DAKOTA

13. UMA GARRAFA DE VINHO OU DUAS…

Rachel Lorenzzo tinha uma boa reputação no seu ramo de atuação, muito dinheiro no banco, meia dúzia de familiares de quem realmente gostava e, à exceção do seu irmão, apenas dois amigos de verdade.

Dakota era um desses amigos e sua falta seria uma ferida que nunca cicatrizaria. Era a única capaz de decifrar seus silêncios, sentimentos e pensamentos com apenas um olhar. Aquela que a aconselharia e, quando não desse ouvidos aos conselhos, a seguiria nas piores decisões e ainda faria piada disso.

E não havia nada no mundo que Rachel não fizesse por ela.

— Quem é você?

Inclinada no parapeito da janela, Rachel fitava o trânsito da avenida, quinze andares abaixo, enquanto o vento forte que vinha do mar, do outro lado da pista, açoitava seu rosto impiedosamente. Se endireitou e olhou para Dakota, que saía do banheiro naquele momento. Ela usava, apenas, top e calcinha pretos. A toalha descansava nos ombros e foi atirada sobre a cama, onde uma muda de roupa limpa estava disposta. Na testa, um curativo ocultava o corte que um médico habilidoso suturou, enquanto o resto do corpo exibia pequenas escoriações, e algumas manchas roxas.

Depois que nocauteou o bandido que as atacou, Isadora a ajudou a voltar para a estrada e dirigiu até o pronto socorro mais próximo. Dakota perdeu os sentidos na metade do caminho. Nesse meio tempo, Rachel tentava entrar em contato consigo, e quando Isadora atendeu a ligação e relatou o ocorrido, ela providenciou sua transferência para outro hospital, onde ficou por dois dias para exames e avaliação médica. Tinha recebido alta naquela manhã.

Diante da forte pancada que recebeu na cabeça, o estado de confusão mental era normal e poderia permanecer por mais alguns dias. No entanto, naquele momento Dakota estava, apenas, provocando a amiga.

Rachel sentou na poltrona ao lado da janela. Os cabelos castanhos estavam presos em um coque frouxo e os olhos, da mesma cor, ocultos pelas lentes escuras dos óculos estilo aviador, que escondiam as olheiras de cansaço. A jaqueta marrom, da qual ela só se separava quando era obrigada a se vestir profissionalmente, estava jogada de forma displicente ao fim da cama.

— Engraçadinha — ela respondeu, azeda.

O sorriso de Dakota ampliou-se, enquanto se enfiava dentro do short.

— Você precisa relaxar mais, Rackie — colocou a camiseta, depois levou a toalha de volta ao banheiro e retornou com os cabelos penteados em um estilo bagunçado.

— Você é uma idiota — ela afirmou, mais como um sopro de alívio do que como palavras distintas. Depois, falou claramente: — Vou relaxar quando você parar de achar que o hospital é a sua casa.

Dakota recebeu o insulto como se tivesse sido um elogio, e sorriu, displicente.

— Desculpe te preocupar.

A outra não fez questão de responder a isso.

— Onde está Isadora?

— Na cozinha, com o Alex — informou, ainda exibindo um ar contrariado. Seus dedos tamborilaram nos braços da poltrona, fitando o céu azul além da janela. — Eu gosto dela. Uma mulher que não teve medo de enfrentar um homem armado para proteger você, certamente ganhou muitos pontos comigo. Mas você não precisava ir tão longe pra arranjar mulher.

Dakota revirou os olhos para ela e encolheu os ombros como se dissesse “apenas aconteceu”. Sentou na beirada da cama.

— O nosso lance é complicado, Rackie. Na verdade, nem sei se é mesmo um lance. Ela acabou de terminar um relacionamento.

— Hm… E está na cara que você tá doida pra tomar o lugar da pessoa que ela deixou. Nem se dê ao trabalho de tentar negar. Não é seu hábito fazer longas viagens de carro com mulheres que mal conhece, se não for por trabalho.

