Carolina acordou, sentindo a boca seca e, ainda, o gosto do seu próprio sangue. Cada centímetro do seu corpo doeu quando tentou se mexer, então aguardou alguns segundos antes de fazer uma nova tentativa. Devagar, abriu o olho e a luz a cegou por um instante.

Por algum tempo, observou o teto branco e sem graça, enquanto organizava as lembranças até que se deu conta de que não estava sozinha. Em uma poltrona, ao lado da cama, um rosto familiar tomou forma.

Seu pior pesadelo velava seu sono.

Uma mecha de cabelo loiro e liso caía-lhe sobre a face, enquanto a boca pequena de lábios grossos crispou-se e tornou-se uma fina linha horizontal. Por um breve momento, Carolina pensou ter visto preocupação no azul dos olhos dela, mas logo deu-se conta do quão tolo aquilo parecia.

Aquela mulher não tinha coração.

Incomodada com seu olhar, Carla de pôs de pé, caminhou em silêncio até o outro lado do quarto e se posicionou diante da janela. A luz do crepúsculo tocou sua figura envolvendo-a em um manto laranja, dando aos seus fios dourados a cor do fogo, fazendo com que Carolina a imaginasse como um ser etéreo por um breve instante.

Curiosa, Carolina tentou se erguer um pouco na cama para observar melhor o quarto em que se encontravam. Uma pontada de dor no braço a fez parar com uma careta e com a respiração entrecortada. O mínimo esforço a cansava.

Com o canto do olho, Carla a observou tentar outra vez e parar novamente, vítima da dor dos ferimentos que ela lhe infringiu. Percebendo que não tentaria outra vez, percorreu a distância que as separava com passos rápidos e parou ao lado da cama.

Carolina a viu se curvar em sua direção com um misto de medo e curiosidade. Carla passou os braços em volta do seu corpo maltratado com cuidado, a ergueu com facilidade, ajeitou os travesseiros e a recostou neles de forma que ficou sentada.

— Como se sente? — ela questionou quando se afastou e Carolina sentiu um calafrio percorrer sua coluna ao tê-la tão perto.

— Como se tivesse levado um tiro e depois sido espancada até a inconsciência — respondeu com escárnio, sentindo seu desprezo arranhar suas cordas vocais. Odiava tudo que aquela mulher representava e as coisas que era capaz de fazer também.

No entanto, era grata por ela ter permitido que vivesse um pouco mais, embora houvesse uma mancha negra em seu futuro incerto. O que seria dela agora? Que outros castigos seu padrasto haveria de lhe infringir? O quão próxima do inferno estaria dali em diante?

Carla assentiu com um movimento leve de cabeça, então retornou silenciosamente para a janela onde estivera minutos antes.

Durante o breve instante em que estiveram próximas, Carolina pôde sentir seu perfume, um doce e delicado aroma de rosas e concluiu que combinava com ela, no entanto, só combinava com sua aparência, já sua personalidade nem mesmo o pior dos perfumes seria adequado.

Esquecendo-se da presença dela na janela, passou a observar o quarto com atenção. Havia quadros nas paredes, retratos em preto e branco de paisagens selvagens e alguns indígenas. Havia uma escrivaninha a um canto, onde a luz do fim de tarde criava sombras estranhas ao tocar os poucos objetos sobre ela e um guarda-roupas tomava toda a parede oposta a janela em que Carla se encontrava. Fora isso, havia a cama em que se encontrava e a poltrona em que Carla estivera sentada quando acordou.

Definitivamente, não estava em um hospital, muito menos na casa do padrasto que apreciava uma decoração mais voltada para o antigo, algo que o lembrasse sempre de poder e dinheiro.

— Ond… — seus lábios estavam inchados e cortados e doeram quando passou a mão no rosto, enxugando o suor em sua testa. — Onde estou?

Carla demorou alguns instantes para responder, o olhar preso ao último raio de sol que se escondia no horizonte, como se tivesse esquecido da sua presença ali.

— Em minha casa. O Sr. Alvarenga a deixou sob meus cuidados.

Carolina engoliu em seco, àquela devia ser a nova ideia de tortura de seu padrasto. Mais uma vez, a fez prisioneira e colocou o seu melhor cão de guarda como vigia.

— Por quê?

— Porque ele…

— Não foi isso que perguntei. Quero saber por que não deixou que ele me matasse?

Carla voltou-se para fita-la e recostou-se à parede. Os nós de seus dedos estavam machucados, consequência da surra que lhe dera mais cedo. Contudo, ela parecia não se importar já que brincava com uma pedrinha negra, rolando-a, vez ou outra, sobres os dedos.

— Teria preferido assim?

Carolina apertou firme o lençol, a falta de emoção naqueles olhos a incomodava profundamente.

— Sim — respondeu. — Pelo menos, na morte estaria livre.

As mãos da assassina pararam e ela guardou a pedra no bolso.

— Não era a sua hora — disse ela, simplesmente.

— Você é uma assassina, como pode falar sobre a hora certa de morrer?

