18.

I

Diana sorriu.

Tinha o olhar fixo na mulher que cruzava o parque correndo com passadas largas e em ritmo constante, os cabelos castanhos presos em um rabo de cavalo já quase desfeito pela corrida. Seria bonita, não fosse a cicatriz de uma queimadura, sofrida ainda na infância, que tomava parte do lado direito de seu rosto. Ainda assim, tinha um ar charmoso. Ela diminuiu a velocidade gradativamente até que sua corrida tornou-se uma caminhada leve e Diana baixou o olhar para a pasta que tinha em mãos observando a mesma mulher em uma fotografia 3×4.

Carla a conhecia muito bem e sabia como gostava de trabalhar. Apesar do pouco tempo que tivera, havia reunido informações suficientes para que Diana executasse seu trabalho com rapidez e eficiência.

Conhecedora de alguns de seus métodos, a loira presumiu, acertadamente, que a ladra iria precisar das fichas dos funcionários do banco e não poupou dinheiro para conseguir as informações que necessitava por meio de suborno e algumas ameaças também.

Enquanto o táxi em que deixou a casa da amiga a levava para fora da cidade por ruas escuras e desertas, Diana estudou atentamente os rostos e fichas até encontrar a pessoa ideal, aquela que seria a sua porta de entrada no banco.

Escolha feita, pediu para o taxista a deixar em um hotel duvidoso no centro da cidade em que a agência era situada. Ainda era madrugada quando se instalou em um quarto mal iluminado e cheirando a mofo. Então, começou a acionar seus contatos.

Geralmente, era Aquiles que lhe fornecia todas as informações para que realizasse seu trabalho já que os clientes entravam em contato direto com ele. No entanto, Carla era diferente. Havia uma rixa entre eles e a criminosa recusou-se a lhe fornecer qualquer informação sobre o trabalho. A loira pagou três vezes mais pelo segredo e para que fosse Diana a realizar o serviço.

Era o fim da tarde de domingo, menos de vinte quatro horas após ter deixado a casa de Carla. Não havia dormido na ânsia de encontrar logo sua vítima, em busca da oportunidade perfeita de abordá-la. Contudo, não estava cansada, pois era acostumada a ter longos períodos de privação de sono. Nada a empolgava mais do que um trabalho, mas como Carla havia dito, não seria um desafio para ela.

Antes do fim da manhã, observou a residência da sua vítima, que se chamava Eleanor, por algum tempo. Fingiu estar perdida para tocar em sua campainha e puxar conversa a fim de descobrir com quem vivia e capitar seu jeito de falar e gestos. Um dos botões de sua jaqueta continha uma microcâmera que enviava as imagens para o notebook no banco traseiro do carro que havia alugado e estava parado na esquina.

Agora, a observava correr em volta do parque à espera do momento perfeito para agir. Dada a natureza dos problemas de Carla e da urgência que lhe pediu, iria executar seu plano pulando algumas etapas e baseando-se nas informações que ela obtivera. Entretanto, não se descuidaria. Em sua profissão, não havia margem para erros, pois eles podiam lhe custar a vida.

Diana fechou a pasta e a guardou na mochila, caminhando em direção a Eleanor. A mulher havia encerrado seu exercício para comprar um suco em um food truck estacionado na esquina.

Diana conteve um sorriso, enfiando a mão no bolso da calça jeans que usava e retirando um pequeno frasco. Seria muito fácil, o gosto de Eleanor pelo esporte havia tornado tudo mais simples. Com ar distraído, esbarrou na mulher atirando seu suco no chão.

Como esperado, Eleanor não a reconheceu. Naquele momento, apresentava-se completamente diferente da moça ruiva com sotaque gaúcho que havia batido à sua porta pela manhã.

— Perdão! Por favor, me desculpe! — pediu com expressão de culpa sincera.

Eleanor fez cara de zanga, pronta para falar alguns desaforos para aquela moça estúpida, mas relaxou quando ela se ofereceu para pagar outro suco com um sorriso e um novo pedido de desculpas. Sequer percebeu que, ao pegar o suco, a mão leve da moça havia despejado o conteúdo de um pequeno frasco nele. Satisfeita, seguiu seu caminho para casa, enquanto ria do acontecido.

Diana a seguiu, disfarçadamente. Logo, saberia tudo que Carla não havia conseguido descobrir para realizar sua tarefa.