— Ouvindo você falar assim, me sinto um pouco canalha — mordiscou o lábio. — Mas não sei se quero tomar o lugar que Alice deixou vago, apenas estou atraída e quero ver no que isso vai dar.

Rachel a fitou longamente, tentando descobrir se havia algo implícito naquelas palavras. Era difícil dizer, às vezes Dakota era reservada demais quanto aos seus sentimentos. Nisso, eram muito parecidas.

— Já faz um bom tempo desde que te ouvi dizer algo do tipo. Te aconselharia a ir devagar nessa, mas já está calejada de romance ruim e sabe bem os seus limites. Então, te desejo sorte no que quer que isso venha a se tornar. Se der merda, pelo menos existe a vodca!

— Você é a pior pessoa do mundo para dar conselhos amorosos — riu gostoso. — Nem morta seguiria um conselho seu nesse assunto!

Foi a vez de Rachel desmanchar o semblante sisudo para soltar uma gargalhada alta e vibrante. O que Dakota disse não era exatamente a verdade, pois se importava muito com a opinião dela, entretanto Rachel não fez questão de retrucar.

— Se já consegue me insultar, significa que está melhor.

— Nem tanto. Ainda estou irritada, frustrada e um pouco enjoada. Aquele puto me pegou de jeito — passou a mão na testa.

— Ele teve sorte — minimizou, convicta.

Dakota fez um biquinho, não gostava de contar com a sorte. Ficou de pé e foi até a janela, ao lado da qual a amiga estava sentada. O cheiro do café recém-preparado na cozinha invadiu o quarto e aguçou os sentidos de ambas, junto com a certeza de que Alex havia preparado seus deliciosos biscoitos de leite para o lanche.

— Eu não tenho tempo para ficar em repouso, Rackie — afirmou, o olhar preso ao oceano, o vento bagunçando ainda mais seus cabelos úmidos.

— É bom arranjar, porque você levou uma bela pancada e precisa se resguardar durante alguns dias. Se você for parar no hospital de novo, ficará mais tempo de molho — a frase soou mais como uma ameaça do que como um aviso. — Além disso, não sabemos nada sobre o homem que atacou vocês, e estamos no escuro quanto ao verdadeiro mandante do assassinato de Isabella. O importante, neste momento, é que ela está segura e Daniela está cuidando da sua família.

— Só quero acabar logo com isso — baixou o olhar para ela, cuja expressão beirava o puro vazio.

— Tudo a seu tempo — soprou, e em seguida perguntou: — Você conseguiu assistir os vídeos no pendrive que Gio te enviou?

Com toda a agitação do desagradável encontro com o bandido e os resultados dele, pouco conversaram sobre o problema que estavam enfrentando. Agora que Dakota estava em casa, a conversa podia fluir com calma e sem a interrupção de médicos e enfermeiros.

 — Não assisti a tudo, pois Dani e os rapazes chegaram e tive que inteirá-los sobre o trabalho que fariam, depois os levei para a fazenda e peguei a estrada com Isadora. Por que não me enviou os vídeos por e-mail? — ainda estava engasgada com a cena do ataque a Isabella em um sinal de trânsito. Ficou claro que o objetivo era uma execução e não um assalto.

O longo silêncio que se seguiu a incomodou.

— O que foi? O que há naqueles vídeos que eu não percebi?

— Não é o quê, e sim, quem. O que fez com o pendrive?

— Na mochila — apontou para o acessório largado sobre a cômoda. Rachel foi até lá e vasculhou os bolsos da mochila até encontrar o dispositivo. Sem mais explicações, colocou-o no bolso da calça e retornou para a poltrona.

Paciente, Dakota esperou que continuasse, mas ela parecia estar calculando o que diria a seguir e os segundos se arrastaram até que se animasse a explicar:

— Pedi a Gio que enviasse o pendrive, porque seu conteúdo pode prejudicar alguém por quem tenho apreço. Paguei bem para ser a proprietária da única cópia. Sendo assim, nada de enviá-los por meios eletrônicos.