Carla voltou a olhar através da janela, enfiando as mãos nos bolsos da calça.

— Todos nós nascemos com dia e hora marcada para morrer, eu sou apenas um dos instrumentos da morte e, um dia, ela também virá ao meu encontro.

Um calafrio percorreu a espinha de Carolina outra vez. Aquela estava sendo a conversa mais longa que já havia tido com aquela mulher e não estava gostando nenhum um pouco.

— Isso é doentio.

Carla voltou-se para mirá-la, outra vez. O medalhão de prata em seu pescoço refletindo o último traço de luz no horizonte.

— Dê o nome que preferir, isso não muda o fato de que é assim que as coisas são. Sim, eu sou uma assassina. E, você goste ou não, agora trabalha para mim.

Carolina apertou o lençol com mais força. Definitivamente, jamais iria compreender aquela mulher e, provavelmente, nunca tentaria. Desde que se lembrava, Carla sempre a ignorou como fazia com todos à sua volta, então, estranhamente, pediu por sua vida, em seguida a espancou quase até a morte e, agora, a abrigava em sua casa.

Carla Maciel estaria ficando louca ou seria ela, Carolina, que estava enlouquecendo?

Carla caminhou até a porta e saiu do quarto. Minutos depois, regressou acompanhada de uma mulher. Elas conversavam em outra língua que Carolina reconheceu como sendo a língua indígena da região, da qual não compreendia uma única palavra. A índia era pequena, com longos cabelos e olhos grandes e negros. Seu rosto bonito exibiu um sorriso simpático para Carolina quando entrou, trazia uma bandeja que depositou na cama um pouco à frente dela.

— Esta é Maria. Ela cuida da casa. Se precisar de algo ela irá providenciar para você — Carla informou.

Carolina olhou com desconfiança para a índia que ainda exibia um sorriso gentil e muito branco.

— Obrigada — agradeceu, apenas porque não sabia exatamente o que dizer. A moça murmurou algo em sua língua nativa e se retirou do quarto.

— Maria prefere não falar nossa língua, mas entenderá qualquer pedido que faça. — continuou Carla, regressando para a janela e fazendo com que Carolina se perguntasse o que havia de tão interessante do outro lado. Ela parecia distraída, mas sua voz era firme e presente.

Carolina tentou engolir um pouco da sopa que a índia trouxera, mas a dor na boca foi cortante e desistiu de comer. Seu estômago reclamou, indignado por ser privado de alimento. A última refeição que havia feito, tinha sido um cachorro quente, comprado na esquina da casa de Bento.

Pensar no rapaz fez com que lágrimas lhe viessem aos olhos. Ainda via, com nitidez, o momento em que a bala de Antunes, atravessou seu peito largo e viril, roubando-lhe o futuro, os sonhos e a vida.

Empurrou a bandeja para o lado e enxugou as lágrimas. Ainda estava viva e faria com que sua vida valesse a pena por ela e por ele.

Olhou para a mulher na janela e tentou imaginar o que se passava em sua mente. Carla era um total e completo mistério. Será que era tão doentia, quanto imaginava? A resposta, provavelmente, era bem pior.

Lembrou-se de quando a viu pela primeira vez. Ela, Carolina, tinha doze anos e estava brincando no jardim de sua casa quando a viu chegar acompanhada por três dos melhores capangas de seu padrasto, suas mãos estavam atadas.

Com uma leve careta, comparou a adolescente daquele dia e a mulher a sua frente. De modo algum, se poderia dizer que eram a mesma pessoa e, talvez, não fossem mesmo. Carla vestia-se como um menino de rua, usava bermuda, um tênis velho e rasgado e uma camiseta branca manchada de sangue. Seus cabelos eram curtos, na altura dos ombros e bagunçados como se houvesse acabado de acordar.

Carolina teve pena de seu aspecto, mas não pôde deixar de achá-la muito bonita.

Ao longo dos poucos anos de sua existência já tinha visto alguns homens e mulheres chegarem até sua casa da mesma maneira, entrarem no barracão nos fundos do quintal, onde seu padrasto costumava tratar de negócios, e nunca mais saírem. Todos aqueles rostos, invariavelmente, passavam atormentados pelo medo e, às vezes, lágrimas nos olhos diante da expectativa do destino que lhes esperava lá dentro. Sabiam que estavam caminhando em direção a morte.

Como qualquer criança, Carolina era curiosa.

Certo dia, não resistiu à curiosidade para saber o que acontecia no barracão quando todas aquelas pessoas entravam e nunca saíam. Sem ser vista pelos capangas que ficavam de guarda na porta, deu a volta no barracão até encontrar uma pequena fenda na parede de onde poderia observar o que se passava lá dentro.

