DAKOTA

3. BRINCADEIRA ESTRANHA

— I —

— Não vá embora ainda. Já volto! — Relaxada, Dakota enfiou as mãos nos bolsos traseiros da calça e iniciou a subida da ladeira.

Ia com um sorriso no rosto, que Alice achou charmoso, embora tivesse uma perceptível nota de maldade. Claro, podia ser apenas uma impressão, diante do que tinha acabado de ouvir. Mesmo assim, diferentemente de Seu Mariano, ela acreditava que ainda era cedo para formular uma opinião concreta sobre a forasteira.

Enquanto esperava, uma leve brisa percorreu a rua, balançando as folhas das árvores pelo caminho. O cheiro de cana-de-açúcar, oriundo dos canaviais em volta da cidade, invadiu suas narinas misturado ao odor do óleo do motor da caminhonete. Cansada, sentou na calçada, ao lado de Jeremias. A brisa ficou mais forte, porém, não aliviou o calor, que fazia as roupas grudarem-se ao seu corpo, pegajosas e empoeiradas.

— Hmm… Acho que tá fazendo besteira, Dona Alice — Seu Mariano resmungou, quando acreditou que Dakota estava longe o suficiente para não ouví-lo.

— Não acha que está implicando demais com alguém que mal conhece?

Ele bocejou, coçando o topo da cabeça.

— Essa sujeita não é peça boa! — respondeu, os olhos miúdos voltados para a direção em que a forasteira seguiu, como se pudessem enxergar todo o perigo que acreditava existir nela.

Alice jamais o culparia pela desconfiança, ainda que achasse um exagero.

— Talvez tenha razão — ela admitiu, por fim. — Contudo, se não nos dermos uma chance de conhecê-la, nunca teremos certeza de que tipo de pessoa é. Até agora, tudo o que ela me mostrou é que é uma mulher inteligente, tranquila e disposta a ajudar. Além disso, — achou melhor esclarecer — é amiga do Tonho. Para mim, é a melhor referência que poderia ter.

O velho bufou, mas não retrucou, e ela se sentiu grata por isso. Às vezes, era extenuante argumentar com quem não estava disposto a ouvir.

— Acha mesmo que ela veio matar alguém, Dona Alice? — perguntou Jeremias, atento à conversa dos adultos.

Ela sorriu para o garoto.

— Ela só estava brincando, Jerê. Foi uma maneira um pouco diferente de dizer que não era da nossa conta.

O menino fungou e balançou a cabeça, satisfeito com a resposta. Alice acreditava mesmo nisso. Pelo pouco que viu, Dakota parecia se divertir em causar a curiosidade alheia.

— Brincadeira estranha — queixou-se o avô da criança. — Me pareceu muito séria quando disse aquilo.

Alice encolheu os ombros.

— Acho que ela tem o que as pessoas chamam de humor negro — notou que o homem não sabia o que isso significava. Mentalmente, começou a formular uma explicação, mas logo ficou claro que ele não estava interessado em ouvi-la. 

— Mas voltando ao assunto, — ele ficou de pé — não estava me referindo a essa fulana, quando puxei a conversa. O que queria mesmo dizer é que acho que você é jovem demais para se enfiar nos problemas da Mimosa. Acho que está embarcando em uma canoa furada com essa ideia de restabelecer a fábrica de doces. Acho que deveria parar de jogar fora o pouco dinheiro que o seu pai deixou.

— Não seja intrometido, pai! — disse Rosário, a mãe de Jeremias,  que se uniu a eles enquanto o pai falava.

— Só estou dando a minha opinião.

— Que ninguém pediu — pontuou Rosário, arrancando dele um dar de ombros irritado.

— Só acho difícil ver essa moça — falou como se Alice não estivesse presente — correndo para um lado e para outro, tentando reerguer o mausoléu que aquela fazenda se tornou. Dona Rosana não está nem aí para o esforço que ela faz! E só continua sendo dona daquelas terras, porque Dona Alice pagou as dívidas dela. Todo mundo sabe disso.