Obviamente, Dakota desejava saber de quem se tratava, porém não perguntou. Rachel guardava muitos segredos e também conhecia as piores pessoas da sociedade. Tudo isso graças às atividades criminosas da sua família. As quais ela nunca participou e fez questão de pôr um fim após a morte do pai, entretanto seus laços com o mundo do crime nunca foram completamente rompidos.

— Essa pessoa tentou machucar Isabella? — quis saber, ciente de que se fosse realmente necessário, Rachel nomearia o indivíduo no vídeo.

— Não existe motivo para isso. Na verdade, acho que essa pessoa acabou salvando a Bela.

— Como assim?

— Provavelmente, teria acontecido um terceiro atentado, se a pessoa em questão não tivesse capturado o agressor de Isabella, quando ele tentava fugir do prédio dela, após ter sua segunda tentativa de assassinato frustrada.

— Explique-se melhor, por favor.

Raquel cruzou as pernas, escolhendo as palavras. Não queria deixá-la agitada, e bem sabia que ela ficaria quando soubesse de quem falava. Uniu as mãos, os polegares tocando-se devagar e ritmadamente.

— Vamos começar pelo mais fácil, o político amigo de Amanda — decidiu levar a conversa por outro rumo. — Por mero acaso, ele esteve na mesma festa que Isabella. Pelo que andei averiguando, ele não tem rabo preso. Nada de dinheiro inexplicável na conta, nem investimentos estranhos, viagens, etc… É o sujeito mais limpo que conheci — soou entediada. — Porém, cometeu a idiotice de aceitar o convite de um antigo colega de faculdade para ir a tal festa no iate. Ele entrou em pânico quando percebeu o tipo de festa em que foi parar. E a coisa só piorou quando foi convidado para uma reunião em uma das cabines. Lhe ofereceram uma boa quantia para levar um determinado projeto à votação na câmara e, também, agir como recrutador de outros políticos. Ele, obviamente, se negou.

— E como consequência, está sofrendo ameaças e pressão para mudar de ideia — Dakota concluiu por ela.

— Sim — confirmou. — Ele não sabe nada sobre Isabella, porém me forneceu informações sobre outros políticos e empresários que participaram da reunião. Um deles está desaparecido há dois meses.

Nesse ponto, Dakota assumiu a narrativa e detalhou seu encontro com Isabella e as coisas que ela revelou sobre o assassinato que presenciou.

— Não tenho certeza, mas suponho que havia câmeras pela embarcação. Com tanta gente importante no mesmo lugar, fazendo coisas, no mínimo, escandalosas, ter isso em vídeo poderia ser uma excelente fonte de barganha ou de renda. É provável que, ao revisarem essas imagens, tenham descoberto a existência de testemunhas do crime.

— Faz sentido — Rachel disse. — Executar duas estudantes de boas famílias, sem histórico de drogas ou envolvimentos com criminosos, chamaria muita atenção. Ocultar esses assassinatos com falsas tentativas de assalto é uma opção inteligente. Isabella sabe como se meter em confusão — observou, simplista.

Infelizmente, Dakota foi obrigada a concordar. Rachel concluiu:

— Só existe uma forma de Isabella e, agora, o nosso cliente se livrarem dessa encrenca. Precisamos descobrir quem é o cabeça dessa “organização” e reunir provas concretas e suficientes para apresentar às autoridades.

— Eu prefiro colocar uma bala na cabeça dele, pois ainda quero vingança por Tonho! — o semblante carregado da amiga a fez adicionar: — Porém, me contento em quebrar seus ossos e colocá-lo atrás das grades.

Mesmo assim, o ar pesado que dominava as expressões de Rachel não se dissolveu. Ela compreendia a violência e entendia os desejos sombrios de vingança da ex-cunhada, apenas não queria vê-la encrencada com as autoridades ou gente ainda mais perigosa do que os homens que perseguiam Isabella.

