuna com brincos para a empregada.

Carla depositou a xícara que segurava na mesa, torcendo para que a camomila, da qual o chá era feito, se aliasse ao vinho e fizesse efeito antes que Carolina a fizesse perder a calma.

— Nunca precisei comprar calor em minha cama, Carolina. Nunca precisei comprar afeto de qualquer tipo — respondeu dura.

Carolina sentiu uma sincera indignação em sua voz e não encontrou as palavras por alguns minutos em que a observou tomar seu chá com o olhar fixo na madeira da mesa. Outra vez, ela parecia estar ausente, mas isso não durou muito.

— Maria é uma amiga, uma pessoa especial para mim. Me conheceu em uma época em que a única coisa má em meus pensamentos era conseguir cortar o fio das pipas dos garotos da aldeia em que vivíamos.

— Aldeia? — arqueou a sobrancelha, sem disfarçar a curiosidade.

Mas, Carla não estava disposta a desenterrar fantasmas e ignorou a pergunta, sorvendo um pouco mais de seu chá, recordando que sua mãe adorava a bebida, principalmente, o de hortelã.

— E quanto a Diana?

Carla recostou-se na cadeira, percebendo uma nota de desprezo na voz dela quando pronunciou o nome da moça.

— Uma velha amiga — respondeu.

— Você transa com todas as suas amigas?

Carla capitou algo mais além da ironia em suas palavras, evocando, outra vez, o que Diana lhe dissera.

— Poderia lhe fazer a mesma pergunta, afinal, você e Bento foram muito mais que amigos, não é mesmo?

Carolina desviou o olhar do seu por alguns segundos, sentindo uma pedra afundando em seu estômago ao ouvir o nome do falecido amigo.

— Era diferente — respondeu em um sussurro.

— Como?

— Só era diferente — respondeu, vacilante.

— Ainda não vejo onde está a diferença. Vocês eram amigos, ele gostava de você, você dele. Onde está a diferença? Diana gosta de mim, eu dela. Somos amigas também.

Carolina mordiscou o lábio.

— Sinceramente, não entendo o que você vê nela. É vulgar, irritante e…

— Linda, inteligente, culta, brincalhona, muito agradável e sedutora quando quer — Carla a interrompeu, divertindo-se ao perceber alguns traços de ciúmes nas palavras dela e começou a acreditar que Diana tivesse razão.

Carolina engoliu o resto de suas palavras, percebendo com horror que não só a estava achando atraente, mas estava sentindo ciúmes dela. Era esta a razão de não gostar de Diana e ter ficado tão incomodada com os carinhos que trocaram no escritório.

Fechou os olhos e prendeu a respiração, repetindo mentalmente que era um engano, mas quando os abriu e encontrou o azul dos dela, deu-se conta de que era realidade. Carla a afetava e questionou-se quando seu ódio se tornou aquilo? Quis se erguer e partir, assustada com suas descobertas sobre seus sentimentos, ansiando um momento de solidão para pesá-los com cautela e sobriedade, mas Carla tomou sua mão sobre a mesa, como havia feito naquela manhã e apertou-a levemente.

— Eu sou bem mais do que aquilo que sempre viu, Carolina. Diana também é bem mais do que aparenta e isso nos uniu em um laço muito forte, não da maneira como você imagina, mas, ainda assim, bem próximo disso.

Fez um movimento circular no dorso de sua mão com o polegar, enquanto Carolina sentia sua pele arder ante o contato. Não queria sentir aquilo, mas a olhava naquele momento e não enxergava a mulher que a espancou meses antes, nem a que cravou um canivete no coração de um homem sem qualquer remorso.

— Você também é muito mais do que aparenta — afirmou.

Com esforço, respondeu:

— Sou apenas o que está diante de você.

Carla sorriu, repetindo o carinho em sua mão.

— O que andei vendo nos últimos tempos não é você. Pelo menos não é você de verdade.

— Como sabe?

— Porque a conheço.

— Penso que não — respondeu, desafiadora e Carla aceitou seu desafio com outro sorriso.

— Vejamos, sei que mordisca o lábio quando está nervosa ou com medo. Como agora, por exemplo. Sei que quer ser mãe, pois seus olhos brilham quando veem um bebê e logo pede para segurá-lo. Sei que gosta do frio, pois costuma caminhar pelos jardins à noite sem agasalho. Sei que música clássica a deixa concentrada e relaxada, sempre fecha os olhos quando houve “As quatro estações de Vivaldi”, principalmente, a estação do inverno. Mas, também gosta de outros estilos e cantarola rock, enquanto escolhe as roupas que irá usar no trabalho. Sei que gosta de ler romances policiais, mas também se interessa por política e economia. Não gosta de beber, mas nunca recusa uma taça de vinho, a qual sempre toma até a metade para parecer que está bebendo quando, na verdade, já parou. Sei que…

— Como sabe de tudo isso? — a interrompeu surpresa e sentindo-se exposta como um livro aberto.

Carla soltou sua mão devagar, triste por ter de fazê-lo.

— Presto atenção, só isso. E a mulher que vem sendo nos últimos meses não é a Carolina sobre a qual falei.

Carolina recolheu a mão, consciente de seu pulso acelerado e da falta que sentia do toque dela. Mordiscou o lábio, irritada por sentir aquilo e mais um pouco. Ela a conhecia, seus gestos, seus gostos, havia dedicado tempo a prestar-lhe atenção e lhe falava com carinho, no mesmo tom que havia usado com Diana mais cedo.