— Isso não é seu problema, pai! Não tem o direito de se intrometer no assunto dos outros.

— Está tudo bem, Rosário — Alice interferiu na discussão, antes que crescesse.

Ela baixou a aba do boné, ocultando o rosto. Ouvi-lo falar daquela maneira a irritava muito mais do que entristecia. Havia uma boa quantidade de maldade em suas palavras, todavia, a maior parte era verdade.

— Seu Mariano, provavelmente, está certo. — Admitiu, erguendo a vista para encará-lo e anunciar: — Mas eu ainda não estou pronta para desistir da Mimosa.

Ele fez um gesto de descaso, como se estivesse decepcionado por ela não se manifestar além disso.

— Ah! Ao menos, você tem boa intenção e quer fazer algo. Já o seu irmão… — ele mudou o foco da conversa.

— Pai! Já chega!

O velho assungou a calça até a cintura, projetando o lábio inferior para a frente, então começou a recolher as caixas da caminhonete para retorná-las ao estoque.

— Desculpe por isso, Alice. Vi uma garrafa de cachaça debaixo do balcão, acho que ele bebeu um pouco e perdeu as travas da língua. — Rosário tentou justificar a atitude desagradável do pai.

— Melhor ele falar o que pensa na minha frente, do que destilar veneno pelas minhas costas, como o resto da cidade faz.

Rosário deixou uma expressão de pena tomar suas feições. Admirava Alice e o tanto que ela estava disposta a lutar pelo seu lar, mas concordava com o pai. Ela devia empregar aquela força de vontade em sonhos possíveis.

Deixando a irritação de lado, junto com sua autopiedade, Alice se dispôs a ajudar a descarregar a caminhonete. Rosário fez o mesmo e, em pouco minutos, terminaram o serviço. Mal tinham retornado à calçada, quando Dakota estacionou sua moto junto ao meio-fio, e disse:

— Suba. Vou te levar até a sua fazenda.

Com evidente desconfiança, Alice olhou para o veículo. Ela não gostava de andar em nada que tivesse menos de quatro rodas, nem mesmo uma bicicleta. Sentia-se desprotegida.

— Não precisa se preocupar, eu me viro… — declinou.

Em silêncio, Dakota insistiu ao lhe oferecer o capacete reserva. Um item de segurança bastante raro para aquelas bandas. Estando rodeada por plantações cortadas por estradas precárias e sem asfalto, era natural que Cascabulho não tivesse fiscalização no, quase inexistente, trânsito.

— Só aceite a carona, Dona Alice. A Mimosa fica bem distante e foi-se o tempo em que a vida no campo era sinônimo de paz e segurança. — Seu Mariano a surpreendeu. — A esta hora, vai ser difícil encontrar alguém para te levar até lá.

Ele riu, mas o olhar desconfiado sobre a motoqueira não escapou à percepção de ninguém. Alice continuou buscando uma desculpa educada para rejeitar a carona.

— Minha oferta expira em 10 segundos — Dakota alertou, dando a partida no motor, que ronronou como um gato mecânico de trezentos quilos.

Rosário deu uma tapinha no ombro dela, incentivando-a e, sem opção, Alice ocupou a garupa. Paciente, Dakota esperou que colocasse o capacete.

— Segure-se em mim — disse ela, ao que Alice teve dificuldade em obedecer, pois pareceu-lhe muito esquisito abraçar a cintura de uma completa estranha. No entanto, o medo de cair falou mais alto e enroscou os braços nela, quando arrancou com a moto.

Não trocaram nenhuma palavra, nem mesmo indicações da direção a seguir. A forasteira parecia estar bem inteirada das estradas da região e, por duas vezes, cortou caminho por estradas secundárias, em meio a canaviais e pomares. Em pouco tempo, estavam diante da sede da Fazenda Mimosa.