— Isso vai demandar tempo e muita discrição, Dak. E já que é assim, precisaremos ser muito seletivas em relação aos nossos aliados. Sem falar no fato de que nos tornaremos potenciais alvos, se é que já não aconteceu. Pelo que houve, é certo que já sabem da sua ligação com Isabella. E como estou atuando na proteção desse deputado, nossa relação não tardará a ser descoberta.

— É por isso que você trouxe o Alex? — o silêncio dela serviu como confirmação. — Você não precisa fazer mais do que já fez, Rackie. Eu assumo a partir daqui.

— Não diga bobagens, vamos fazer isso juntas.

— Eu te amo e sou muito grata pelo o que tem feito até agora, mas não quero que você meta sua família nessa história e jogue no lixo tudo pelo que vem trabalhando.

Rachel ficou de pé e chegou perto dela, cruzando os braços.

— Tarde demais, os Lorenzzo já estão envolvidos. Você não é mais minha cunhada, mas ainda somos família e aquela pirralha birrenta também faz parte dela, porque você a ama como uma filha. Contudo, admito que desta vez usar os contatos da Família talvez não seja a melhor opção.

— E o que sugere?

— Voltarmos a isso — tirou o pendrive do bolso. — Vou tentar um encontro com a pessoa no vídeo. Não fiz isso antes porque Pietro fez uma lambança na Argentina, tive que ir resolver pessoalmente. Sabe de uma coisa? A Bellator é uma bagunça sem você!

— Fique à vontade para me dar um bom aumento de salário — brincou, e a recebeu entre seus braços com alegria.

Definitivamente, a melhor decisão da sua vida foi se envolver com Grazziela, pois, apesar de todos os desgostos que essa relação trouxe, o laço que formou com Rachel e o amor que dedicavam uma à outra era uma dádiva.

***

Isadora deu um pequeno sorriso para Alex, e pegou um biscoito da tigela no centro da mesa. Mordiscou-o, desmanchando o semblante desconfiado em uma expressão de puro prazer.

— Eu te falei, são bons! — Alex sorriu largamente, cofiando o cavanhaque branco como algodão que contrastava com a cor negra da sua pele.

— Peço desculpas por ter duvidado dos seus dotes culinários — ela mordeu outro biscoito e pegou a xícara de café que ele colocou à sua frente, antes de retornar para junto do balcão e voltar a picar legumes.

Alex era, ao menos em suas primeiras impressões, um homem alegre e disposto a ser gentil, embora Isadora duvidasse que ele fosse inofensivo. Algo lhe dizia que aquelas mãos, de dedos longos e magros, podiam ser tão mortais quanto a faca de cozinha que ele, habilmente, usava para preparar o almoço.

— Então, você se tornou outra vítima do Alex — Dakota comentou, entrando na cozinha e se apossando de uma xícara de café, antes de sentar ao seu lado. Rachel fez o mesmo, porém não sentou. — Quem come esses biscoitos acaba ficando viciado.

— E depois tem de passar horas na academia para se redimir desse pecado — Rachel completou, tirando um biscoito da tigela. Em seu canto, Alex riu com a mesma satisfação de uma criança ao ganhar um brinquedo.

— É só não comer — ele retrucou alegremente.

Isadora sorriu com ele e depois acompanhou, em silêncio, uma discussão ligeira entre as duas mulheres e Alex, cujo terno feito sob medida deixava claro que cozinhar não era sua real função.

— O que ele faz realmente? — perguntou ela para Dakota, quando se encontraram sozinhas.

Após se certificar que elas ficariam bem e fazer Isadora prometer cuidar de Dakota e obrigá-la a repousar conforme as ordens médicas, Rachel partiu com uma mochila sobre os ombros e enfiada dentro de uma jaqueta, apesar dos 30º graus que o termômetro na cozinha marcava. Ela tinha um compromisso na capital do país e Alex a acompanharia na viagem.