II

Carolina acordou relaxada. Era a primeira vez, em meses, que dormia tão bem e não tinha pesadelos. Sorriu, enquanto observava o último traço de luz solar tocar a parede, desaparecendo um minuto depois, deixando o quarto envolto na penumbra. Sentia a respiração regular de Carla acariciando sua nuca, enquanto seu braço a envolvia grudando seus corpos.

Com cuidado, libertou-se de seu abraço e saiu da cama. Alguns fios de cabelo loiro caiam sobre a face de sua amante e afastou-os delicadamente, admirando suas feições, recordando os momentos de amor daquela manhã. Jamais havia se entregado a alguém daquela forma, jamais sentiu algo parecido ou sonhou em ser tão feliz ao receber um beijo.

Jamais imaginou que odiaria tanto aquela mulher e que a amaria na mesma medida.

Caminhou pelo quarto recolhendo as roupas jogadas pelo chão, ainda ouvindo o choro dela rasgar sua alma, ainda sem conseguir acreditar que aquela fortaleza fria, como sempre a enxergou, havia desabado dolorosamente em seus braços.

Ainda nua, fechou a porta com cuidado para não fazer barulho e cruzou o corredor indo se abrigar em seu próprio quarto e recebeu com alegria a água gelada do chuveiro que percorreu seu corpo apagando os vestígios que os lábios dela deixaram em sua pele, porém sem conseguir alcançar as marcas que havia deixado em sua alma e coração.

Então, também se rendeu às lágrimas. Lágrimas de alegria, lágrimas de tristeza e medo. Se entregar a ela, senti-la entregue aos seus toques abandonando de vez a aparência da assassina fria e cruel, foi lindo, mas também foi assustador.

Era assim que sua mãe se sentia quando estava ao lado de Marcos, sabendo quem e o que ele era, o amando tanto que fechava os olhos para seus crimes? Provavelmente, sim.

E ela, Carolina, seria capaz disso?

Sabia que não.

Era certo que agora que havia decidido se entregar a força avassaladora daquele sentimento, não se sentia mais capaz de ir embora para longe dela. Mas, ainda assim, queria fugir de toda aquela escuridão. Restava saber se Carla fugiria com ela.

III

O som de chamada do celular acordou Carla.

Confusa, ela procurou por Carolina sentindo o vazio invadi-la pela ausência dela. Irritada, sentiu uma pontada de dor no abdômen quando esticou o braço para o celular que clamava, insistente, sua atenção vibrando sobre o criado mudo.

— Alô.

— Eu o encontrei — a voz grave de Tito se fez ouvir do outro lado da linha e ela saltou da cama com rapidez, tornando-se atenta.

— Espere um minuto — ordenou e andou pelo quarto e banheiro em busca de Carolina. A ausência de suas roupas eram um forte indicativo de que não estava ali, mas precisava ter certeza.

Com uma careta, voltou a sentar-se na cama e passou a mão pelas manchas que o impacto das balas de Joaquim deixou. Ainda sentiria aquela dor por muitos dias.

— Continue — pediu.

— Devemos estar de volta amanhã à tarde — o rapaz informou um pouco ofegante e ela imaginou que não tivesse sido fácil cumprir a tarefa que lhe incumbiu dias antes.

— Ele disse algo?

— Não. Está aterrorizado.

— Que ele guarde o medo para quando nos encontrarmos — comentou friamente.

Uma risada baixa e malvada dele ecoou através do aparelho, enquanto lhe contava os pormenores de sua perseguição. Satisfeita com o trabalho dele, ela contou o que havia se sucedido naquela manhã.

— Você sabe o que fazer.

— Sim, farei como de costume. Providenciarei tudo para os enterros e para que as famílias de Raul e Éder não fiquem desamparadas. E quanto ao nosso “amigo” aqui?

— Mande Júnior trazê-lo. Preciso que você faça outra coisa para mim.

Quando desligou o celular, dez minutos depois, ela caminhou até a janela e observou os portões guardados por dois dos homens de Marcos. Na criminalidade, a morte era sempre uma possibilidade. Os dois seguranças mortos, não eram anjos, mas tinham família e ela sempre cuidou daqueles que a serviam.

Abandonou suas preocupações e o ódio que o momento lhe inspirava e se entregou as lembranças do amor de Carolina com um sorriso largo a iluminar seu rosto. Precisava lhe falar.

IV

— Devo fingir que não ouvi nada? — Maria questionou quando Carolina entrou na cozinha.