Foi com alívio que Alice desceu da moto, sentindo-se ainda mais suja, graças a poeira que juntou-se ao suor das roupas. Ela devolveu o capacete e agradeceu. Enquanto isso, a motoqueira analisava o lugar com indisfarçado interesse.

— Já tivemos dias melhores — Alice comentou, visivelmente incomodada com o silêncio dela. — Necessito molhar a garganta depois de comer tanta poeira. Entre comigo para bebermos algo e me permita agradecer pela carona adequadamente. Acho que será um descanso bem-vindo. Essas estradas estão tão esburacadas que, imagino, seus braços devem estar doendo.

— Já estou acostumada. Não se preocupe.

— Eu insisto. Até porque gostaria de conversar um pouco mais sobre as suas habilidades mecânicas.

— Que não são tantas quanto imagina — Dakota enfatizou. — Mas não precisa se preocupar, cuidarei bem da sua caminhonete.

A moça agradeceu novamente, com um singelo meneio de cabeça.

— Na verdade, quero falar sobre a possibilidade de contratar os seus serviços.

— Já disse que entendo um pouco de motores, mas não trabalho com isso.

— Poderia, ao menos, me ouvir? — Alice varreu o chão com o olhar, ainda mais constrangida do que se sentia.

Dakota concordou, após um momento de silêncio contemplativo. Durante esse tempo, Alice teve a impressão de que o seu pedido exigiu um grande esforço da parte dela, que desceu da moto e acompanhou-a até o topo da pequena escadaria que levava ao alpendre que circundava o casarão do início do século passado.

— Vamos entrar — convidou, novamente.

— Aqui está bom — negou-se, deixando claro que não desejava demorar mais que o necessário.

Os lábios de Alice se comprimiram, antes de começar a falar sobre a fazenda que, em outros tempos, foi uma das mais produtivas da cidade. Contudo, ao longo dos anos, a Mimosa afundou-se em dívidas. Alice sonhava em retomar o trabalho da pequena usina de açúcar e álcool. Entretanto, para isso, precisava da manutenção no maquinário parado há anos.

— Havia combinado a manutenção com Seu Inácio, mas você já deve saber que ele não poderá fazê-la — concluiu.

— Por que não contrata alguém de outra cidade? — Dakota perguntou, os braços cruzados em uma pose quase arrogante.

— Vai levar dias para que alguém se disponha a vir até aqui, apenas para fazer um orçamento. Com certeza, irão me cobrar uma pequena fortuna, a qual não disponho no momento. — Passou a mão na testa, enxugando uma gota de suor. Confessou: — Estou desesperada.

— É perceptível, já que está pedindo um grande favor para uma completa estranha — a motoqueira observou.

Alice mostrou um sorriso acanhado. Odiava pedir favores, ainda que estivesse disposta a pagar por aquele.

— Tonho é a sua melhor recomendação — falou. — Se é mesmo amiga dele, não é má pessoa. Olha, tenho que começar a produção em duas semanas e se as máquinas não estiverem funcionando até lá, serei obrigada a dispensar os poucos trabalhadores que contratei, além de perder o investimento que fiz.

Fixou o olhar de Dakota, que parecia ficar mais frio a cada palavra. Decidiu ser ainda mais sincera:

— Se isso acontecer, vamos perder a fazenda. Eu sei que você não tem nada a ver com isso, mas este é o tamanho do meu desespero.

Dakota inspirou fundo, prestes a dar a resposta negativa que rondava sua mente, desde o início da conversa. Contudo, duas mulheres saíram da casa e se juntaram a elas. O assunto foi encerrado.

— Estava prestes a ir à sua procura — disse a mais jovem das recém-chegadas, aceitando um meio abraço de Alice e, posteriormente, um beijo rápido nos lábios.

O carinho chamou a atenção de Dakota, mas ela logo desviou o olhar das duas para fitar a outra mulher.

— Quando chegou? — Alice perguntou para a namorada, Isadora.

— Faz pouco. Se soubesse que estava na cidade, teria feito um desvio para pegá-la — Isadora devolveu o sorriso, carinhosa.

