6.

I

Carla abriu os olhos e a luz que entrava pela janela a cegou por alguns instantes. O dia acabara de raiar e ela havia dormido apenas três horas, mas se sentia disposta e pulou da cama, indo tomar um banho e se trocar.

Enquanto caminhava pelo corredor, ouviu Maria cantarolando na cozinha e a lembrança de uma pequena índia a chamando para brincar veio à sua mente, trazendo junto, a dor da perda e da saudade de um tempo e pessoas que jamais voltariam.

Diante da porta do quarto de Carolina, a dúvida se devia ou não entrar lhe assaltou, mas o desejo de vê-la e saber como estava foi mais forte.

A moça dormia serenamente e Carla se aproximou silenciosamente, como sempre fazia. Odiava-se pelo estado em que a deixara, mas seria muito pior se tivesse sido Santiago a espanca-la. Havia maneirado nos golpes o máximo possível. Ainda assim, Carolina havia ficado em um estado deplorável.

Devagar, tocou seus cabelos longos, negros e lisos. Derramavam-se sobre o travesseiro em um emaranhado de fios. Com o dedo, percorreu sua face, embebida naquele ato sublime de tocá-la.

Amava-a como jamais amou nada ou alguém. Se Marcos tivesse insistido em matá-la, era certo que, apesar de todo o respeito que lhe dedicava pelo muito que havia feito por ela, ele encontraria a morte em suas mãos. Talvez, ainda encontrasse.

Um raio de luz se insinuou pelas cortinas e tocou a face da bela em sua cama. Com cuidado para não a acordar, Carla fechou melhor as cortinas e sentou na poltrona ao lado do leito, velando o sono daquela a quem começou a amar no dia em que aceitou o toque da morte.

Recostou a cabeça no espaldar da poltrona e os risos contidos em suas lembranças preencheram seus ouvidos levando-a ao passado, de encontro ao momento em que o destino começou a conspirar para destruir tudo que amava e leva-la até o momento atual de sua vida.

Carla Maciel era uma criança feliz, nunca fora de falar muito, mas ao lado dos pais que tanto amava, era sempre risonha e brincalhona.

Seu pai, fora em outra época, um campeão de artes marciais. Infelizmente, um acidente de moto causou sérios danos a uma de suas pernas e ele abandonou o esporte, mudou de cidade e decidiu trabalhar na área em que se formara como professor. Foi lecionando que conheceu sua mãe, também professora.

Foi amor à primeira vista, assim contava seu pai quando a menina perguntava como se conheceram.

Quando tinha quatro anos, seus pais foram convidados a participar de um projeto de alfabetização de índios e ribeirinhos em regiões longínquas do país. O projeto, que envolvia também assistência médica, entre outros benefícios, exigia que residissem em uma das aldeias beneficiadas.

Havia sido uma decisão difícil, mas seus pais aceitaram o convite e permaneceram na aldeia por seis anos. Lá, Carla cresceu, aprendeu a língua indígena, sua cultura, sua caça e valores. Adorava a vida no meio da selva e seus amigos. Mas, o momento do dia que mais apreciava, era quando seu pai a chamava para sua aula de artes marciais, não pela razão do esporte e, sim, por dividir aquele momento com o homem que era seu herói.

Então, o projeto chegou ao fim e a família teve de partir de volta a civilização. No entanto, não foram muito longe. Durante a viagem, um caminhão desgovernado bateu no carro em que a família viajava e seus pais morreram quase que instantaneamente.

A menina foi a única sobrevivente. Passou horas à espera de socorro, sentindo a dor física e a espiritual, enquanto observava os corpos de seus pais, compreendendo lentamente que havia ficado sozinha e que não haveria mais risos, nem beijos de boa noite, nem abraços carinhosos.

Um movimento na cama a trouxe de volta ao presente. Quando abriu os olhos, Carolina a fitava com expressão vazia.

— O que faz aqui? — perguntou ela com a voz abafada pelo cobertor.

— Vim ver como estava.

— Cheia de hematomas e dor, assim como estava ontem — respondeu seca.

Carla se pôs de pé, enfiando as mãos nos bolsos da calça, fazendo o que sabia fazer de melhor, escondendo suas emoções. Carolina a abalava e sequer imaginava o quanto.

— Marcos pediu para que lhe deixasse ciente de que, se você tentar fugir outra vez, não haverá um novo perdão — disse, notando que a moça apertava as dobras do cobertor com mais força.

Podia ver em seu olhar, a raiva e a revolta que suas palavras lhe trouxeram. Sabia que não precisava lhe falar aquilo, mas tinha de avisá-la para que se comportasse, embora tivesse certeza de que não demoraria muito para que a moça tentasse partir outra vez.

— Descanse, recupere-se e não seja estúpida.

II

Carolina observou seu reflexo no espelho.

