Desde sempre

Capítulo 13

Capítulo 13

1993

Liz chegou em casa no dia anterior à matrícula. Depois das férias na Bahia, a loirinha ficara no apartamento de Taís até a véspera de começarem as aulas. Era a primeira vez que entrava no cantinho que dividia com Fabiana, desde o final do ano.

O apartamento estava escuro. Liz deixou as malas no solo e avançou um pouco pela parede lateral, acendendo as luzes. Sem perceber, passou os olhos por todo o pequeno lugar num misto de apreensão e esperança. Ninguém. Negou-se a admitir uma pontinha de decepção, abrindo a janela com vigor desnecessário, para arejar o apartamento, há tantos dias fechado.

Sentia-se mais forte com relação à Fabiana. Na verdade, sentia-se mais forte com relação a Taís. O relacionamento delas estava muito bem e firme. Liz olhou para o porta-retratos sobre a pequena estante, com a foto dela e de Fabi, no último dia do memorável acampamento de fim de ano. A foto mostrava a loirinha sobre as costas de Fabi que a segurava de cavalinho. Ambas com um sorriso de pedir licença às orelhas. Liz pegou o porta-retratos e o visualizou mais de perto. Permitiu, então, emergir uma saudadezinha incômoda e onipresente como um mosquitinho de banana. De repente, deitou o porta-retratos e balançou a cabeça como a extirpar qualquer pensamento insidioso e, pior, reincidente. Pegou as malas. Deixou-as ao lado da cama e retirou apenas uma roupa de dormir. Foi tomar banho. Deitou-se sentindo um cansaço estranho como que antecipando um difícil embate emocional. Dormiu quase imediatamente.

Fabiana chegou bem tarde, por volta das duas da madrugada. Entrou o mais silenciosamente que pode. Depositou as malas ao lado da porta e imaginou se seria conveniente acender a luz. Decidiu ligar a lâmpada do banheiro que iluminava satisfatoriamente o recinto, mas não incidia diretamente em Liz que dormia. Tomou um banho rápido e se deitou com a discrição que lhe era peculiar. Liz não se moveu em nenhum instante. Deitada, Fabiana tentou vislumbrar a amiga através da penumbra. Só conseguiu enxergar a cabeleira loira que cascateava pelo travesseiro. Uma pontada fina de tristeza ameaçou encher-lhe os olhos de lágrimas, mas a morena respirou fundo e virou-se de costas para a amiga. Em alguns minutos, dormia.

Liz acordara no instante em que Fabiana pusera a chave na porta. Mas, preferira não se manifestar, embora sua respiração entrasse em greve bem naquela hora. Mumificou-se na cama. Uma covardia nova se instalara em seu peito tão acostumado a choques e perdas. Estava ali a única coisa que temia perder mais do que a si própria. Isso não mudara. Será que algum dia mudaria? “Ai, Deus. Deixe-me, Fabiana”.

O dia chegou com a inevitabilidade do encontro consciente. Moveram-se na cama como se tivessem combinado acordar no mesmo instante.

Fabiana falou primeiro.

– Bom dia.

– Bom dia.

– É…bem…como foram as suas férias?

– Ótimas, e as suas?

 – Na casa da minha mãe? Bom…Você sabe… – Fabiana falou erguendo os ombros.

Ficaram num silêncio constrangido por alguns minutos. Liz quebrou o constrangimento.

– Hora de levantar. Eu ainda não sei onde vou estudar este semestre.

– Puxa, eu também não e… – Fabiana não terminou a frase, Liz já havia se levantado com enorme rapidez e entrado quase correndo no banheiro.

Atrás da porta a loirinha tentava não chorar. Que droga de conversa fora aquela? Onde estava a alegria que sempre permeava o reencontro de ambas? Onde a brincadeira, as conversas intermináveis cheias de saudades e novidades? “Meu Deus, eu quero a minha Fabi de volta”. Mas ela sabia que nada mais seria como antes ou, na melhor das hipóteses, demoraria muito para que elas voltassem a ter novamente a mesma camaradagem. “Eu preciso tirá-la do meu coração. Eu preciso deixar de te amar, Fabiana. Eu não aguento mais!”.

As primeiras semanas passaram céleres junto com a quantidade de coisas que tinham que fazer. Liz pegara mais matérias neste semestre, mal tinha tempo para almoçar durante a semana. Fabiana entrara no período mais apertado do curso e ainda tinha que se esforçar para estar à disposição de Caio quando ele arranjava um tempo na residência médica. A relação entre elas entrara numa calmaria cheia de presságios de tempestade. Para evitar o pior, falavam-se pouco e sobre assuntos banais. O capítulo praia jamais era mencionado.