— Achei que só viria amanhã. Teria amado a carona! — Alice afirmou e depois apresentou Dakota. — Esta é a Dakota, que foi muito gentil ao me trazer para casa, depois que a caminhonete me deixou na mão, de novo. Dakota, estas são Isadora, minha namorada, e a minha madrinha, Rosana.

Um pequeno momento de silêncio se seguiu, antes que Dakota resolvesse dizer um singelo:

— Oi.

As duas mulheres responderam com um aceno ligeiro, um tanto incomodadas. Ambas sentiram, embora em níveis diferentes, algo estranho na motoqueira, cujas feições pareciam excessivamente rígidas naquele momento.

— Ela é amiga do Tonho e está cuidando do bar, enquanto ele não retorna — Alice explicou, também notando a ligeira mudança de postura da forasteira.

— Será uma estadia breve — Dakota afirmou, o olhar passeando por cada uma das mulheres, como se estivesse em busca de algo em suas feições.

Incomodada com o novo e estranho silêncio que se seguiu após isso, Alice voltou a insistir para que entrasse para tomar um copo d’água ou algo mais forte. Dakota rejeitou o convite, novamente.

— Está ficando tarde e tenho que resolver algumas coisas — justificou. — Além disso, estão me esperando para o jantar.

Despediu-se com um aceno e partiu, deixando Alice decepcionada por não ter recebido uma resposta ao seu pedido de ajuda.

— Onde foi que você achou essa figura? — Isadora perguntou, quando entraram em casa.

— Já disse, ela é amiga do Tonho. E, se tivermos sorte, vai nos ajudar com a manutenção das máquinas. — Contou o que  aconteceu com o velho Inácio.

— Espero que aquele coitado se recupere logo, mas acho melhor encontrar outra pessoa, Alice. — Dona Rosana balançou a cabeça, decidida. — Não gostei dessa mulher.

A afilhada trocou um olhar rápido com a namorada.

— Bem, a senhora e metade da cidade se sente assim em relação a ela — revelou.

— Um sinal de que tenho razão — apontou Dona Rosana, indo para a cozinha sem prestar atenção ao revirar de olhos dela que, em vez de segui-la, decidiu ir tomar um banho.

Meia hora depois, Alice terminava de se vestir, sob o olhar atento de Isadora, que havia sentado na cama em um silêncio contemplativo.

— Preconceito, puro e simples — Alice resmungou para o espelho, reclamando da fala da tia, mais cedo. Passava o pente pelos cabelos úmidos. — São apenas tatuagens e uma moto!

Isadora deitou na cama, fitando o teto com um rápido suspiro.

— Acho que não foi por causa delas que a sua madrinha não gostou da sua nova amiga. Me desculpe, Alice, mas aquela mulher tem uma vibração estranha e…

— Até você, Isa?!

— Sim! Até eu. Não gostei da forma como ela te olhou — Isadora concluiu.

Alice a fitou através do espelho, tentando adivinhar se falava seriamente. Às vezes, era difícil interpretar Isadora, que tendia a brincar usando expressões sérias. Observou-a mordiscar o lábio inferior, um gesto que costumava indicar que algo a incomodava, e que lhe deu a certeza de que não se tratava de palavras levianas.

Soltou o pente e deu a volta na cama. Subiu nela, sentando sobre o ventre da namorada com um sorriso.

— Achei que não fosse ciumenta — apoiou as mãos ao lado da cabeça dela.

Isadora enrolou um dedo em uma mecha dos seus cabelos úmidos.

— Não se trata disso. Só não gostei do jeito que ela olhava pra você.

— Que jeito?

— Não sei descrever… — ficou em silêncio.

— Boba! — Alice escorregou a ponta do dedo pelo nariz dela, certa de que se tratava de uma rara demonstração de ciúmes. — Senti saudade.

— Eu também!