A mulher que via, em nada se parecia com ela. Havia hematomas em seu rosto e braços, alguns em diferentes tons de verde, outros, ainda negros. Um dos olhos ainda estava um pouco inchado, mas, agora, mal era perceptível. Tocou a face, lentamente percorrendo cada machucado com cuidado. Aparentava ter envelhecido dez anos em uma semana, que era o exato tempo em que estava naquela casa.

Em fúria, atirou a escova de cabelos no espelho e viu seu rosto se dividir em uma dezena de pedaços.

Odiava estar ali.

Não era uma prisioneira em seu quarto, pelo contrário, tinha liberdade de ir e vir em qualquer local da casa que, como veio a descobrir, embora fosse muito menor que a do seu padrasto, era bastante confortável e até luxuosa. Havia jardins muito bem cuidados e uma piscina a qual ela gostava de observar refletindo a luz do sol pela manhã.

Apesar disso, ela não gostava daquele lugar e a sensação só piorava quando via os homens guardando o portão e, principalmente, quando a dona da casa aparecia.

No início, fazia suas refeições no quarto. Quando se sentiu forte e recomeçou a andar, fez questão de ir comer à mesa. Carla nunca estava lá. Aparentemente, nunca comia em casa e Carolina se sentia até feliz por não ter que compartilhar as refeições com ela. Não suportava sua presença e nem a ideia de que lhe devia a vida.

No entanto, tinha que ser grata e, por isso, se esforçava para ser gentil quando ela vinha até seu quarto todas as noites para saber como estava se sentindo. Em várias ocasiões, não falava nada, entrava no quarto, olhava para ela deitada na cama, dava as costas e saía.

Naquele dia, porém, foi diferente.

Era um domingo. Exatamente oito dias antes, Carolina se encontrava em uma fuga desesperada às margens do rio, enquanto o corpo de Bento era carregado pela correnteza. As lembranças dele, do seu sorriso e gentileza, nunca lhe abandonavam, principalmente, na hora de dormir, onde se permitia chorar até o sono lhe encontrar.

Carolina passava um pouco de geleia em uma torrada quando Carla apareceu e se acomodou na cadeira em frente a sua. Ela a observou com suas safiras gélidas por um longo instante e, como sempre, seu rosto não revelava qualquer emoção.

— Bom dia — disse ela e Carolina sentiu um calafrio percorrer sua espinha.

— Bom dia — respondeu baixinho.

Maria surgiu com uma xícara na mão e depositou diante da patroa, que sorveu um longo gole do líquido que, pelo cheiro, era chá.

— Obrigada — agradeceu Carla e a índia lhe sorriu, sentando ao seu lado e se servindo de uma xícara de café.

Carolina observou a cena com curiosidade. Desde que ali chegara, a índia nunca se sentou à mesa com ela, no entanto, se sentia muito à vontade para fazê-lo na presença de Carla.

Durante todo o tempo, fizeram sua refeição em silêncio, quebrado apenas pelo tilintar dos talheres e xícaras. Carolina esforçou-se para não demonstrar o desconforto e raiva que a presença de Carla lhe causava, enquanto esta parecia estar absorta em seus pensamentos, olhando atentamente para o anel prateado em sua mão.

Realmente, a mente de Carla havia se ausentado da sala e caminhava por lembranças tristes, coisas que ela queria esquecer, mas jamais se permitiu fazê-lo, pois isso significava apagar, também, o pouco do bom que a vida lhe dera.

O anel em sua mão, outrora, foram dois anéis. As alianças de seus pais, agora unidas pelo bom trabalho de um joalheiro. Aquela era a sua herança, a única coisa de valor que deixaram.

Como não tinha parentes vivos, foi enviada para um orfanato. O lugar não tinha nenhuma estrutura adequada para suportar todas as crianças que lá estavam, mas a garota pouco se importava. Carla logo tornou-se conhecida pelas outras crianças, não se aproximava de ninguém, não tinha amigos e havia afastado todos que tentaram ser.

Graças a sua atitude, as outras crianças começaram a lhe pôr apelidos, e algumas até se divertiam em provocá-la e insulta-la quando não havia nenhum dos funcionários por perto, mas a menina se limitava a dar de ombros e ir embora. Para Carla eles não passavam de sombras em sua vida, nada lhe importava agora que não tinha mais seus pais, apenas sobrevivia a cada dia.

Então, o tempo passou, a dor foi diminuindo aos poucos e foi dando lugar ao desejo de sair daquele lugar. Certa noite se esgueirou para fora da cama, vestiu-se e caminhou entre as sombras da noite para fora do orfanato.

Nas ruas, logo aprendeu que tinha que se esforçar por sua comida, que nem todos eram amigos e que coisas terríveis poderiam lhe acontecer se não tomasse cuidado.

Sobrevivia lavando para-brisas de carros nos sinais de trânsito. Quando não conseguia dinheiro para comer, roubava. Não tinha escrúpulos de fazê-lo para se alimentar. Nas noites de muito frio, se reunia com outras crianças na rua e dormiam juntas para se aquecerem. Por vezes, experimentou drogas, mas não se deixava prender por vício algum.