— De tudo um pouco, mas geralmente atua como um conselheiro para Rachel. Tanto na Bellator quanto em outros negócios. Ele é metido a chef, o que nem de longe penso em reclamar, porque vez ou outra aparece por aqui e prepara algo para o jantar enquanto os dois discutem coisas de trabalho. Alex diz que pensa melhor enquanto cozinha.

— Pelo cheiro que vem daquela panela, o tempero dele deve ser bom — sentou na espreguiçadeira diante da piscina, os olhos fitos no horizonte. Se sentia um pouco desconfortável por estar em um ambiente completamente alheio ao seu cotidiano.

— Garanto que comeremos bem no almoço.

Isadora não tinha dúvidas, fechou os olhos por um momento.

— Rachel é sempre tão agitada? — quis saber.

Se algum dia lhe perguntassem que palavra usaria para descrever a amiga, “agitada” não seria uma opção para Dakota. Rachel podia ser assustadoramente calma e fria, ao ponto de parecer não ter emoções.

— Depende.

— De quê?

— Do que pode tirar ela do seu estado de frieza e apatia habitual — finalmente soltou o suspiro, sem ânimo para explicar o que disse. Isadora percebeu, então desviou o assunto para saciar outra curiosidade.

— Então, vocês moram juntas há quanto tempo?

— A palavra “morar” é um pouco exagerada nesse caso.

— O que quer dizer?

— Eu não tenho um espaço só meu, com exceção da chácara que foi um presente de Gio.  Estou sempre viajando e passo muito tempo em hotéis. Então, acho um desperdício comprar um apartamento ou uma casa onde raramente irei. Quando estava casada, era diferente. Rackie também viaja bastante, então meio que dividimos o espaço. O que, nem sempre, quer dizer que estamos aqui ao mesmo tempo.

— Então, tecnicamente, você tem uma casa.

Dakota riu e corrigiu:

— Não. Tecnicamente, eu tenho um lugar para ficar quando estou na cidade. O que, normalmente, dura uma semana ou duas, no máximo.

— Uma cobertura de frente para a praia é um excelente lugar para passar o tempo.

— É um exagero, não é? — deu um sorrisinho torto. — Rackie também não gosta. Na verdade, ela prefere espaços menores e intimistas, assim como eu, porém é muito sentimental para vender este lugar. Pertencia à família do marido dela, Samuel. Ele adorava a vista para o mar. Quando ele morreu, ela não conseguiu se desfazer do lugar. Às vezes, acho que ela tem medo de fazer isso, pois seria como admitir de uma vez que Samuel não está mais aqui.

Ela sentou ao lado de Isadora, pensativa. E ficou em silêncio por muito tempo até que a moça deixou um pequeno biquinho deformar os lábios, enquanto os olhos percorriam sua figura com atenção. Isadora ergueu a mão e tocou o rosto dela, que exibia hematomas de várias cores e tamanhos.

— Você me deu um susto desgraçado.

— Sinto muito e obrigada — desfrutou o carinho que ela fazia em sua bochecha.

— Eu não fiz nada de mais.

— Salvar a minha vida não é nada de mais?! — brincou, segurando a mão dela.

— Tenho certeza que você daria um jeito sem a minha interferência — afirmou, embora a lembrança do que ocorreu fizesse questão de desmenti-la.

Com toda a certeza, Isadora não era o tipo de mulher que se envolvia naquele gênero de problema. E a verdade era que foi o puro, simples e primitivo medo que a fez correr em socorro de Dakota. Não o medo oriundo do desejo de se preservar, mas o medo da morte dela. Segurou as mãos dela e apertou-as firmes.

Grata, Dakota ficou de pé e a trouxe junto, encaixando-a no seu abraço.