A índia exibia um sorriso malicioso quando falou e Carolina sentiu sua face arder com um misto de raiva e vergonha.

— Quando disse para ir falar com ela, não esperava que fosse tão fundo no assunto — debochou. — Mas, já que foi, suponho que foi uma “ótima” conversa já que só saiu de lá agora.

— Caramba! Quer parar?

Maria gargalhou com prazer.

— Por que deveria? A sua vergonha me diverte.

— Ok, já entendi. Está se vingando. Fui um pouco estúpida e idiota com você ontem.

— Um pouco?

— Certo. Muito idiota! Me desculpe por isso — pediu, enquanto pegava um copo com água e sentava à mesa.

A índia deu de ombros dizendo que já havia esquecido, então retirou uma faca do suporte sobre a pia a espetou na mesa com violência, fazendo com que Carolina afastasse a cadeira para trás assustada. O copo que segurava, segundos antes, rolou pela mesa derramando seu conteúdo e alcançou a borda, espatifando-se no chão em seguida.

— Está maluca?! — Carolina gritou.

Maria que era sempre sorridente, a fitava sombriamente.

— Não — respondeu.

— Então, que porra você pensa que está fazendo?

A índia ainda segurava o cabo da faca. Seu semblante era assustadoramente diferente do costumeiro e Carolina empurrou a cadeira para trás por mais alguns centímetros.

— Estou te dando um aviso de um jeito que você parece entender muito bem. Ela é minha amiga. Pode parecer forte como uma rocha, desalmada, insensível, mas não se engane, há muito mais por trás daquela casca de vilã sem coração.

— Eu…

— Se você a magoar, arranco seu coração.

Carolina engoliu em seco, o modo como seus olhos brilhavam, deixava claro que ela cumpriria a ameaça.

— Desejo é fácil, — Maria continuou — querer é fácil, amar é que é difícil, pois isso implica aceitar no outro tudo o que há de bom e de ruim também. E nós sabemos que o coração dela, às vezes, pode ser bem negro.

Puxou a faca e voltou a guardá-la no suporte, enquanto Carolina deixava um suspiro aliviado escapar e foi recolher os cacos do copo jogando-os no lixo, lançando olhares desconfiados na sua direção.

— Se é só desejo o que sente, vá. Ela não irá lhe impedir de partir. Desejo é algo frágil e não dura muito. Mas, se decidir ficar, que seja porque sente algo a mais. Se assim for, saiba que ela lhe dará o céu e as estrelas, mas existe a possibilidade de que o inferno venha junto também.

Carolina recostou-se na parede, cruzando os braços e ainda se recuperando do susto. Já havia pensado sobre o que ela lhe dizia, enquanto tomava banho e sua mente ainda dava voltas sobre o assunto.

— Acho que venho me comportando como uma pirralha idiota e mimada por muito tempo — admitiu. — Como você disse ontem, estava cega. Cega pela raiva, pelo medo, pela dor. A culpei por meus erros e escondi minha vergonha por trás do ódio que ela sempre me inspirou desde que nos conhecemos.

Enquanto a escutava, Maria enxugava a água derramada sobre a mesa, desejando que a amiga tivesse um pedaço de felicidade para iluminar seu coração, temendo que Carolina a destruísse de vez.

Carla amava Carolina havia muito tempo e Maria gostava de ver aquele sentimento por parte dela como um botão de rosa louco para florescer. Mas, quando se reencontraram, cinco anos antes, ela vivia imersa em escuridão e se deixava consumir facilmente por ódio e raiva, prova disso eram as longas horas que passava a espancar um velho saco de areia em uma mini academia que tinha no porão da casa.

Quando Carla a convidou para morar com ela, passou-se três meses antes que tivessem uma conversa de verdade. Todos os seus diálogos eram quase monólogos da parte de Maria. Quase um ano depois, ela lhe falou daquela menina que, sem perceber, salvou sua vida e a viu sorrir de verdade pela primeira vez, desde que ali chegara, quando pronunciou seu nome. Foi algo que tocou seu coração sofrido e decepcionado com o amor.

Quando Carla conheceu Diana, Maria a observou se tornar mais cheia de vida e mais alegre dentro de casa, embora fosse sempre ríspida e dura fora dela. No entanto, o modo carinhoso com que se referia a ladra, jamais se aproximou à forma com que falava de Carolina. Tê-la naquela casa nos últimos meses, havia trazido à tona múltiplas facetas da amiga, algumas boas, outras nem tanto.