Foi nas ruas que, aos quinze anos, descobriu que se sentia atraída por meninas. Uma garota mais velha se juntou ao grupo com o qual Carla sempre se reunia, seu nome era Júlia. Foi com ela que Carla teve sua primeira experiência homossexual. Havia tido namoricos com meninos e até experiências sexuais com eles, mas nada havia se comparado ao que sentiu quando esteve com Júlia e desde então não ficou mais com garotos.

Maria a arrancou de suas lembranças, pousando a mão sobre a sua.

— Quer mais chá?

Piscou um pouco e a lembrança do sorriso largo de Júlia se desfez, enquanto Maria repetia a pergunta.

— Sim, por favor.

Lembrar de Júlia lhe trouxe um sabor amargo e, ainda um pouco distraída, notou a curiosidade nos olhos de Carolina com o contato íntimo da índia.

— Poderia levar para o escritório? — perguntou à Maria e a moça aquiesceu, saindo em seguida.

Carolina brincava com algumas migalhas de pão, imaginando o nível de intimidade entre as duas, quando Carla se voltou para ela.

— O café estava bom? — questionou.

— Sim.

— Ótimo. Sente-se bem para dar uma volta?

Não, ela não se sentia bem para ir a qualquer lugar com uma assassina desprezível, mas estava louca para sair um pouco daquela “prisão”.

— Sim.

— Certo. Vá se trocar, estarei aguardando no escritório.

III

Carolina engoliu em seco quando Carla estacionou o carro. A ideia de passeio dela era uma volta no cemitério.

— O que estamos fazendo aqui? — perguntou com uma pedra afundando em seu estômago.

Como esperado, Carla a ignorou e caminhou com passos firmes e largos até uma moça que vendia flores à entrada do cemitério. Comprou dois buquês e entregou um a Carolina que a seguiu silenciosamente entre os túmulos, sentindo um arrepio percorrer sua espinha, enquanto imaginava se no fim daquela caminhada encontrariam uma cova aberta com seu nome na lápide.

De fato, encontraram uma cova aberta, mas não era seu nome na lápide e, sim, o de Bento. Havia um caixão ao lado e dois coveiros a espera de um sinal para baixa-lo.

— É uma piada? — questionou, dominada pela raiva e dor.

Carla retirou os óculos escuros que refletiam a luz da manhã e a olhou com firmeza.

— O encontramos ontem. O corpo estava alguns quilômetros rio abaixo.

Carolina olhou para o caixão, a madeira lustrosa, os detalhes cuidadosamente trabalhados, o último leito de um homem incrível.

— Achei que gostaria de se despedir — Carla informou.

Sua voz era tão fria e desprovida de emoção que Carolina não resistiu a vontade de estapeá-la. Seus dedos ficaram marcados na pele alva dela, mas Carla pareceu não sentir nada e recolocou os óculos.

— Você o matou! — Carolina gritou, deixando a dor lhe invadir e avançou para Carla, tentando acertar outro tapa nela, cega pela raiva e pelas lágrimas.

Carla prendeu suas mãos com força, impedindo-a de se aproximar mais. Apertava seus pulsos com mais força do que o necessário, sentindo o sangue que passava por eles pulsando forte.

— Antunes o matou — informou a loira, mas para Carolina, ela sempre seria a responsável.

Carolina tentou se desvencilhar de suas mãos, mas Carla era muito forte, então se entregou a um choro compulsivo.

— Você tem dez minutos. Despeça-se! — disse Carla e a soltou, dando um passo atrás, sentindo as lágrimas que ela derramava e o ódio em seu olhar, cortarem seu coração.

Carolina jamais saberia o quanto aquilo lhe doía, nem o quanto a amava, nem o que estava disposta a sacrificar pela sua felicidade. Durante dias, Carla fez seus homens procurarem pelo corpo do rapaz, apenas porque sabia o quanto Carolina o amava e que ela precisava se despedir dele adequadamente.

Em silêncio, Carla apanhou o buquê de flores que deixou cair ao chão, quando Carolina a atacou e caminhou em direção a parte norte do cemitério, onde estava o túmulo de seus pais. Ia com passos duros, sentindo os olhos da morena em suas costas, capitando o ódio que ela lhe dedicava.

Carolina a observou partir e desaparecer atrás dos túmulos. Desejava poder queimar sua alma; Carla era um monstro e agora sua vida estava ligada à dela.

Respirando fundo, voltou-se para o caixão. Passou os dedos pela madeira fria, percorrendo sua extensão, chorando por Bento um pranto mais intenso do que o que derramava todas as noites.

Com um soluço alto, viu o caixão ser engolido pela terra lentamente e quando a última pá de terra foi atirada, ela enxugou a última de suas lágrimas tomando uma decisão. Iria se juntar a ele em breve, mas antes ceifaria a vida da sua assassina.



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