— Talvez seja melhor você ficar na casa dos seus pais — conjecturou, lamentando quando ela se afastou para encará-la. — Não quero que se machuque, Isa. As circunstâncias estão se tornando cada vez mais perigosas e… Céus! Aquele desgraçado poderia ter te matado!

— Mas não matou — retrucou, ciente de que se afastar dela era, provavelmente, a coisa mais sábia a se fazer depois do que houve. Entretanto, algo em seu íntimo revirava-se com a ideia. — Você tem razão. Eu não sou alguém que está apta a lidar com homens assustadores e armados, mas não quero te deixar agora. Entende?

— Entender mesmo, não entendo. Contudo, admito que também não quero me separar de você.

— Então, não vamos tocar no assunto. Vamos curtir o sossego. Quando for necessário entrar em ação, retornarei para Cascabulho. Está bem?

Era uma péssima ideia, porém Dakota conformou-se em dizer:

— Parece justo — e foi presenteada com um sorriso largo e bonito, antes de beijá-la.

***

Alice atirou o celular sobre o sofá, agastada, e não deu importância para a expressão de desagrado da madrinha. Desde que soube do “acidente”, tentava falar com Isadora, mas ela não atendeu nenhuma das suas ligações e, tampouco, se deu ao trabalho de responder as mensagens. Parecia que tinham retornado àquele distanciamento incômodo, que a fazia se sentir uma espécie de perseguidora.

A consciência lhe dizia que era melhor deixar isso de lado, que Isadora era adulta e sabia o que fazia da sua vida. Porém, Alice se preocupava com ela. Afinal, foram dois anos de relacionamento e, como havia afirmado na última conversa que tiveram, Isadora era a sua melhor amiga.

— Notícias ruins chegam rápido — Rosana falou, estranhamente calma.

A afilhada fez uma careta para ela, que concluiu:

— Elas estão bem. Daniela nos garantiu isso.

Impaciente e descrente, Alice resmungou:

— Não confio naquela mulher.

Isso fez Rosana sorrir, visto que havia notado um ligeiro interesse da afilhada pela mulher. Entretanto, a situação mudou rapidamente quando Daniela se mostrou muito profissional e imune ao seu charme. Não que Alice fosse do tipo insistente e extremamente direta; na verdade, ela era muito suave ao demonstrar seu interesse. E esse jeito aparentemente tranquilo, costumava ser muito cativante quando ela se esforçava.

— Ela fica andando pela fazenda como se tivesse um rei na barriga e ainda tem a ousadia de me dizer o que devo ou não fazer dentro da minha propriedade! Pior, se recusa a dar notícias de Nando. E agora essa história do acidente.

Ficou de pé com as mãos na cintura.

— Eu só vou sossegar quando conseguir falar com Isadora e ter certeza de que ela está bem.

Deu alguns passos pela sala, desviando de Sissi, que estava deitada junto à mesa de centro. A cadela parecia muito à vontade na casa, como se tivesse morado ali a vida inteira. Era extremamente dócil com ela e Rosana, mas rosnava e ameaçava qualquer outro que entrasse na residência sem a companhia delas ou de Daniela que, em seu primeiro dia na fazenda, a guiou por todos os cômodos do velho casarão para ambientá-la, entre outros pequenos gestos de reconhecimento do novo lar temporário e seus moradores.

Dona Rosana adorava cães e gatos e parecia muito feliz com a nova moradora da fazenda. Talvez por isso, Dakota não tenha se importado em deixá-la na Mimosa, embora tenha sido enfática em afirmar que a responsabilidade de cuidar dela era toda de Daniela, que a conhecia desde filhote e participou do seu adestramento.

— Até liguei para os pais dela — Alice continuou. — Eles não sabiam de nada.

— Que coisa, Alice! Você deve tê-los preocupado muito.

— Eu não sou idiota, Madrinha. Não falei nada sobre o acidente. Apenas disse que estava sentindo falta de conversar com a minha “sogra” e que estava ligando para saber como ela estava. A primeira coisa que Dona Rita fez foi me perguntar sobre Isadora. Ela ainda não sabe que terminamos nosso relacionamento.

