I

Carolina foi introduzida no escritório do padrasto e sentiu seu estômago revirar de medo ao notar o plástico que recobria todo o piso. Se não a tinham deixado morrer mais cedo, à beira do rio, era porque cabia ao padrasto a “honra” de matá-la.

Ainda estava entorpecida pelos analgésicos que o Dr. Pontes lhe deu ao tratar de seu ferimento. Com um sorriso satisfeito, ele lhe contara com orgulho, que fizera um trabalho tão bom ao costurar o buraco que a bala deixou ao macular seu corpo, que a cicatriz quase não seria notada.

Um desperdício de tempo”, ela pensou. Afinal, não demoraria muito para que outra bala encontrasse abrigo em seu corpo.

Santiago a forçou a se ajoelhar sobre o plástico com evidente prazer e ela lhe enviou um olhar desafiador, embora não sentisse toda a coragem que tentava demonstrar. De fato, estava morrendo de medo e não queria que aquele homem desprezível se divertisse com seu temor.

— Onde está o dinheiro? — Marcos perguntou por trás de uma cortina de fumaça do charuto que tinha nas mãos.

— Não sei — respondeu com esforço, um sabor amargo em sua boca.

Santiago desferiu um tapa violento em seu rosto e ela tombou para trás.

— Onde está o dinheiro? — ele perguntou com sua voz grave e anasalada, incomodando seus ouvidos.

— Eu não sei! — ela repetiu, colocando-se de joelhos outra vez para voltar ao chão logo em seguida, após receber um soco dele.

Sangue morno jorrava de seu nariz, enquanto ela se dava conta da presença de sua captora. Carla estava recostada na porta com os braços cruzados. Ainda usava as mesmas roupas com as quais a encontrou no rio. Grãos de areia fina e branca estavam grudados nela, alguns tingidos de vermelho, o vermelho do seu próprio sangue de quando ela a levou para o carro após matar Miguel.

Seu olhar ainda era tão frio e inexpressivo quanto treze anos antes, quando a viu pela primeira vez, caminhando para uma morte semelhante a que teria dali a poucos instantes.

Santiago a puxou pelos cabelos, fazendo com que retornasse à posição inicial.

— O que fez com o dinheiro?

Ela cuspiu um pouco de sangue na camisa branca dele e deixou um sorriso vermelho à mostra. Se o fim estava próximo, não havia motivos para não sorrir diante dele.

— Estava com Bento quando ele caiu no rio — respondeu, evocando a lembrança do rapaz que, naquela manhã, havia lhe sorrido, enquanto lhe falava do futuro que os esperava longe daquele lugar amaldiçoado.

— Sendo assim, você não tem mais nenhuma serventia — Santiago falou com desdém.

Ela voltou a cuspir um pouco de sangue e, junto com ele, um de seus molares.

— O dinheiro era uma ninharia, serviria apenas para dar início a uma nova vida — dirigiu o olhar para o padrasto. — Você ganha isso em uma volta até a esquina.

Irritado, Santiago a chutou e ela sentiu a dor tomar conta de seu corpo, arrancando o ar de seus pulmões. Ainda se recuperava, curvada sobre o próprio ventre, quando Marcos falou:

— Como você disse, é uma quantia insignificante. Mas, a verdadeira questão aqui não é o dinheiro e, sim, a traição.

Havia chegado a hora. Encontraria Bento na morte e estariam livres, finalmente. Marcos se ergueu e deu a volta na mesa, nas mãos uma pistola 9mm.

— Se queria ficar com aquele moleque, era uma escolha sua. Poderia tê-lo feito, sem qualquer retaliação de minha parte.

— Claro que não haveria, desde que continuasse em baixo de suas asas, muda como uma pedra.

— Prefiro pensar nisso como continuar no seio da família.

Ela voltou a rir. Rir ou chorar, era tudo que lhe restava naquele momento e havia decidido não chorar mais diante daqueles que estavam prestes a lhe roubar o último suspiro.

— Você é minha enteada. Cresceu me vendo fechar negócios, trabalha para mim há anos, sabe de coisas que poderiam destruir tudo que construí. É claro que não permitiria que partisse.

— Eu só queria uma vida normal, longe de toda essa podridão que o cerca — ela gritou. — Não teria aberto a boca, nunca. Não por você ou por mim, mas pela minha mãe que, apesar de saber o que você era e ainda é, o amava. Agora, não importa mais, não é mesmo?

Marcos lustrou o cano da arma com a manga do paletó negro que usava, enquanto Santiago quase salivava à espera do desfecho daquela conversa. Assim como odiava Carla Maciel, também dedicava uma parcela desse sentimento para Carolina. A moça sempre deixou claro que lhe tinha aversão e rejeitou suas investidas até que tudo que lhe restou foi o ódio. Nada lhe daria mais prazer do que vê-la ter o fim que merecia.