Pela primeira vez, desde que foi depositada ali, Carolina pegou a xícara e sorveu um longo gole do chá em busca de clareza e um pouco de calma. Então, resolveu mudar de assunto, já que ainda não havia encontrado forças para se erguer e partir. Tentava não parecer abalada por seu toque e palavras ou pelo mar revolto de sentimentos em seu interior.

— Você está com problemas?

Carla ergueu-se indo até o fogão para colocar um pouco mais de chá em sua xícara, enquanto perguntava:

— O quanto você ouviu?

Carolina buscou alguma nota de reprovação em sua voz, mas ela parecia a mesma de sempre. No entanto, ao contrário do que havia feito com Diana, não negou que as tinha espionado e sentiu a necessidade de se explicar.

— Não tive a intensão de espionar vocês. Só queria ter aquela conversa sobre a qual me falou hoje cedo, mas quando cheguei ao escritório vocês estavam conversando e…

— Você resolveu escutar.

— É, mais ou menos. Posso perguntar o que está acontecendo?

Carla pousou o olhar nela com gravidade, havia dito a Diana que não queria que soubesse o que se passava, no entanto, acabou decidindo lhe contar parte da verdade.

— Alguém estava roubando do Marcos dando a entender que era o Joaquim Rodrigues e alguém estava roubando do Joaquim fazendo parecer que era o Marcos. Agora, estão distribuindo as drogas deles usando outro nome.

— E quem está fazendo isso?

— Eu — sorriu, o mesmo sorriso tosco que surgia em sua face quando matava.

Carolina sentiu um arrepio percorrer sua coluna ao vê-la fazer isso e engoliu em seco.

— Você não faria isso — afirmou e recebeu dela um olhar inquiridor.

Começava a perceber que era possível enxergar as emoções dela. Bastava ser um pouco mais atenta. A raiva, a dúvida, o riso e muito mais estavam lá, mas eram microexpressões tão insignificantes que as pessoas não percebiam. Afinal, Carla não era tão indecifrável. E deu-se conta de que só percebeu isso, quando reconheceu que estava se sentindo atraída por ela, minutos antes.

— Se tem algo de que Marcos sempre se orgulhou é da sua fidelidade e, mesmo não concordando com as vidas que escolheram, sei que não é da sua natureza trair.

Carla tinha um problema gigante nas mãos. Uma coisa era ela, Carolina, roubar alguns milhares de reais, outra bem diferente era Carla, o braço direito de Marcos e membro respeitado de sua organização roubar dele e do seu rival, milhões de dólares em drogas.

— Se ele matou por bem menos, o que fará com você por isso? — questionou, preocupada com seu destino.

— Ele fará o que for preciso — respondeu, calma.

— Céus! Você não está preocupada?

— Deveria?

Carolina se colocou de pé, indo depositar a xícara vazia na pia onde ela estava recostada, irritada por seu desapego à vida.

— Não tem medo de morrer? — questionou à poucos centímetros dela que não havia se mexido para lhe dar passagem.

Carla depositou sua xícara na pia devagar para que não fizesse barulho nem derramasse seu conteúdo e voltou a tomar a mão dela entre as suas e Carolina começava a perceber que gostava disso muito mais do queria admitir.

— Porque deveria temer algo que é inevitável? Este é o destino de todos nós.

— Você é maluca ou tomou muito vinho com aquela outra doida — respondeu, ainda mais irritada e fez questão de se voltar em direção a porta, incapaz de permanecer tão próxima dela, ciente de que a alça de seu baby doll havia escorregado e deixava grande parte de um de seus seios à mostra. Mas, Carla não havia soltado sua mão e a puxou com força, prendendo seu corpo junto ao seu. — O que está fazendo?

Sua respiração acelerou ao sentir o calor do corpo dela com tão pouco tecido pressionando o seu, ouvindo-a responder com olhar penetrante.

— Sendo impulsiva e tentando comprovar a teoria de uma “doida” — apertou-se a ela com mais força, ciente de que o pior que poderia lhe acontecer depois do que estava prestes a fazer, era Carolina a odiar ainda mais.

Escorregou as mãos por seus cabelos negros até alcançar sua nuca e Carolina deixou um suspiro escapar ao perceber que queria que ela a beijasse, desejando loucamente provar o sabor dos seus lábios, assustada com a intensidade desse desejo. E Carla pousou os lábios sobre os dela com leveza, com medo e terrivelmente feliz por, finalmente, poder prova-los.

Esperou que Carolina a empurrasse para longe, em vez disso, ela entreabriu os lábios convidando-a a se aventurar neles, dando passagem a sua língua carinhosa e exigente. Estava, insanamente, perdida em seus sabores e se entregou aquele beijo, correspondendo-a com a mesma intensidade, apertando-se mais ao seu corpo, enquanto suas mãos envolviam seu pescoço, incapaz de imaginar o vulcão de emoções que percorriam Carla por estar vivendo aquele sonho.

Então, a falta de ar as separou e a realidade se abateu sobre Carolina. Havia se deixado envolver pela sua inimiga, pela mulher a qual odiava desde a infância e que havia jurado matar meses antes. Viu-se presa de suas íris azuis, desejosa de um novo beijo, mas com uma tempestade de sentimentos a lhe enervar a mente e, aos poucos, Carla a soltou, extasiada demais para impedi-la de partir quase correndo, desaparecendo pelo corredor escuro que levava aos seus aposentos.



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