Desde sempre

Capítulo 1

Desde Sempre

 Por: Paula Marinho

Esta é uma história de Paula Marinho. A postagem foi autorizada pela escritora.

PRÓLOGO

– Olha por onde anda, Fabi. Você quase pisou nos meus cd´s.

– E o que eles estão fazendo no chão?

– Se você não notou, oh! gênio da percepção, nós ainda não temos móveis. Mas eu vou colocar esta caixa em cima da pia da cozinha. Às vezes, eu me esqueço de que você não enxerga um palmo à frente do nariz.

– Eu enxergo muitíssimo bem. Você sabe que eu fiz a cirurgia há dois anos.

– Ah! É mesmo. Então você continua estabanada mesmo.

A pequena loira com os longos e revoltos cabelos presos num rabo de cavalo levou um tapa brincalhão na cabeça.

– Ei! – Exclamou a loirinha com uma expressão pretensamente ofendida. – Só porque você é praticamente um gigante, não quer dizer que pode sair por aí agredindo os seres humanos normais!

– Eu não sou gigante. Tenho apenas 1,82 m. Você é que é uma tampinha e mal consegue conviver com esse complexo de oitavo anão da Branca de Neve.

– Poste de alta frequência!

– Pintora de rodapé!

– Vara pau desengonçado!

– Salva-vidas de aquário!

Ficaram se olhando como se elas fossem se digladiar a qualquer momento…e caíram na gargalhada.

Fabiana falou primeiro:

– Pizza?

– Hum…Agora sim, música para os meus ouvidos.

– Napolitana?

– Portuguesa.

– Meio a meio?

– Fechado.

Pegaram as mochilas e saíram rindo e conversando como se não tivessem feito isso o dia todo. Aliás, como se não tivessem feito isso praticamente todos os dias dos últimos dez anos.

Capítulo I

1985

Primeiro dia de aula na sétima série do Colégio Sagrado Coração de Maria. Algazarra geral na sala de aula. A freira, professora de português, pôs fim à barulheira com um gesto autoritário. Todos se sentaram.

No canto oposto, ao fundo, uma jovem e franzina mocinha de cabelos loiros presos num coque austero, vestida com o uniforme tradicional do estabelecimento – camisa branca, saia plissada, sapatos pretos e meias brancas – limpo e bem passado permanecia ereta e silenciosa.

Um olhar mais atento perceberia que a roupa, embora irrepreensivelmente arrumada, tinha- lhe sido ajustada ao corpo magro e, por sua coloração, já fora bastante usada.

De repente, o som inconfundível de objetos caindo chamou-lhe a atenção. Ergueu os olhos para ver uma adolescente extraordinariamente alta e magra e com medonhos óculos “fundo de garrafa” recuperar-se milagrosamente de uma queda humilhante após tropeçar no pedestal onde ficava a professora enquanto seus materiais caíam ruidosamente no chão sob as risadas estridentes dos colegas.

– Fabiana! – exclamou a professora.

A jovem tornou os olhos míopes para a mestra.

– Como sempre, atrasada. Pegue as suas coisas e sente-se imediatamente.

– Sim, senhora.

Liz viu a jovem de cabelos escuros apanhar cada um de seus pertences sem um ruído. Sentiu uma vontade tremenda de correr e ajudá-la na tarefa, mas como ninguém assinalou qualquer menção de fazê-lo, ficou sentada em seu lugar.

A professora iniciou a chamada. Era o momento que Liz mais temia. Alunos com a letra “A”…e inevitavelmente, ai!, os alunos com a letra “B”.

– Bento Marques Gonçalves.

– Presente.

– Beverly Hills Melo.

Risadas gerais. A loirinha respondeu quase num sussurro:

– Presente.

– Beverly…

– Presente! – Liz quase gritou, antes que a professora repetisse o nome.

Novas risadas.

– Silêncio! – ordenou a freira. – Ah, sim. Você é a nova aluna que veio do Estadual. Beverly, levante-se e se apresente à classe, por favor.

A pequena loira se levantou penosamente, mas, corajosa, falou em alto e bom tom:

Eu prefiro que me chamem de Liz. Sentou-se.

A professora olhou um instante para ela e pareceu desistir de qualquer comentário. Continuou a chamada.

Os dias transcorreram sem maiores acontecimentos e Liz acostumou-se à disciplina rígida, às exigências do estudo rigoroso e ao desprezo mal disfarçado dos colegas por sua visível pobreza e conhecida condição de bolsista. Particularidades relevadas nos dias de apresentação de trabalhos escolares em que a loirinha era procurada pelos colegas, com artificiosa simpatia, por sua inteligência e rara fluência verbal que há muito já se revelara admirável. Além disso, seu rosto bonito, pele de rara limpidez e corpo bem formado tornavam-na bastante popular junto aos rapazes, os quais afugentava – ainda que momentaneamente – com olhares ferozes e comentários mordazes.