— Menos mal! — suspirou a idosa, com ar de reprovação.

Alice fez um muxoxo, frustrada. Deveria se sentir, no mínimo, satisfeita agora que sua produção tinha começado e os negócios da Mimosa pareciam estar caminhando bem. No entanto, não conseguia relaxar desde que Dakota levou Nando para um local desconhecido e, logo depois, Isadora decidiu acompanhá-la naquela viagem.

Seu pequeno mundo parecia estar de cabeça para baixo. Tonho estava morto, Dakota era sua prima, seu irmão estava sob ameaça de criminosos e a madrinha parecia ter se tornado outra pessoa do dia para a noite.

— Estou desconhecendo a senhora. Parece tão tranquila com essa situação toda.

— Desespero não leva a lugar nenhum — ela colocou de lado o livro que lia, antes da conversa começar. Mas o seu problema não é desespero, é?

Alice ergueu uma sobrancelha, confusa. Rosana prosseguiu, certeira:

— Vamos ser sinceras, sim? Você está preocupada com Isadora, não tenho a menor dúvida disso. Mas também está irritada porque Lara retornou e teme que ela queira ficar com a fazenda, quando eu morrer. — Fez um gesto para que ela permanecesse em silêncio. — Não precisa se preocupar com isso. A fazenda é sua e de Nando, está no meu testamento há anos e não pretendo mudá-lo agora.

As feições de Alice foram da confusão à surpresa em um piscar de olhos. Ela sabia que herdaria a Mimosa um dia, mas imaginava ter que dividi-la com uma prima distante, da qual nada sabia além de que tinha deixado a fazenda brigada com a avó.

— Lara não quer e nunca quis a Mimosa. Ela fez questão de afirmar isso, muito antes de deixar este lugar. E isso não parece ter mudado, depois de tantos anos. Então, como meu único parente, seu pai seria o herdeiro da fazenda. Entretanto, a morte também o levou cedo e a propriedade, naturalmente, ficará com você e o seu irmão.

Alice limpou a garganta, com uma mistura de satisfação e alívio, para depois trincar os dentes quando a madrinha completou:

— Agora que esclarecemos isso, vamos conversar sobre o verdadeiro motivo de você estar tão incomodada nos últimos dias. E não é por causa da fazenda, tampouco por Isadora ou Nando, mas sim porque Lara te atrai.

Surpresa, Alice soltou um riso nasal e foi categórica em afirmar:

— Eu não estou a fim dela!

— Não disse que estava, mas, com certeza, ela mexe com você. Ela é diferente das mulheres daqui e não faz questão de te dar atenção. É instigante, não é? E antes que formule uma negação que, estou certa, será muito competente, eu vou te recordar de que você não é uma boa mentirosa. Ao menos, para mim.

Silenciosa, Alice voltou a sentar. Seria mesmo possível que estivesse interessada na prima e não tinha se dado conta disso? Achava que Rosana estava enganada, mas a dúvida havia sido plantada.

***

Dakota sorriu do jeito que Isadora aprendeu a gostar. Era um sorriso meio metido, meio carinhoso, nem largo demais, nem estreito, mas sincero de uma forma que ela não conseguia entender, apenas apreciar.

Deitada sobre um lençol, e enfiada em um biquíni preto, tipo sunguete, ela parecia relaxada demais para quem tinha sido muito firme em declarar que não gostava de praia quando Isadora a convidou para uma caminhada e um mergulho na água salgada.

— Vamos afastar as energias ruins! — Isadora declarou, segurando sua mão, enquanto atravessavam a avenida. E repetiu a frase quando seus pés tocaram a areia branca e quente do meio da tarde.

