Desde sempre

Capítulo 12

Capítulo 12

1987

Alta madrugada e Liz despertou tremendo de frio. “Céus, não é que faz mesmo um frio danado neste lugar?”, pensou. Tentou enxergar onde estava a mochila para pegar um agasalho.

Lembrou-se de que ela estava do lado de Fabiana. “Droga!”

Pouco antes, Fabiana acordara com o desconforto do frio tomando as pernas longas. Passou a palmas das mãos sobre as coxas e as sentiu gélidas. “Se não fossem minhas eu seria capaz de imaginar que estas são as pernas de um cadáver”, pensou com um toque de humor mórbido.

Do seu lado, Liz aventava a hipótese de ficar no lugar e não correr o risco de acordar a amiga, mas com apenas, um leve movimento, seu joelho tocou o cobertor que parecia estar molhado de tão frio e isso, a fez pensar melhor. Moveu-se devagar e penosamente em direção à sua mochila.

Fabiana sentiu o movimento ligeiro da sua companheira de barraca, aproximando-se com cuidado. Ficou quieta.

A loirinha chegou o mais perto que pôde de Fabi e passou os braços por cima da amiga, tentando alcançar a mochila sem incomodá-la, mas no meio da empreitada, sentiu um calor gostoso que vinha do torso de Fabiana e sem maiores cogitações, deixou-se ficar um pouquinho, desfrutando daquela quentura confortável para, em seguida, aconchegar-se junto ao corpo de Fabiana, encolhida e aquecida. Suspirou e ficou imóvel.

Surpreendida, a morena não se moveu por um par de minutos, mas ao sentir o calor da pequena amiga paulatinamente diminuir o desconforto que o frio lhe causava, virou-se em direção a Liz encolhendo as pernas e a envolveu como uma concha. A posição lhe pareceu quente e confortável. Assim permaneceu.

Quase adormecida, Liz virou-se de costas de modo a melhor se acomodar recostada na amiga. Com um suspiro, Fabiana a envolveu, ainda mais achegada, e pareceu cair no sono. Foi nesse momento que a loirinha despertou repentinamente. É que se dera conta de que todo o corpo de Fabiana envolvia o seu. Podia sentir-lhe as pernas, o ventre e até, o leve movimento do tórax em cada respiração. Podia sentir os seios de Fabi em suas costas e o sopro do seu hálito no topo da cabeça. Não poderia dormir. Como dormir? Ficou momentaneamente tensa, mas a respiração pausada da melhor amiga a fez crer que Fabiana dormia, profundamente. Relaxou e desfrutou daquela incrível sensação. Ousou mover um pouco os quadris e se encaixar ainda mais na morena. Nenhum protesto. Liz sorriu de prazer no escuro e pensou se este não era um dos dias mais felizes da sua vida. Adormeceu em seguida.

A alvorada as recebeu abraçadas de forma inusitada. Ambas haviam mudado de posição durante a noite e nem assim se separaram.

Fabi despertou levemente, sentindo um peso agradável sobre metade do corpo. Foi quando se apercebeu de que tinha Liz acomodada no seu ombro, com o braço jogado sobre o seu peito e a perna em cima das suas. Ela, por sua vez, abraçava a amiga com os dois braços e descansava o queixo sobre a cabeça loira que lhe parecia sutilmente perfumada. Aquilo a intrigou muito, mas não ousou se mexer. A pequena amiga dormia um sono tranquilo e, na verdade, aquela posição lhe parecia inacreditavelmente aprazível. Ela que nunca havia dividido a cama com ninguém em sua vida.

O calor suave do sol nascente já tomava conta da barraca.

Fabiana ainda não havia se mexido quando sentiu um suave movimento de Liz e um nervosismo estranho lhe tomou o sossego, de tal forma, que de súbito, a morena empurrou a companheira e falou:

Mas você é uma folgada mesmo, né, Liz? Agora para dormir você tem que me matar sufocada.

Ainda sonolenta, Liz demorou um pouco para processar as palavras da amiga, mas como era de praxe, sua natural capacidade verbal se apresentou em um instante:

Querida – a loirinha falou com voz de professora de etiqueta. – Seria preciso três de minha pessoa para conseguir sufocar este seu corpinho de…eu diria de mamute, se os pobres paquidermes já não estivessem extintos.

Eu não sou gorda, Liz!

