Desde sempre

Capítulo 16

Capítulo 16

2007

O escritório da casa de Fabiana (por algum motivo ela preferira fazer a entrevista em sua residência) era sóbrio e confortável, embora deixasse transparecer um luxo discreto em sua simplicidade. Liz sentou-se numa das poltronas de couro, de frente para a imensa porta de madeira que separava o recinto de uma das salas da mansão. Liz tentava contornar o nervosismo, observando minuciosamente os objetos decorativos que compunham o ambiente.

O barulho de passos e vozes fê-la levantar-se imediatamente da poltrona. Estremeceu. Fabiana vinha caminhando vestida com roupa de equitação acompanhada do secretário que anotava cada recomendação que vinha da sua boca. O tempo havia sido pródigo com ela.

Fabiana estava mais linda do que jamais fora. Continuava com o mesmo porte atlético, evidenciado pelas calças de montaria coladas nas pernas longas e fortes, mas o rosto perdera os contornos arredondados da juventude e agora detinha um corte anguloso, preciso e que talvez se diria ríspido, se não fosse suavizado por formas tão equilibradas e femininas que a faziam certamente uma beldade.

Fabiana sempre fora linda, mas a maturidade a tornara belíssima.

Além disso, havia nela, agora, uma aura de segurança e decisão. Cada ordem ou simples pedido pareciam cercados de uma autoridade tão natural quanto a delicadeza que sempre cercara os seus mínimos gestos. Então, a morena retirou o chapéu, desfez o coque e soltou os longos cabelos pelos ombros, num gesto tão peculiar que Liz se arrepiou imediatamente. “Não é possível, não depois de tanto tempo”, a loirinha pensou consciente de que repetia uma sensação antiga e praticamente esquecida.

Foi então que Fabiana a viu. Nos olhos azuis reluziu algo como um susto. Daquele tipo de sobressalto que nos ocorre mesmo quando já esperamos por algo e, mesmo assim, aquilo nos surpreende incontrolavelmente.

Para Liz, embora detendo a vantagem de ver Fabiana antecipadamente, fitar aqueles olhos novamente assemelhou-se a um soco bem aplicado na boca do estômago. Etou-se com a sua ansiedade e intimamente se recriminou. De imediato, assumiu uma face profissional e aguardou a presença de sua entrevistada com uma serenidade erigida por anos de ofício.

Fabiana dispensou o auxiliar e caminhou para Liz com uma firmeza e cadência que disfarçavam o seu coração em disparada. Como sua Liz estava bonita, segura e serena! Ela pouco lembrava a adolescente ativa, mas um tanto agressiva que fora a sua melhor amiga. Ali estava uma mulher cheia de uma confiança madura. Os cabelos, agora curtos, evidenciavam ainda mais os traços delicados e os olhos verdes que ainda continuavam tão francos e diretos de como ela se lembrava. Fabiana já havia se informado sobre Liz. Sua pequena amiga era agora uma jornalista respeitada. Estava para lançar um livro. Não fora difícil justificar porque ela a exigira pessoalmente.

O que Fabiana não sabia era que Liz se esforçava sobremaneira para aparentar tranquilidade. Esperara ficar um pouco inquieta e mesmo desconfortável com este encontro, mas não imaginara chegar ao ponto de perder o ritmo da própria respiração. Inspirou e expirou compassadamente e se acalmou. Mais um benefício que os anos de yoga lhe proporcionavam num instante tão perturbador.

Fabiana parou na frente de Liz.

Independente do medo de como seria recebida, principalmente depois da forma com que fora embora da vida de Liz há anos atrás, Fabiana exibia um sorriso quente ainda que um pouco trêmulo.

Liz não sabia o que fazer. Ali estava a melhor amiga que já tivera em toda a sua vida. Ali estava mulher que amara e desejara, alucinadamente, por tanto tempo que não se lembrava de uma outra época em que não tenha amado Fabiana. Ali estava a pessoa que a ferira de modo tão avassalador que nem anos de terapia, trabalho e a certeza de ser ignorada, sepultaram o sentimento antigo e incômodo que ainda lhe acompanhava, como lhe confirmava agora o seu coração opresso.