Isadora a puxou para um beijo. Deslizou as mãos pela cintura dela e as introduziu por baixo da camiseta. A pele sedosa a recebeu arrepiada pela saudade do seu toque e o beijo foi do simples carinho para o intensamente provocante e guloso.

— Vamos nos atrasar para o jantar — Isadora tentou afastá-la rindo baixinho.

— Eu não quero jantar, quero você! — beijou-lhe o pescoço, insinuando uma mão dentro do seu jeans. Isadora arfou com o toque.

— Sua madrinha vai ficar uma fera com a gente!

— Ela já devia estar acostumada. Sabe bem que você vira minha cabeça!


— II —

 Dois dias se passaram até Alice ter uma oportunidade de retornar a Cascabulho com a intenção de pegar os mantimentos e tentar encontrar uma solução para a velha caminhonete. Isadora fez questão de levá-la.

— Onde está a caminhonete, Seu Mariano?

— Aquela sujeita veio aqui e rebocou até o bar.

Ela teve de fazer algum esforço para não demonstrar seu desagrado com a forma que ele falou.

— Será que ela conseguiu consertar?

— Duvido! Já disse para não ter tanta fé naquela mulher — resmungou o velho, como se tivesse a verdade absoluta. — Mas deixando isso de lado, Dona Alice, preciso que dê uma olhada no pedido para o próximo mês.

— Mas já?! Ainda é muito cedo.

— É! O meu genro precisa adiantar a viagem para pegar as mercadorias. Venha comigo, vou lhe explicar melhor.

Isadora sorriu para a expressão desconsolada da namorada, que não pretendia passar mais que uma hora na cidade e, agora, ia perder um bom tempo ouvindo os desvios de conversa e fofocas do velho Mariano, antes que pudessem fechar o pedido.

— Enquanto vocês vêem isso, eu posso ir pegar a caminhonete — ela se dispôs. Alice concordou, grata.

Passava um pouco do meio da tarde, quando ela entrou no bar.  A caminhonete de Alice estava estacionada do outro lado da rua. Àquela hora, havia meia-dúzia de fregueses, a maioria idosos, jogando baralho na mesa mais próxima da entrada.

O ajudante no balcão indicou que a patroa estava no depósito, nos fundos do estabelecimento. Isadora ficou em dúvida se poderia, ou não, ir até lá. O rapaz — Júlio era seu nome — era meio desligado, sempre parecia mais atento ao celular do que ao que acontecia à sua volta.

Ela decidiu entrar e encontrou Dakota deitada sobre uma pilha de caixas vazias. A luz natural entrava pelas janelas estreitas e altas, iluminando o lugar completamente. Tonho costumava ser muito relaxado com a arrumação, por isso, Isadora se surpreendeu por encontrar o depósito limpo e organizado.

Ainda sob o umbral da porta, observou Dakota com interesse. Ela usava Jeans rasgados e camiseta branca e, apesar de parecer um detalhe discreto da sua bota, Isadora notou a ponta do cabo de uma faca. Longe de parecer preconceituosa como Dona Rosana ou seu Mariano, quando olhava para Dakota algo em seu interior gritava: perigo.

Tentou explicar isso para Alice, mais cedo. A namorada riu, argumentando que só tinha encontrado a motoqueira uma vez e mal conversaram, então tirar essa conclusão era uma bobagem. Depois, Alice a acusou de estar sendo um pouco boba por deixar o ciúme falar mais alto, o que Isadora não gostou.

Fato era que Alice parecia muito disposta a rejeitar qualquer ideia negativa sobre Dakota. Talvez fosse pela esperança de que ela pudesse ajudá-la com a usina, ou, — e era esse “ou” que preocupava Isadora — estivesse atraída pela forasteira.

Dakota abriu os olhos, quando ela se aproximou. Não se moveu além disso.

— Veio buscar a caminhonete? — ela perguntou.

— Se ela estiver funcionando…

— Achei que seria Alice a vir — sentou e bocejou, depois ficou de pé e alongou-se devagar.