Tem razão, cara-pálida, tem razão. Imagino então que uma jubarte seja um bom exemplo.

Uma baleia?

Outro mau exemplo? Admito. Hum…Camelo? As corcovas poderiam ser esses seus peitões ultra-desenvolvidos.

Aaaaaargh! Você vai pagar caro, língua de trapo – Fabiana gritou pulando em cima da loirinha como uma horda de bárbaros.

Liz estava pronta para gritar um comentário jocoso, sobre como Fabiana adorava pular em cima dela, quando ao se debruçar sobre Liz, Fabiana desceu com os alegados peitões, justamente sobre o rosto da amiga, que sentiu na face a maciez firme de uma par de seios de endoidecer. Calou-se. Nem ousou se mover. O peso de Fabiana sobre si. O cheiro da pele acobreada, colada à sua. Os seios ao alcance da boca. Liz entreabriu a boca instintivamente… quando o sino para o café da manhã soou, convocando todos a se levantarem e fazerem a higiene matinal antes do desjejum.

Fabiana se levantou de chofre procurando a mochila. Liz ainda ficou deitada alguns minutos, esperando o coração parar de dar pinotes como um potro selvagem.

1993

No segundo dia do ano os dois casais se despediram dos pais de Taís e Caio e, seguiram viagem de volta para casa. Liz e Fabiana estavam de férias até fevereiro. Caio tinha que trabalhar e Taís conseguira ajustar todos os pacientes – era fonoaudióloga – para depois do dia 15 de janeiro. Assim, Fabiana foi para a casa da mãe, com a promessa de Caio de ir vê-la todos os fins de semana e, Liz e Taís combinaram os próximos dias no sul da Bahia, numa casa que Taís possuía em Trancoso.

Liz e Fabi mal trocaram duas palavras nesse meio tempo e na hora da despedida, deram-se um abraço rápido e insípido.

A loirinha foi para o passeio com a namorada com o firme propósito de investir naquela relação e exterminar com o fantasma adolescente, intangível, e impossível que lhe retirara durante muito tempo a chance de ter outra pessoa.

Fabiana foi para a casa da mãe para ter todo o tempo do mundo para pensar naquele beijo na praia e na declaração de Liz. Não sabia o que fazer. Liz era provavelmente a pessoa que mais amava no mundo. Não sentia vergonha em admiti-lo. O pai estava morto. E a mãe? Bom, a mãe era uma imposição da vida. Não que ela não amasse a mãe de uma forma enviesada, como tudo que o destino apronta, talvez por uma disposição cármica, para nos provar que o amor se faz presente mesmo nas situações mais adversas. Pois, esta mesma disposição cármica lhe trouxera Liz em quem, ela sabia, repousava boa parte do seu coração.

Sua Liz – aquele farol esverdeado que lhe indicava o porto seguro desde que se conheceram. Sua Liz – aquele sorriso resplandecente que lhe aquecia a alma em qualquer lugar que ela estivesse, que lhe acalmava o espírito em qualquer circunstância em que se encontrasse. Sua Liz namorava a irmã do seu namorado. Era lésbica! Liz havia dito que a amava…Que a amava! Não como uma amiga ou uma irmã. Disse que amava como…pensou no beijo. Não. Aquilo não estava certo. E, no entanto, aquele beijo fora tão macio e quente. Naquele momento, somente ela sabia, seu coração disparara como mil cavalarias e o estômago parecera fugir para algum lugar no vácuo espacial. Intenso, diferente, único…

“Não!”, balançou a cabeça como se pudesse expulsar assim o pensamento impróprio. “Deve ter sido o susto e a surpresa. Só isso”. Aquilo não estava certo. O certo era Caio. Tão terno e másculo. Boa família. Boa carreira. A mãe aprovava. Gostava muito dele. Era um bom namorado e seria um bom marido. Respirou fundo como se para firmar a convicção no que ponderava. Era isso! Quando voltasse das férias, falaria com Liz e desmancharia o equívoco da praia. Abriu a janela e sentiu os cabelos soprados para trás pelo vento brando da noite de verão. Olhou para o jardim pouco iluminado escondendo em sombras o verde das árvores bem cuidadas e, de repente, viu Liz aos dezesseis anos, numa tarde em um outro verão na chácara das freiras acenando com o braço em riste, orgulhosa e sorridente, depois da prova de remo. O vento varria os cabelos longos e loiros e o que se via era uma adolescente linda com os braços erguidos numa saudação vitoriosa sob o céu sem nuvens, brilhando um sorriso que transparecia a mais completa felicidade. Um sorriso que se dirigia a ela – Fabiana.