E, no entanto, ali estava ela tendo que elevar a cabeça de novo para olhar Fabiana nos olhos e mais uma vez sentir-se em pleno afogamento.

Não era possível! Não mesmo! Firmou o pensamento em algo concreto como as regras confortáveis da urbanidade, mas antes que estendesse a mão num cumprimento civilizado, Fabiana a abraçou. Liz ficou imóvel por um momento, surpresa. Mas Fabi envolveu-a com seus braços longos, colocando o queixo na cabeça loira com aquela velha intimidade, há tempos esquecida, e Liz a abraçou pela cintura aconchegando a face no peito largo, aspirando o cheiro gostoso do colo de Fabiana.

Parecia um sonho. Fabiana não sabia o que sentia com mais intensidade: vontade de rir, de chorar, de abraçá-la mais forte ou de beijá-la continuamente. Apenas sabia que gostaria de que o tempo lhe concedesse uma réstia de eternidade naquele exato momento. Só um pouquinho…

Liz fechou os olhos e permitiu-se aninhar novamente naqueles braços outrora tão queridos, mas uma avalanche de sentimentos que ameaçou escapar-lhe do peito, dando saltos perigosos e mortais sobre a sua razão e, principalmente sobre a sua mágoa que, ressurgida, bradava indignada bem do meio da garganta, a fez enrijecer imediatamente e pôr fim àquele idílio de primeiro encontro. Separou-se de Fabiana e ameaçou um cumprimento mais formal que, no entanto, saiu um tanto brusco.

– Oi, Fabiana, como vai?

– Eu…muito bem, obrigada. Você…seus cabelos estão curtos – Fabiana respondeu meio atrapalhada.

– Pois é. Mas…você não acha que ficou bom?

– Não! Quero dizer, eu adorava o seu cabelo longo, mas ficou muito bom, muito bom mesmo. Você está linda…

Liz ficou um tempo sem saber o que dizer, mas emendou o que lhe veio à cabeça.

– Obrigada. Você está mais forte.

– Ah, é. Exercícios. Equitação e kick boxing.

– Você lutando? Gostaria de ver isso. – Fabiana riu.

– Eu pratico há alguns anos e ao contrário do que você possa pensar, eu sou muito boa.

– Não duvido. Você sempre foi muito boa em tudo que se propôs a fazer.

– Você me conhece bem.

Este comentário fez Liz enrijecer-se e imediatamente procurar se lembrar do motivo de sua visita.

– Isso me lembra do que vim fazer aqui – falou com voz neutra e profissional.

Claro – Fabiana respondeu polidamente, escondendo a decepção com a mudança do rumo da conversa por trás do melhor verniz social. – A entrevista.

– Isso, a entrevista.

– Bem, Liz, acredito que você esteja ciente de que a revista achou interessante e eu concordei em fazer, não apenas uma entrevista, mas uma série de reportagens sobre mim e a fundação.

– Sim, eu estou ciente. As reportagens sairão em quatro edições seguidas abrangendo desde aspectos da sua vida pessoal até a sua atuação à frente da Fundação Hathaway nos últimos tempos.

– Exato.

– Isso será muito bom para a revista, você sabe. Diversas publicações no mundo inteiro tentam uma única entrevista de meia página com você há anos.

– Não gosto de publicidade vazia e muito menos de assédio à minha vida íntima. Se alguém quer saber sobre a fundação, tenho excelentes equipes formadas apenas para prestar este tipo informação.

– Certo…Então, porque agora? – Liz perguntou de chofre e quase dizendo: “Por que comigo?”.

– Eu… – Fabiana hesitou, mas sorriu de modo cativante e falou pendendo a cabeça para o lado de um modo tão seu e que Liz jamais se esqueceria nem que vivesse duzentos anos. – Nós não podemos fugir para sempre, não é mesmo, Liz?

– Certo… – Liz concordou debilmente, abaixando a cabeça e se sentindo estranhamente embaraçada. – Bem, por onde vamos começar, Fabi…ana?

– Eu acredito que você tenha um roteiro.