Sabia que Carla amava de uma forma peculiar e deixaria Carolina partir sem pestanejar e faria qualquer coisa para mantê-la segura, para que encontrasse paz e felicidade onde escolhesse viver, mesmo que aquilo lhe destruísse.

Por estas razões e tantas outras, queria que Carolina compreendesse seus próprios sentimentos e tomasse uma decisão: partir, enquanto ainda havia pouco a destruir no coração de Carla ou ficar e descobrir o quão doce ela poderia se tornar.

Um movimento de Carolina fez com que voltasse a prestar atenção em suas palavras. Ela dizia:

— Mas, devo confessar que desde que vim para cá, comecei a percebe-la diferente do que sempre vi e pensei. Comecei a “me” perceber diferente também. Contudo, continuei ignorando os detalhes.

Coçou o nariz por um instante e Maria puxou uma cadeira para se sentar.

— O que você me disse ontem mexeu comigo, assim como outras coisas que aconteceram ao longo do dia e da noite. Vê-la com Diana também foi um fator importante para que compreendesse algumas coisas em relação aos meus sentimentos e tudo ficou mais claro quando ela me beijou bem aqui, nesta cozinha.

Sorriu, um pouco desconcertada pelo olhar que a índia lhe dirigiu e envergonhada pela forma que havia fugido dos braços de Carla após aquele beijo.

— Onde quer chegar? — Maria cansou de esperar que continuasse, pois havia se calado de repente.

Carolina abriu os braços e começou a andar de um lado para outro, falando e gesticulando.

— É complicado. Existem muitas coisas no meio, mas ontem descobri que todo aquele ódio que sentia por ela, na verdade, era amor — riu e parou diante dela, cabisbaixa. — Você tem razão, amar é mais difícil, principalmente quando “você” ama alguém que já extrapolou todas as definições do que é “ruim”.

Enxergava no olhar de Maria que ela não havia feito aquela colocação à toa quando lhe falou mais cedo e, pela primeira vez, desde que Bento havia falecido, abriu seu coração para alguém. Ouviu e foi ouvida, sentindo que havia encontrado em Maria um pouco da amizade que havia perdido.

Voltava cabisbaixa pelo corredor, ainda pensando na conversa que havia tido com a índia quando notou a presença da loira a observa-la recostada na porta do quarto. Assim como ela, havia tomado um banho e seus fios dourados caiam sobre os ombros ainda úmidos. Usava o mesmo robe preto da noite anterior que, entreaberto, permitia que notasse que ela estava nua por baixo dele.

Carolina prendeu um suspiro ao vê-la e correspondeu seu sorriso.

— Oi — cumprimentou.

Carla caminhou devagar até ela, os olhos fixos no seus.

— Oi — respondeu em um sussurro quando ela se curvou e beijou-lhe a bochecha. — Pensei que tinha fugido outra vez.

Carolina riu pela suavidade em seu gesto e depositou a bandeja com sanduíches e sucos que Maria a havia ajudado a preparar sobre um aparador próximo, e se grudou a ela devorando seus lábios em um beijo sôfrego, mal podendo acreditar que, no dia anterior, havia acordado com o coração cheio de ódio por ela.

— Isto significa que podemos continuar àquela conversa? — Carla questionou quando a soltou.

Carolina riu.

— Achei que já tínhamos conversado bastante.

— Foi uma conversa muito interessante e prazerosa, devo admitir. Confesso, estou louca para repeti-la, mas preciso mesmo lhe “falar”.

Carolina concordou com um inclinar de cabeça e tocou-lhe a face, carinhosa.

— Tudo bem, mas poderia ser amanhã?

— Por quê?

— Acho que já tivemos emoções demais por hoje e, sinceramente, me sinto desgastada.  Sei que tem muito a falar e eu a ouvir. Também desejo conversar com você sobre algo importante. Mas, ficaria feliz se pudéssemos adiar esta conversa por, pelo menos, esta noite.

Carla ansiava pôr seus sentimentos em palavras, apesar de já tê-los demonstrado com seus gestos mais cedo. No entanto, concordou com seu pedido. Se havia esperado tanto tempo, poderia esperar um pouco mais. Além disso, já havia dito o mais importante: eu te amo.

Esqueceu as preocupações que o telefonema de Tito lhe trouxe e contentou-se então, em envolve-la em um abraço apertado por um longo tempo, sentindo-se leve como havia muito não sentia.



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