Uma saudade dolorida se instalou no peito da morena. Aquele fora o dia mais feliz da sua vida e Liz estava lá. Fabi havia imaginado que ela sempre estaria. Lágrimas lentas começaram a cair até se transformarem em choro abundante e incontrolável.

1987

Por volta das 9:00, os alunos do Externato São José e do Colégio São Tomás de Aquino chegaram. Os professores haviam preparado uma espécie de gincana que se pretendia divertida, mas que de fato escondia a imensa rivalidade atlética entre os colégios. Jogos de vôlei, futebol e queimada, prova de conhecimentos gerais e de precisão de arremessos, e, por fim, o remo no lago.

No decorrer do dia, as provas correram parelhas e, ao final das contendas, o desempate ficou para o remo.

A chácara não tinha daqueles barcos longos e rápidos de competição. Eram botes mesmo. Cada escola escolheria um campeão. Os dois colégios escolheram rapazes fortes e ágeis. Irmã Maria escolheu Fabiana. Os adversários sorriram confiantes. Era óbvio que, embora tão alta quanto os rapazes e sabidamente uma grande atleta, Fabiana era uma mulher. Alguns garotos da própria escola de Fabi ameaçaram um protesto. Impassível, Irmã Maria ignorou os comentários, anunciou a sua campeã e se sentou.

Liz sentiu o coração batendo na mão, mas algo na postura de Fabi colocando o colete salva- vidas a tranqüilizou. Aí estava: Fabiana era insegura em muita coisa, mas há muito tempo aprendera a confiar na sua inacreditável destreza física.

Liz observou a Irmã Luzia demonstrando à menina a forma de operar os remos com simetria e ritmo. Fabi escutava atentamente, bebendo as informações e assimilando sinergicamente os movimentos corretos. Depois, a morena passou os olhos pela torcida até encontrar os de Liz. A jovem loira tentou lhe retornar toda a força e confiança que conseguia.

Os competidores se prepararam.

Largada.

De início, Fabiana ficou para trás. Não conseguia encontrar o equilíbrio exato do barco e a perfeita coordenação das remadas. Os rapazes contornavam com força bruta qualquer falta de jeito e abriram uma boa vantagem logo nos primeiros metros. Mas, em instantes Fabiana entendeu a coisa e coadunando força, coordenação, ritmo e concentração começou a se aproximar. Seu barco deslizava cada vez mais rápido como se não precisasse de tanta energia como aparentavam necessitar os barcos dos outros competidores. Liz sabia que também havia força, e muita, nos movimentos de Fabiana, mas principalmente, havia menos desperdício. A loirinha via os músculos das pernas morenas flexionando e estendendo, fazendo esforço conjunto e coordenado com os braços morenos que se retesavam no esforço de cada remada. O rosto belo quedava-se concentrado e nem as gotas de suor abundantes que lhe escorriam pela fronte conseguiam modificar-lhe a feição.

Era realmente magnífico de se ver.

Liz abriu a boca em deslumbramento. O barco de Fabiana chegava cada vez mais perto e em poucos instantes as remadas cadenciadas sobrepujaram a força dos adversários que tentava desesperados não lhe permitir a ultrapassagem. Inútil. Firme e resoluta, Fabiana seguiu para uma vitória irretocável.

Gritos de alegria por todos os cantos. Colegas entravam na água para saudar a vencedora, para a loucura das freiras tentando conter os mais afoitos.

Liz não se moveu do lugar. Quando Fabiana olhou para ela, a loirinha apenas levantou os braços e sorriu luminosamente. A felicidade que Fabiana sentia era quase tangível. O sol brilhava. O mundo brilhava. Os olhos verdes de Liz brilhavam. Ah! Como a vida podia ser boa.

Á propósito, foi a única vez que alguém viu a Irmã Maria pular.

¹ Referência a Dr. John H. Watson, fiel amigo, companheiro de aventuras e narrador costumado das proezas de Sherlock Holmes, consagrado personagem do escritor britânico Sir Arthur Conan Doyle.

² Referência aos personagens da história em quadrinhos conhecida como Turma da Mônica de autoria de Maurício de Sousa.



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2017 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.