 Aquele ponto da praia não era movimentado, graças ao mar agitado, e pela proximidade da noite estava quase deserto. Isso deu a Isadora a sensação de que o lugar pertencia só a elas, e se permitiu observar Dakota sem reservas, admirando suas formas, musculatura e tatuagens.

— Você é uma obra de arte ambulante — brincou, fazendo-a rir.

— Admire o quanto quiser — Dakota ergueu os óculos de sol, apenas para lhe enviar uma piscadela marota, então lhe ofereceu a mão para que se juntasse a ela no lençol. O que Isadora teria feito com satisfação e cautela, se não tivesse lhe puxado com força, fazendo com que caísse sobre o seu corpo.

Isadora reclamou com ela, pedindo que tivesse mais cuidado, afinal havia deixado o hospital há poucos dias. Por sua vez, Dakota passeou um dedo sobre sua face, tracejando queixo e lábios delicadamente, então levou a mão aos seus cabelos e os dedos delgados afundaram entre os fios molhados.

Ela iria beijá-la e Isadora ansiava tanto por isso que não quis esperar pelo momento, então inclinou-se em sua direção grudando seus lábios. E sentiu o corpo debaixo do seu ficar ligeiramente tenso, antes de relaxar sob seu peso. A outra mão de Dakota enroscou suas costas, apertando-a contra si, Isadora gemeu baixinho quando a perna dela encaixou-se entre as suas, roçando levemente a sua intimidade. O beijo tornou-se mais intenso, quase desesperado, mas foi amainando e encerrou-se com delicadeza.

Ela rolou para o lado e escondeu o rosto no pescoço de Dakota, apreciando o carinho que ela fazia em suas costas e o cheiro de protetor solar e água do mar que exalava da pele dela.

Era apenas um beijo. Um dos poucos que trocaram naqueles dias de descanso e, ao mesmo tempo que desejava ir mais fundo e descobrir os prazeres que poderiam se originar dele, Isadora também se satisfazia em não ir além e apenas curtir a companhia daquela mulher que mal conhecia e que, no entanto, estava disposta a lhe oferecer momentos distintos de compreensão, carinho e, agora, desejo.

Lembrava-se de Alice com frequência. Dois anos de relacionamento não podiam ser apagados em duas semanas, mas tinha decidido não dar asas a essas lembranças, tampouco às dores que elas podiam trazer. Razão pela qual ignorava suas mensagens e ligações.

Sendo assim, aproveitava os momentos ao lado de Dakota, naquele pequeno ritual de conhecimento, lento, suave e tranquilo. Parecia um namoro e, ao mesmo tempo, não era. Às vezes, eram apenas duas mulheres construindo uma amizade, nada mais. Conversavam, brincavam, se provocavam e cuidavam, sem segundas intenções. Noutras, ela realmente desejava ir além disso, porém não se sentia obrigada a ter um contato mais íntimo que um beijo.

A ideia de transar com Dakota, definitivamente, não a desagradava. No entanto, se algo havia ficado claro na conversa que tiveram naquele posto de gasolina, era o fato de que não precisavam ter pressa para nada. Tinham, apenas, que deixar as coisas acontecerem com naturalidade. E ela gostava dessa perspectiva, embora seu corpo estivesse fazendo questão de contrariá-la naquele momento.

— Acho melhor voltarmos, está começando a esfriar e o sol já vai se pôr — disse.

Enquanto atravessavam a avenida, Dakota perguntou:

— Você quer jantar fora hoje? Aqui perto tem um restaurante de frutos do mar maravilhoso.

— Eu prefiro ficar em casa. Tudo bem?

— Não tenho objeções.

— Que bom. Que tal a minha “famosa” macarronada?

— Famosa?!

Isadora gargalhou.

— Bem, ela é famosa em Cascabulho. O que você acha? Podemos abrir uma garrafa de vinho… ou duas.

Dakota a olhou com mais atenção, tentando descobrir se aquilo queria dizer o que estava imaginando. Por fim, falou:

— Podemos abrir quantas você quiser.



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2023 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.