Algo na forma que ela falou, inflamou os ânimos de Isadora, que não conseguiu se conter e disse:

— Você gostaria disso, não é? Vi como olhava para ela na outra noite.

A declaração divertiu Dakota, que andou até a mesa nos fundos do depósito e pegou as chaves em uma gaveta. Ela retornou para Isadora com passos lentos, segurou a mão dela, lhe entregando as chaves, e as cobriu com a outra mão.

Isadora estranhou a suavidade do contato e também se incomodou com a intensidade do seu olhar, o qual sustentou como se estivessem em um combate silencioso. Dakota ganhou a disputa quando mostrou um sorriso cafajeste e perguntou:

— Tem certeza de que era para Alice que eu estava olhando? — Seu sorriso cresceu ao perceber o forte rubor que tomou as feições de Isadora ao compreender a insinuação na pergunta.

Soltou a mão dela, que respirou aliviada e demorou alguns segundos para se recuperar. Dakota não precisava daquilo, também não queria, mas foi impossível resistir à vontade de provocá-la.

— Só… — Isadora se afastou, limpando a garganta. — Só me diga se a caminhonete está funcionando ou não.

Dakota ainda sorria daquele jeito irritante, quando enfiou a mão no bolso. Isadora a odiou por isso e por fazê-la se sentir constrangida, o que raramente acontecia.

— Sim, a caminhonete está funcionando. Mas recomendo não abusarem dela. Aqui. — Entregou-lhe um papel. — É uma lista de peças que precisam ser trocadas com urgência. Sem isso, ela vai quebrar de novo, ou pior, pode vir a causar um acidente.

— Essa caminhonete é mais velha que a minha mãe! Onde encontraríamos todas essas peças?! — lamentou por Alice, enquanto analisava a lista escrita com uma letra surpreendentemente delicada.

— As peças, realmente, não são fáceis de encontrar. Esse modelo está fora de linha há muito tempo. Sinceramente, seria melhor vender e comprar um veículo mais novo.

Enfiou a mão no outro bolso e tirou um cartão com um número de telefone rabiscado. Isadora o recebeu, tomando o cuidado de não voltar a tocá-la.

— Mas sei que estão com o orçamento apertado. Liguem para esse cara. Se ele não tiver as peças, saberá onde encontrá-las. Só não esperem que saia barato. — Dakota concluiu.

Isadora fitou o número no cartão e o enfiou no bolso, junto com a lista. Enquanto isso, Dakota retornou para a pilha de caixas, deitou sobre elas e jogou o braço sobre os olhos, deixando claro que não tinham mais nada a tratar.

Olhando para as chaves que segurava, Isadora pensou em Alice e nos problemas dela, que só faziam aumentar. Suspirou profundamente e deu um passo em direção a porta, mas mudou de ideia e voltou a olhar para Dakota.

— Talvez eu tenha tido a impressão errada na outra noite — falou, ainda em dúvida se a insinuação que ela fez era real ou apenas uma forma de irritá-la.

— Talvez — Dakota respondeu.

— Não vou pedir desculpas por isso — disse, orgulhosa.

— Eu não ligo! Seja lá o que imaginou, está apenas na sua cabeça.

Dakota voltou a sentar, encarando-a demoradamente e Isadora fugiu do seu olhar, envergonhada.

— Veja, Isadora, vim para esta cidade com um objetivo muito específico. E ele não tem nada a ver com romance. Não tenho qualquer interesse em me meter no seu relacionamento. E acho que, se você não se sente segura nele, deveria conversar sobre isso com a sua namorada.

Ela não estava errada, Isadora reconheceu. Precisava mesmo conversar com Alice sobre o relacionamento delas e essa necessidade vinha de muito tempo antes de Dakota aparecer na cidade. Mas ver a namorada na companhia de uma mulher estranha que, claramente, cativou seu interesse, atiçou reações que tentou manter inertes.