Em outra época, aquele lugar era usado para guardar os objetos que não tinham mais serventia na casa e as ferramentas do jardineiro, mas sua mãe havia exigido que seu padrasto tratasse de seus negócios em outro lugar. Como viera a saber, muito tempo depois, Lizandra não suportava ouvir os gritos e lamentos que vinham do escritório do marido a qualquer hora do dia ou noite. Carolina era muito pequena para lembrar-se disso, mas seu padrasto, querendo agradar a esposa, mudou-se para o velho barracão nos fundos do jardim. Ele transformou-o em um escritório, onde mantinha reuniões com seus homens de confiança, novos compradores ou sócios e resolvia outros assuntos com pessoas que sempre entravam, mas nunca saíam de lá.

Naquele dia, um homem havia chegado acompanhado pelos capangas. Olhando pela fresta, Carolina pôde ver seu padrasto andando em volta do homem amarrado que estava a poucos metros do seu esconderijo. Havia plástico sob seus pés, cobrindo o tapete. Marcos falava baixo, como sempre fazia quando estava com raiva. O homem pedia perdão e chorava alto, mas Marcos Alvarenga não queria ouvir suas desculpas. Ele abriu uma caixa de madeira sobre a mesa e tirou uma pistola com um silenciador adaptado ao cano, apontou para a cabeça do homem e disparou sem qualquer hesitação.

Ao ver o homem morto no chão, o sangue espalhando-se pelo plástico, Carolina sufocou um grito e correu para casa. Trancada em seu quarto, chorou a tarde toda aninhada em sua cama e quando sua mãe perguntou o que havia acontecido, mentiu e nunca mais chegou perto do barracão, nem olhou para Marcos com os mesmos olhos.

Mas, quando viu aquela garota, que devia ser apenas alguns anos mais velha que ela, caminhando em direção aquele lugar de dor e sofrimento, a olhou triste e sentiu pena. Era tão jovem e tão bonita. Em resposta ao seu olhar, a moça que se chamava Carla, como veio saber depois, lhe dirigiu um olhar frio que nada expressava, mas deixava claro que sabia o que iria acontecer e não tinha medo.

A menina sentiu medo por ela.

Contrariando a promessa que havia feito a si mesma de nunca mais se aproximar daquele lugar, Carolina se viu, de repente, em frente à velha fresta na parede. Sabia o que iria acontecer, mas algo dentro dela pedia para que testemunhasse.

A mesma cena que se repetia lá dentro. A garota parada com os capangas ao lado, o plástico sob seus pés cobrindo o tapete, seu padrasto andando em volta dela falando baixo com a arma na mão. Mas, em contradição ao homem que tinha visto da primeira vez, ela não chorava, não implorava e não tinha medo de olhar para Marcos Alvarenga. Seus olhos, de um azul profundo, estavam fixos nele como se o desafiassem a tirar-lhes o brilho.

O padrasto apontou a arma para Carla, mas algo o fez mudar de ideia e a depositou sobre a mesa. Então, algo realmente estranho aconteceu, seu rosto se contorceu num sorriso e mandou os homens soltarem as mãos da garota.

Do lado de fora, Carolina sentiu alívio pela pobre moça e depois horror diante do que se seguiu.

Marcos caminhou para trás da mesa e sentou na cadeira que havia ocupado minutos antes e começou a falar ainda mais baixo, contudo, seu rosto não demonstrava mais a raiva de antes. Falou durante alguns minutos, não parecia incomodado com o olhar fixo da garota a sua frente. Quando terminou de falar, esperou por uma resposta dela. Carla passou um longo minuto em silêncio, e ele esperou pacientemente por sua resposta, o que veio com um leve inclinar de cabeça. Ele sorriu e recomeçou seu monólogo apontando para um dos capangas atrás da moça, agora sua expressão era de fúria e o homem em questão, começou a mover-se inquieto diante das palavras do chefe. Parecia aterrorizado e ficou pálido quando, a uma frase de seu chefe, Carla caminhou em direção a ele.

O capanga tentou sacar a arma, mas já era tarde ela já estava perto demais e deu-lhe um soco na linha da cintura, ele se contorceu de dor e caiu de joelhos no chão tentando puxar o ar para os pulmões. Carla parou as costas dele e passou o braço em seu pescoço.

Através da fresta Carolina viu, com horror, o homem se contorcer e tentar se livrar do “abraço” apertado dela. Seu rosto ficou roxo e depois azulado até que a vida em seus olhos se apagou e seus braços penderam, inertes. Só então, Carla o soltou.

Desta vez, Carolina não correu. Caminhou, lentamente, até seu quarto. Dessa vez, não chorou e não teve medo, mas sempre que fechava os olhos, lembrava do olhar vazio e frio da garota e do sorriso distorcido que lhe aflorou nos lábios, enquanto matava aquele homem.

Depois daquele episódio, Carla Maciel passou a ser uma presença constante em sua casa. Andava sempre acompanhada por dois dos capangas de seu padrasto, vestia-se bem e andava armada. Ao longo dos anos, se tornou uma das pessoas de confiança de Marcos, ganhou poder e muito dinheiro.

Embora Marcos não demonstrasse, Carolina sabia que ele admirava e respeitava Carla profundamente. Talvez por isso, tenha aceitado tão facilmente o pedido dela para poupar a sua vida, saindo apenas com uma surra como punição.



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