Liz assentiu com a cabeça e Fabiana continuou:

– Eu gostaria apenas que começássemos a falar primeiramente sobre os projetos que pretendemos implementar no Brasil para depois adentrarmos a minha vida pessoal. Eu gostaria de me ambientar primeiro. Não estou acostumada a falar sobre mim.

– Eu sei… – Liz falou baixinho e Fabiana preferiu ignorar o comentário, embora seu coração tenha doído apertado no peito.

– Amanhã, então? – Fabiana perguntou.

– Pensei que fôssemos começar agora.

– Desculpe, Liz, não posso. Tenho uma audiência com o governador daqui a uma hora e de tarde, vou a uma reunião rápida em Brasília com representantes de algumas organizações que pretendem uma parceria com a fundação. Amanhã, ao mesmo horário, você pode?

– Claro, Mrs. Hathaway, eu estou a sua inteira disposição – Liz não conseguiu evitar um tom de ironia.

– Eu…pode ser em outro horário, se você quiser, Liz – Fabiana disse com o antigo rubor de timidez tomando-lhe o rosto.

Liz se arrependeu na hora, menos pela possibilidade de ofender a pessoa que representaria o maior furo de reportagem da revista em que trabalhava (entrevista pela qual o seu editor daria um dos olhos de bom grado, isso para não lembrar do acréscimo considerável em seu currículo de jornalista) e mais pelo fato de descobrir que a mínima possibilidade de magoar Fabiana ainda a feria sensivelmente. Levantou-se um pouco contrariada.

– Não. Este mesmo horário está ótimo. – Fabiana levantou-se também.

– Então, até amanhã, Liz.

Liz apertou a mão estendida e preparou-se para sair com Fabiana a acompanhando educadamente.

– Não precisa me acompanhar, Fabiana. Você tem um compromisso importante em poucos minutos. Eu conheço o caminho. Eu a vejo em breve – Liz falou rapidamente e seguiu a passos firmes para a porta.

Não olhou para trás. A proximidade de Fabiana a deixava nervosa. Contudo, até que o primeiro encontro não fora tão mal assim, pensou. Imaginara de tudo nos últimos dias. Desde chorar constrangedoramente, até dar um soco bem no meio do rosto de Fab…Mrs. Hathoway. Ou mesmo agir com um profissionalismo impassível e impressioná-la com sua frieza. Bem… nada disso acontecera. Eram duas mulheres adultas agora. Seu lindo e infeliz amor de juventude era apenas isso: um amor de juventude. Liz respirou fundo e ligou o carro bem menos apreensiva do que quando chegara, mas um pouco mais triste.

**********

Liz chegou alguns minutos mais cedo e ficou aguardando sua entrevistada no mesmo escritório do dia anterior. Pouco tempo depois, ouviu a gargalhada rara e cristalina de Fabiana, que se aproximava, falando ao celular. Ela parecia relaxada e se divertindo muito porque avistou Liz e pediu com um gesto brando que ela aguardasse um pouco. Fabiana falava em inglês e com um sorriso terno pairando nos lábios. Não estava com a roupa de montaria.

Ostentava um vestido leve de verão que lhe caía com graça e elegância, sandálias de salto igualmente despojadas, mas exalando bom gosto, cabelos soltos brilhantes e uma maquiagem tênue. Fabiana nunca precisara de muita maquiagem, pelo contrário, seus traços já eram marcantes, seus contornos precisos. Seria redundância.

Fabiana desligou o telefone celular.

– Desculpe-me, Liz, era um querido amigo com quem não falava há muito tempo. Liz apenas meneou a cabeça condescendente e perguntou:

– Podemos começar?

Por favor – Fabiana respondeu reparando no jeans claro e na blusa de alças que a jornalista usava. Liz se vestia de forma simples e correta como sempre, além de parecer muito mais jovem do que Fabiana sabia que era sua idade. Na verdade, o corpo perfeito de Liz ganhara mais justeza e equilíbrio com os anos e os cabelos curtos, cuja franja lhe caía constantemente sobre os olhos, lhe conferiam um ar de menina sapeca para quem só faltava o sorriso. E Liz sorrira tanto em outro tempo… contudo, nos últimos dois dias e até agora, Fabiana não tinha avistado nem a sombra de um sorriso.