No intervalo, Liz costumava ficar sozinha lendo ou observando curiosa o comportamento dos demais estudantes. Também percebia que a moça grande e desengonçada ficava igualmente sozinha a maior parte do tempo. Embora sentisse vontade, ainda não se aproximara dela. A oportunidade não demoraria a surgir.

Liz caminhava pelo corredor em direção à biblioteca quando ouviu Anita e sua trupe de amigas babonas falando alto com sua voz irritante e aguda.

– Você deve estar brincando, Godzilla subnutrido. É claro que eu não vou colocar você no meu grupo do trabalho de literatura. A sua presença na apresentação pode assustar os ouvintes.

– Ainda se fosse um trabalho de astronomia, talvez nós pudéssemos usar seus óculos como telescópios.

As meninas riram do comentário cruel dirigido a Fabiana.

Liz sentiu uma raiva intensa tomar-lhe o rosto junto com a vermelhidão característica de quando ela se enfurecia. Dirigiu-se ao grupo. Fabiana estava cabisbaixa, aparentemente sem forças para se mover.

Anita percebeu-lhe a aproximação e começou a falar:

-Ah, oi, Liz. Eu queria mesmo te chamar para o meu grup…

– Você está aqui, Fabiana. Caramba, eu estou atrás de você.

Que? – Fabiana olhou perplexa para ela.

– Puxa! Sensacional aquela poesia que você sugeriu. Olha só, você tem que fazer parte do meu grupo. Venha, vamos tratar dos detalhes.

A loirinha saiu puxando a menina alta pela mão através do corredor tagarelando sem parar. À falta de qualquer entendimento da situação, Fabiana se deixou levar sem reação. O seu único pensamento recorrente era o de que aquela baixinha tagarela só podia ser uma completa lunática.

Já no pátio do colégio, Fabi parou de chofre e olhou pra Liz com uma imensa interrogação plantada no rosto. Liz colocou as mãos nos quadris e ergueu seus olhos verdes para a sua interlocutora.

– Você não odeia aquela idiota da Anita e sua turma de admiradoras muito mais idiotas do que ela? – falou com um sorriso nos lábios.

– Você é maluca? – Fabiana conseguiu pronunciar.

– Sou! Sou maluca pra jogar aquele bando de antipáticas numa poça de lama e merda cuidadosamente misturadas. Você já imaginou a Anita com o seu cabelo antigravitacional todo coberto de lama e cocô?

Um sorriso tímido desenhou-se no rosto da garota alta. E como se a imagem fosse ficando cada vez mais nítida, um início de gargalhada pronunciou-se em sua garganta. Pouco depois, ambas gargalhavam às lágrimas no pátio do colégio.

Ainda enxugando as lágrimas, Liz comentou:

– Você é louca de pedir para entrar no grupo da Anita? É pedir para ser humilhada. Fabiana ficou séria imediatamente.

– Ah…Desculpe, eu fui indiscreta – Liz emendou.

– Não, tudo bem. É que as nossas mães frequentam o mesmo clube de senhoras do qual a minha é presidente e, de vez em quando, ela e a mãe vão nos visitar. Na minha casa ela chega a ser quase gentil comigo e, bom, eu pensei que…

– Tá, eu entendi. Mas você entenda uma coisa, Fabiana, pessoas como a Anita são corteses apenas quando lhes convém.

– É…

Liz colocou a mão no ombro de Fabiana.

– Ei, esqueça. Vamos tomar um refrigerante na cantina do Seu Aldo?

– Não sei, eu…

– Nossa, pelo amor de Deus, Fabi. Você tem que relaxar.

– Fabi? – Fabiana repetiu estranhando o apelido pelo qual nunca alguém a havia chamado antes. Gostou.

– Se soltar, entende? Vamos beber uma coca, anda.

– Suco.

– Suco?

– É mais saudável.

– E eu lá estou ligando para o que é saudável? Esse tamanho todo é por causa do tanto de suco que você foi obrigada a tomar na sua vida?

– Claro que não, é… Ei, você fala desse tanto o tempo todo?

– Menos na aula da Irmã Maria.

– Jesus, você fala mais que a minha mãe quando começa com os seus sermões.

– Deixa pra lá. Venha, Fabi. Eu vou te introduzir no maravilhoso mundo das bebidas não saudáveis, totalmente supérfluas e, por isso mesmo, deliciosas. E, quem sabe, talvez também às insalubres, terríveis e maquiavélicas batatas fritas.

Fabiana se deixou mais uma vez se levar como, aliás, ainda faria muitas vezes em sua vida. Este foi o início de uma amizade legítima e intensa que atravessaria os anos e os inevitáveis percalços do tempo.

1992

– Você tem certeza de que consegue sentir o gosto da pizza com esse tanto de catchup em cima?