Marcos se aproximou da enteada. Realmente, nunca foram ligados, simplesmente, se aturavam. Mas ela lhe era preciosa de uma forma diferente, gostava dela porque era uma parte de Lizandra e via nela, todos os dias, o mesmo sorriso com o qual sonhava à noite. Não queria tirar a vida da filha de sua amada esposa, mas tinha de dar o exemplo. Destravou a arma e apontou para a cabeça dela.

Carolina ergueu o queixo em um gesto que considerou corajoso e afrontoso, embora estivesse petrificada de medo.

— Não!

Carla que, durante todo o tempo, havia se mantido à parte do que acontecia, saiu de seu silêncio e se aproximou pousando a mão sobre a arma que ele segurava.

— Deixe-a viver — pediu em um sussurro.

Os olhos de Marcos brilharam de surpresa, assim como os de Santiago e Carolina.

— Você conhece as regras — disse ele no mesmo tom.

— Sim — ela concordou e pediu para conversar com ele em particular.

II

Um filete de sangue se insinuou entre os lábios de Carolina, enquanto o sabor férreo se espalhava por sua boca. Ela tentou abrir os olhos, mas um deles estava muito inchado. Por sobre o outro, escorria sangue de seu supercílio aberto por um soco, alguns minutos antes.

O sangue embaçava a pouca visão que ainda tinha, mesmo assim, conseguia enxergar o azul profundo dos olhos de Carla Maciel, frio e penetrante, despejando ódio em seu coração, enquanto ela desferia um soco um pouco abaixo das suas costelas.  A dor lhe roubou o ar e fechou novamente os olhos, forçando seus pulmões em busca do oxigênio sofregamente.

Braços firmes a seguravam, enquanto a mão pequena e delicada de Carla desferia novo golpe em seu rosto, este último, tão violento que a derrubou junto com o homem que a prendia. Santiago ergueu-se e tentou levanta-la para que se iniciasse uma nova sessão de golpes contra o seu corpo, já tão maltratado.

Carla curvou-se um pouco para frente, em suas mãos escorria o sangue de Carolina, maculando a palidez de sua pele.

— Deixe-a. Creio que esta surra já foi o suficiente — falou.

Santiago soltou Carolina com violência e avançou dois passos até ficar a poucos centímetros de Carla. Era tão alto quanto ela e sorriu com escárnio. Seu ódio por Carolina era grande, mas nada comparado ao que sentia por Carla, pois ela detinha o poder e a confiança de seu chefe que ele desejava somente para si.

— Ainda não. Ela não foi punida o suficiente! — gritou, furioso. Ainda não tinha conseguido engolir o fato dela ter convencido Marcos a poupar a vida da enteada.

— Quem decide isso sou eu — ela respondeu, seu tom de voz tão gélido e sereno, da forma que sempre se utilizava para falar e Carolina recordou que nunca a tinha ouvido levantar a voz ou modificar o tom até algumas horas antes.

Tentou ver melhor a cena, enxugando um pouco do sangue que lhe caía sobre o olho com a manga da blusa. Doía quando erguia o braço e respirava, mas tinha certeza que não havia nenhum osso quebrado. Sabendo do que Carla era capaz de fazer, estava surpresa por seus ossos não terem virado poeira, até imaginou que ela estava maneirando na surra, mas isso era impossível.

Em fúria, Santiago havia erguido a mão para golpear o rosto da sua rival, mas o sorriso distorcido por um misto de diversão e desprezo na face dela o fez ficar imóvel. Carolina entendia bem o que se passava na mente dele naquele instante, era medo. Todos que tiveram a oportunidade de conviver um pouco com Carla Maciel, sabiam que ela nunca sorria, mas quando isso vinha a acontecer, sempre lhe aflorava aos lábios aquele sorriso deformado que significava, na melhor das hipóteses, uma sessão de muita dor e, na pior delas, uma morte extremamente desagradável.

Carla era uma assassina. Apesar da aparência frágil e passiva, era capaz de matar um homem com as próprias mãos e sem fazer o mínimo esforço. A própria Carolina já havia testemunhado tal feito e ainda tinha pesadelos com a cena.

Carla provocou:

— Você sabe, Santiago, que se continuar não haverá como voltar. Portanto, se pretende prosseguir com isso deve estar certo de que pode me matar, caso contrário, você será o único cadáver que irá sair deste quarto.

Santiago baixou a mão lentamente, em seu rosto era possível distinguir a luta que se travava em seu interior, entre o desejo de prosseguir e o medo das consequências. Ele bem sabia que poucos foram os homens que ousaram levantar a mão para aquela mulher e nenhum deles estava vivo para contar sua história. Por fim, baixou a cabeça e saiu batendo a porta atrás de si.

Carla ainda manteve o sorriso distorcido durante alguns segundos, observando a parede a sua frente atentamente até que sua face se modificou novamente e voltou a ter a aparência de impassibilidade costumeira.

Carolina pensou, pouco antes de desmaiar, que ela era uma mulher extremamente linda, mas que toda essa beleza não compensava a fealdade e crueldade de seu coração.



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