– Muito bem – Liz ligou o gravador e começou com as perguntas.

– Sra. Fabiana Hathaway, a Fundação, antes da gestão de Eric Hathaway e posteriormente com a sua própria, possuía uma clara intenção de apoiar projetos ligados à produção cultural erudita e agora, possui uma tendência principal voltada para a educação global de jovens carentes em diversos países do chamado terceiro mundo. Por que a mudança?

– Antes de mais nada, Liz, devo dizer que a Fundação ainda apoia a produção artística dita erudita, mas, de fato, esta já não é a principal convergência de nossa atuação. Eric pensava, e eu também penso, que a educação é a maior porta para a emancipação das pessoas e, através delas, dos povos. É, efetivamente, uma prática de liberdade que tem o condão de abrir as portas para uma vida melhor.

– Mrs. Hathaway, são mais de vinte anos de Fundação e quase cinco anos sob a sua direção, por que somente agora o Brasil, sua terra natal, é privilegiado com a atenção da Hathaway Foundation?

– Boa pergunta, Liz. A verdade é que quando a fundação mudou seu foco de atuação, nós direcionamos os nossos esforços primeiramente para o continente mais pobre do mundo: a África. Porque Eric acreditava que todo o mundo, especialmente Europa e América, possui uma enorme dívida para com aquele continente. Não obstante, chegaríamos indubitavelmente na América Latina e no Brasil, não somente porque é o meu país natal, mas porque o Brasil tem um problema histórico crônico de vilipêndio à importância fundamental da educação. E aqui estamos.

Liz balançou a cabeça aparentemente satisfeita com a resposta e já abria a boca pra fazer a próxima pergunta quando Fabiana continuou:

– Pessoalmente, contudo, eu compreendi que já era a hora de voltar pra casa. Melhor. Já era hora de resgatar a minha casa.

Liz olhou imediatamente para Fabiana, não somente pelo comentário intrigante, mas pelo tom com que ela fizera aquela declaração: terno, aveludado, quase uma carícia. Liz baixou os olhos encabulada. Estava louca para perguntar o que Fabiana entendia por sua casa, mas sentiu que estaria pisando em terreno minado.

– Certo. – comentou lacônica. Quais são os principais projetos nos quais a fundação está engajada agora no Brasil? – continuou.

Fabiana não conteve uma leve expressão de desapontamento, mas rapidamente começou a discorrer sobre o que Liz perguntara. O restante da entrevista transcorreu pautada nos projetos da fundação. Uma hora depois, o secretário pessoal de Fabiana se aproximou discretamente.

– Mrs. Hathaway, o motorista já a está aguardando.

– Obrigada, Simon. Mais uma vez peço desculpas, Liz, mas tenho um compromisso daqui à pouco.

– Com um senador ou um ministro, Mrs. Hathaway? – Liz perguntou de repente, imitando o sotaque pomposo de Simon, reempossada de seu antigo humor preciso e sarcástico.

Deliciada, Fabiana gargalhou sonoramente.

Por sua vez, Liz apreciou com mais prazer do que admitiria aquela risada de poucas e caras lembranças e, olhando para aquele rosto antes tão amado aberto num sorriso largo, de olhos fechados e com a cabeça levemente jogada para trás, Liz sentiu uma imensa ternura invadir-lhe o coração. E foi tão forte e inesperado este sentimento que Liz percebeu lágrimas lhe virem aos olhos. Um bolo lhe obstruiu a garganta, um peso esmagou-lhe o peito. A loirinha levantou- se num salto, balbuciou despedidas apressadas e saiu como se corresse de uma sala de tortura.

Liz entrou no carro e partiu um pouco atordoada com o que sentira. Já não achava que estava tão segura assim de sua frieza de ânimo. Alguns quarteirões depois, parou o carro sentindo a respiração difícil como se estivesse com um ataque de asma. Ainda com as mãos no volante e os olhos verdes assustados, começou a soluçar devagar. Segundos mais tarde, chorava incontrolavelmente.

 



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