Inclinou a cabeça, assentindo simplesmente, e o tempo pareceu se arrastar enquanto pensava nessas coisas sob o olhar atento dela. Por fim, perguntou:

— Já que esclarecemos isso, será que você pode dar uma pausa na busca desse objetivo para ajudar com o maquinário da usina? Obviamente, não podemos pagar muito.

A outra suspirou a resposta:

— Tentei falar isso para Alice, naquela noite, não posso ajudar.

— Não custava perguntar.

Na verdade, Isadora já esperava uma resposta negativa e, antes de fazer a pergunta, até torceu por isso. Dakota sorriu de lado, pois, realmente não queria se envolver nos negócios da Fazenda Mimosa. Também não queria estar naquele bar, mas o estabelecimento lhe fornecia acesso à informações que, de outra maneira, seria difícil conseguir. Era preciso ter paciência, um exercício muito complicado para alguém que preferia a ação.

Júlio surgiu na porta, olhou para as duas e projetou metade do corpo para dentro do depósito. Ele fez uma careta, deformando o rosto magro.

— Dakota, o Rochinha está aqui — avisou, claramente incomodado.

Um arrepio percorreu a coluna de Isadora, que prendeu o ar ao mesmo tempo que abria mais os olhos. Donato Rocha, mais conhecido como Rochinha, era o filho caçula de Silvestre Rocha. O rapaz não dava as caras na cidade há dois meses, mais precisamente, depois que Tonho o expulsou do bar após uma briga. Poucas horas depois, o dono do Gota Serena foi agredido e baleado.

— O bar está fechado — Dakota falou em alto e bom som, quando retornou ao bar. Isadora a seguia de perto, sentindo uma mistura de raiva e receio.

Rochinha estava sentado em uma mesa, acompanhado por dois rapazes. Era um homem de feições bonitas e irônicas, metido em roupas caras. Com um sorriso debochado, ele percorreu a figura de Dakota com o olhar, enquanto ela se aproximava da mesa.

— Minha nossa! Então, é de você que andam falando por aí? — ele perguntou com um misto de admiração e curiosidade. — De onde foi que você saiu?

— O bar está fechado — Dakota repetiu, desprezando as perguntas.

O rapaz arqueou uma sobrancelha, com um sorriso nasal.

— E essas pessoas? — ele apontou para os jogadores na mesa da entrada e depois para os dois homens na mesa ao lado da qual sentou. Todos muito atentos ao diálogo dos dois.

— São clientes — ela cruzou os braços, uma mecha dos cabelos escorregando para testa.

— Então, o bar está aberto! — disse ele, dando uma batidinha na mesa. — Nos traga uma cerveja gelada e nos divirta, contando como veio parar nesse fim de mundo!

Ela respirou fundo, falando devagar: 

— O bar estará sempre fechado para você e qualquer outro membro da sua família. E se isso não for o suficiente para que entenda, posso desenhar.

Rochinha se endireitou, com um sorriso descrente. Metros atrás, Isadora mordiscou o lábio, pensando que aquela mulher era louca.

— Você sabe com quem está falando? Sabe quem eu sou?

— Claro! Estou falando com um mauricinho imbecil, que não consegue entender a simples frase: o bar está fechado! — Fez um gesto com a mão, indicando mandando-o se erguer. — Procure outro lugar para beber e leve esses dois palhaços com você.

Imediatamente, os três homens ficaram de pé. Isadora engoliu em seco ao ver a arma na cintura de Rochinha. Não era uma surpresa, visto que todos os membros da família Rocha andavam armados.

— Você é maluca?! — o fazendeiro perguntou, o rosto afogueado e uma veia saltitante na testa. — Não pode me colocar pra fora dessa espelunca!

— Eu posso e vou — Dakota respondeu tranquilamente. — Pois, nenhum membro da família Rocha ou qualquer um que esteja na sua folha de pagamento, voltará a beber neste bar enquanto eu estiver no comando dele. E se você não gosta da forma que estou conduzindo o meu negócio, pode mandar seus capangas atirarem na minha cabeça, como fez com o Tonho.