Taís, por sua vez, tentava não pressionar a namorada com relação à mudança, mas após a quinta semana sem que Liz sequer tocasse no assunto, a moça abordou o tema.

– Eu já tenho o apartamento preparado para ajeitar as suas coisas, Liz. Quando você pretende se mudar?

A loirinha quase engasgou com a pizza.

– Mudar?

– É, mudar. Aquilo que nós combinamos nas férias, lembra?

– Eu…é…Não tenho tido tempo, Tá.

– Eu posso contratar uma firma para fazer a mudança.

– Eu jamais aceitaria isso de você. Eu ainda estou pensando em como vou conseguir dividir as contas com você tendo em vista os meus parcos rendimentos. Você sabe que eu tenho a renda das minhas aulas particulares que dão para as minhas necessidades imediatas, e assim vou levando até me formar e conseguir algo mais…mas um apartamento daqueles, naquele prédio sofisticado, não sei…

– Não inventa moda, Liz. O apartamento é meu, você não vai pagar aluguel do mesmo jeito que não paga no alojamento da universidade. As demais despesas não são muito maiores do que o que você gasta agora, e eu deixo você na faculdade todos os dias antes de ir trabalhar. Isso está me cheirando a desculpa.

– Que desculpa, Taís! Apenas não é tão simples assim.

– Não é simples você deixar a Fabiana, não é mesmo?

– Pare com isso. Nós já discutimos este assunto, além disso, eu mal falo com ela.

– Então.

– Eu…

Tais cruzou os braços e olhou firme para a namorada, esperando uma resposta. Liz sentiu-se acuada como não se sentia desde a infância. A verdade era que ela sabia que o problema era mesmo Fabiana. Mesmo se encontrando tão pouco, mesmo trocando poucas e tolas amenidades, ela sabia que seu coração disparava quando via aquela cabeleira negra entrar no apartamento ou quando se levantava e Fabiana ainda estava em casa coando café de pijamas e o jeito tão típico com o qual ela abaixava a cabeça, olhava de lado e dizia bom dia com os olhos azuis tímidos fitando rapidamente e depois fugindo dos olhos de Liz. A verdade é que mesmo que ela quisesse com toda a força, mesmo que toda a sua razão gritasse para que se mudasse, ela não saberia dizer se realmente conseguiria viver longe de Fabiana.

– Eu…vou ver se dá para me mudar depois das primeiras provas, ok? Estou muito sobrecarregada por agora com todas essas matérias e tal, e eu preciso passar em todas para conseguir me formar mais cedo, você sabe.

– E quando serão essas provas?

– Abril – Liz falou baixinho.

– Abril ?!!! Mas nós estamos no início de março.

– Eu sei. Só que agora eu não posso mesmo, amor. Tenho que manter o foco e arranjar tempo para estudar, mais do que já o fiz em toda a minha vida. Eu me mudo depois das provas bimestrais, está bem? – Liz sorriu daquele jeito capaz de tirar leite de rochas.

Taís suspirou.

– Está bem, maaaaas, provas terminadas e eu quero você todos os dias acordando ao meu lado, entendeu, Dona Liz?

– Perfeitamente, Dona Taís. Riram juntas apaziguadas.

A vida de Liz e Fabiana seguiu no mesmo ritmo durante semanas. Liz não entendia muito bem porque continuava naquele apartamento com Fabiana. Por pouco não concordava com Taís de que vivia uma espécie de dependência espiritual. Fabiana era adulta, independente, namorava firme um rapaz que noventa e nove por cento das mães do mundo diria que se tratava de um bom partido e ela ali, indecisa, ponderando se deixava ou não essa pessoa para ir morar com uma mulher excepcional que a amava e respeitava. Não dava para entender mesmo. Precisava mudar aquilo.

Naquele dia, Liz saiu com a galera da faculdade. Brincadeiras, provocações mútuas e altas risadas a fizeram esquecer um pouco das duas mulheres de sua vida. Ao final da farra foi para casa. Fabiana ainda não havia chegado. “Deve estar com Caio”, pensou não sem a conhecida dose de sarcasmo. O pequeno apartamento lhe pareceu grande demais para a sua repentina solidão. Abriu a geladeira e encontrou uma garrafa de vinho tinto que deveria estar fazendo aniversário na geladeira. Na hora lhe pareceu uma boa companhia. Em quinze minutos já estava na segunda taça. Mais quinze minutos e o vinho, com os chopes de mais cedo, já a faziam chorar copiosamente, lendo uma poesia de Mário Quintana. Sentou-se na poltrona e praticamente desfaleceu, tonta de lirismo, tristeza e álcool. Fabiana chegou uma hora depois e se deparou com Liz, jogada na poltrona, com uma taça de vinho ao meio, deixada ao lado no chão. Seguiu reto, deixou a bolsa e os livros na cama e voltou para acordar a amiga, fazê-la tomar um bom banho e dormir em local adequado. Fabiana olhou para a Liz dormindo naquele abandono ao mesmo tempo confiante e desamparado dos bêbados. O cabelo loiro pendia tomando a grande parte da lateral da poltrona e a face relaxada do sono lhe conferia uma expressão de menina. Fabi se aproximou cheia de uma infinita ternura e tocou o rosto de Liz com cuidado e amor.