– É do jeito que eu gosto.

– Desse jeito pode vir pizza de jiló com jurubeba que não vai fazer a menor diferença para o seu paladar.

– Fabiana, coma a sua pizza e deixe a minha em paz!

– Mas é que assim, Liz, você não sente o…

Fabi! – Liz ameaçou a melhor amiga com um sachê de catchup aberto e apontado para ela.

– Ok, ok. Fim da minha cruzada infrutífera contra o mau gosto – Fabiana desistiu da conversa elevando os ombros.

Dois rapazes se aproximaram com sorrisos enormes no rosto. Um deles, colega de colégio de ambas desde o ginásio.

– Oi, Fabiana. Oi, Liz. Vocês vão à festa de boas-vindas aos calouros mais à noite? Fabiana olhou para Liz.

– Não sei…Nós vamos, Liz?

O rapaz que fez a pergunta olhou para Liz que não esboçou resposta. Ele insistiu:

– Ora, vamos, Liz. Vai ser legal, além disso, o Rodrigo vai estar lá. Você sabe que ele é amarradão em você desde a sétima série. Existem muitas garotas aqui no campus que se atracariam para ficar com ele. O que você acha de dar uma chance ao rapaz?

– Eu acho que as garotas deveriam se atracar por ele. Quem sabe a vencedora não consiga tirá- lo do meu pé?

Visivelmente irritado o rapaz retornou a atenção para a morena alta.

– Você por acaso é grudada na Liz, Fabiana?

– Eu…é…

– Poxa, eu posso te pegar no seu prédio hoje para irmos à festa. Tudo no maior respeito, eu prometo. Que tal?

– Não sei…eu… – Fabiana procurou os olhos verdes de Liz com os seus. A loirinha permanecia inabalável. – Não sei, Saulo.

O rapaz suspirou com impaciência.

– Tudo bem. Quem sabe um dia a Liz deixa você ter uma vida, afinal – disse e olhou para a jovem loira.

Olhos verdes hirtos e inflexíveis. Saulo saiu com o amigo.

– Você bem que podia ser um pouco mais simpática, Liz.

– Ele é um idiota!

– Ele foi gentil…

– Ele é um idiota.

– Liz!

– Ah! Está bem. Porque você não aceitou o convite dele para ir à festa?

– Eu…

– Mais da metade desses garotos dão ou vão dar em cima de você, Fabiana. Bom…os que podem passar da altura de suas orelhas, é claro. – Liz completou com um sorriso. – E você realmente não nasceu grudada em mim. Eu nunca gostei dessas festinhas tolas, você sabe, mas se você quer ir, poxa!, liga pro Saulo agora que ele vem mais feliz que filhote de cachorro atrás de você.

– Mas você não vai.

– E o que é que tem?

– Eu não sei lidar muito bem com esses garotos.

– Pelo amor de Deus, Fabi. Você já tem 20 anos! É linda de morrer. Está na universidade e pela primeira vez morando sozinha. Vá se divertir, mulher!

– Não vou me divertir se você não for. E…você acha que…eu sou linda de morrer?

Aff – Liz bufou. – Não! Esses caras ficam volitando a sua volta como abelhas no mel porque você é uma baranga!

Fabiana voltou os belíssimos olhos azuis para a sua amiga. Os cílios mais longos do que se poderia supor davam-lhe um ar ao mesmo tempo feminino e inocente. O exótico é que Fabiana tinha o rosto de linhas marcantes. Forte, mas harmônico e a boca larga e bem-feita parecia feita para uma infinidade de beijos longos e apaixonados. Sim…ela era linda!

– Eu ainda não me acostumei com isso, Liz.

– Você não vai me ter do seu lado para o resto da vida.

Fabiana baixou os olhos e falou baixinho:

– Não se eu puder evitar que você se vá.

Liz ouviu perfeitamente, mas fingiu que não entendeu. Encheu a boca de pizza fria com quilos de catchup. Ela não queria que Fabiana fosse à festa com aquele rapaz. Ela não queria sair do lado de Fabiana nunca em sua existência. Ela não queria que Fabi soubesse que os seus sentimentos eram muito mais do que o amor fraternal entre amigas. Ela não queria…Mas o que fazer com aquele fogo que ameaçava consumi-la cada vez que Fabiana passava só de calcinha na sua frente? Ou quando ela lhe pedia que penteasse seus longos cabelos negros? Um prazer que Liz prolongava ao máximo, acariciando disfarçadamente as mechas escuras, e que a deixava tão alterada que a fazia correr para o banheiro na vã tentativa de afogar sua perturbação no chuveiro com água fria? E se Fabiana descobrisse e a odiasse? Ela não suportaria. Entretanto, por quanto tempo ela aguentaria as coisas como estavam?

A pizza perdeu o gosto.

 

 



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