— Bandidos fizeram aquilo, não tenho nada a ver com isso! — Rochinha explodiu, o dedo em riste.

— Você quer dizer, bandidos na folha de pagamento do seu pai — ela retrucou.

— Não pode acusar as pessoas sem prova! Não tive nada a ver com aquilo! Isso é calúnia! — ele berrou, perdendo a pose de vez.

Estava claro que era um assunto delicado para ele, que deu um passo em direção a Dakota, mas um dos peões colocou a mão à sua frente e lhe pediu calma. Obviamente, aqueles dois estavam ali para impedi-lo de se meter em confusão. Infelizmente, para eles, Dakota desejava exatamente isso.

— Mesmo?! — Ela perguntou, provocadora. — Não sou como a gente humilde desta cidade. Não estou amarrada a um emprego miserável, nem ocupo um imóvel que pertence a família Rocha e, muito menos, tenho medo de vocês. Posso falar o que quiser, principalmente, a verdade. Negar o seu crime, não o torna inexistente. Agora, caia fora daqui, antes que eu resolva chutar o seu traseiro até a rua.

— Vai se arrepender disso! — Rochinha rosnou, se deixando guiar pelos dois peões, para fora do bar.

Dakota gesticulou despreocupadamente.

— Ah, claro! Se for homem o suficiente para fazer o serviço você mesmo, eu moro na chácara que pertenceu ao Bento Rodrigues. Mas como tenho certeza de que não é, avise ao seu “papai” que estarei esperando pelos capangas dele.

Completamente fora de si, o rapaz se voltou para ela com a arma na mão.

— Sua puta, não preciso ir até aquele mausoléu pra meter uma bala na sua cara. Posso fazer isso aqui e agora!

Antes que ele conseguisse apontar a arma para ela completamente, Dakota pegou a garrafa sobre a mesa ao lado e jogou no rosto dele. Rochinha fechou os olhos para receber o impacto, ela deu um passo à frente, travou o seu braço e o desarmou. Então, usou a coronha para atingir o rosto dele novamente. Desta vez, a pancada foi tão violenta, que o rapaz caiu. Os dois peões, chocados com o que viram, não esboçaram reação.

— Tirem esse lixo do meu bar! — Dakota ordenou e balançou a arma na direção deles, que colocaram o patrão de pé. Tonto e com o nariz sangrando muito, Rochinha lançou um olhar assassino para ela, ao passo que era guiado para fora do estabelecimento. Prometeu:

— Isso não vai ficar assim!

Quando ele chegou à calçada, gritou:

— Eu vou acabar com a sua raça, piranha! Eu vou acabar com você!

À medida que caminhava até a entrada, seguindo as gotas de sangue no chão do bar, Dakota olhou para a pistola que tinha nas mãos, com a satisfação de quem estava acostumada a carregar aquele peso. Os berros de Rochinha ficaram mais altos ao passo que os peões tentavam colocá-lo dentro da Hilux estacionada atrás da caminhonete de Alice.

— Eu vou acabar com você! — ele gritava sem parar, chamando a atenção de quem passava pela rua e só parou quando Dakota apontou a arma na sua direção e disparou duas vezes, atingindo os pneus da Hilux.

— Você está muito nervoso, mauricinho. Uma caminhada de 10Km até a sua fazenda deve te ajudar a esfriar a cabeça.

Emudecido, o rapaz seguiu os peões em direção a estrada para casa. Ainda desnorteada com tudo que viu, Isadora falou para Dakota:

— Não sei se você é estúpida ou suicida, mas é um fato que acabou de colocar um alvo nas costas. Silvestre Rocha vai querer a sua cabeça por isso.

Dakota fitou o olhar dela. Havia nele uma mistura de medo e preocupação. Respondeu:

— Não tanto quanto eu quero a cabeça dele.



Notas:



O que achou deste história?

4 Respostas para 3. BRINCADEIRA ESTRANHA

Deixe uma resposta

© 2015- 2023 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.