– Liz – chamou baixinho, abaixando-se em direção à amiga desacordada.

– Sabe o que eu queria fazer agora? – Liz falou de repente e como se estivesse acordada há tempos.

– O que? – Fabiana perguntou com um sorriso.

Liz abriu os olhos e abraçou com as mãos a face de Fabiana, tão próxima à sua, com imenso carinho.

– Dançar.

– Mas…não tem música.

– Mas, tem sim – a loirinha falou, passando uma das mãos pelo pescoço da morena e trazendo-a, devagar, para si. – Ouça – sussurrou antes dos seus lábios se tocarem. ¹

Beijaram-se.

De súbito, a morena se desvencilhou como se tivesse levado um choque.

– Pare com isso! Por que você insiste em fazer isso? Por que você não entende, pelo amor de Deus!?

– Sabe o porquê? – Liz falou já de pé e tomada por uma raiva já conhecida, mas nunca dirigida à sua Fabi.- Porque você não deixa.

– EU!!!?

– É. Você. Porque você diz com a boca, mas fala de outras formas para eu não te deixar. Para eu não deixar de te amar do jeito que eu amo. Me chama com os passos, com os olhos, com cada droga de gesto. E depois me rechaça, me abomina, mas me quer.

– Você está ficando louca, ou ainda está muito bêbada.

– Mesmo? – Liz foi se aproximando devagar. Contraditoriamente, a mulher vinte centímetros mais alta e muito mais forte foi se afastando até encostar-se à parede.

– Liz, você bebeu demais. Não está falando coisa com coisa.

– Sério? – a loirinha continuou a se aproximar até quase tocar Fabiana que se afastou de lado e sentou nervosamente na poltrona.

– Vamos conversar como duas pessoas civilizadas – falou passando as mãos nos cabelos negros. – Sente-se e resolveremos tudo como se deve.

– Vamos resolver, sim. – a loirinha falou avançando rapidamente e pousando ambas a mãos nos dois braços da poltrona, impedindo Fabiana de sair do lugar. – Vamos resolver agora! – disse chegando bem perto da boca de uma Fabiana assustada e mais excitada do que gostaria de admitir. – Diga-me, Fabiana Martins Couto, o que você mais anseia nesse momento?

– Quero que você saia de perto de mim.

– Jura? E o que é que você vai fazer com o seu coração disparado e com os seus olhos que não conseguem ver nada além da minha boca?

– Porque a sua boca é única coisa que eu consigo ver. Agora saia da minha frente, Liz.- Fabiana disse fechando os olhos e empurrando Liz com as mãos.

A loirinha firmou ainda mais os braços no encosto da poltrona.

– Saio, sim. Saio quando você confessar.

– Confessar o que, meu Deus?

– Confessar que, no fundo, você sente muito mais do que uma grande amizade por mim.

– Eu não sei do que você está falando.

– Eu estou falando disso.

Liz pegou o rosto de Fabiana com força e a beijou com raiva. Fabi tentou empurrá-la, mas algo na urgência e fatalidade daquele momento, fez com as forças da loirinha se multiplicassem e ela sequer saísse do lugar. As bocas se fundiram como metal incandescente. Fluidas, naturais. Fabiana parou de lutar. Parou de pensar. As suas mãos longas envolveram o pescoço de Liz que se sentou no colo da morena sem pestanejar. Fabiana passou os braços pelo dorso da pequena loira e a trouxe para si. Foi um daqueles beijos perfeitos, quando os lábios se unem em tal confluência que parece que nunca estiveram separados, completam-se e exaurem-se.

Fabiana entrou com as mãos por baixo da camiseta de Liz e viajou a mão pela barriga irretocável com se quisesse ter feito isso toda a sua vida. Liz agarrava a morena pelos cabelos da nuca e sentia o corpo inteiro palpitar num desejo exasperado. Sem raciocinar, Fabiana buscou o seio da loirinha. Abraçou-o inteiro com a mão. Liz gemeu e trouxe o corpo ainda para mais perto da morena movimentando-o sensualmente.

De repente, Fabiana se levantou quase jogando Liz no chão.

– Não! Isso não está certo. Nunca mais se aproxime de mim!- Fabiana gritou e saiu batendo a porta.

 



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