Desde sempre

Capítulo 2

Capítulo 2

1985

Daquele dia em diante, Liz e Fabiana tornaram-se nomes inseparáveis. Onde estava uma estava a outra. E que insólita dupla elas formavam.

Liz, pequena e de feições delicadas, já era mulher feita. Seios perfeitos, cintura marcada, quadris arredondados – coisa que nenhuma menina da classe ainda tinha com aquela exuberância e que as faziam olhar para Liz com inveja e aos meninos cortejá-la sempre que podiam, ainda que sob o constante perigo de esbarrar em seu gênio terrível e em sua língua ferina.

 

Fabiana, aos 13 anos, passava um palmo da cabeça das meninas de sua idade, ainda não tinha sequer uma sombra de seios, conservava o corpo reto e magro da infância, era extremamente desastrada e usava um par de óculos de grau que deformava o seu rosto como uma máscara de armação negra. Umas figuras! Mas que, aparentemente, se bastavam.

 

Por fim, os colegas se acostumaram à pequena atrevida de roupas de segunda mão e à adolescente grande e lisa como uma porta andando sempre juntas. O ano passou célere. No último dia de aula, com os resultados finais na mão, Liz e Fabi conversavam na cantina do Seu Aldo.

 

– Puxa, Liz, você foi a primeira da classe. Não! Você foi a primeira de todas as séries. Você é tão inteligente. Queria ser assim também…

– Eu sou bolsista, Fabi. É minha obrigação ser a primeira. Eu tenho que fazer jus à caridade das irmãs. Ou você acha que uma “pé rapado” como eu poderia estudar num colégio como este de outra forma. E você é muito inteligente. Só não tem confiança em si mesma. Você tem um enorme potencial aí escondido em algum lugar e quando ele desabrochar, eu quero estar presente para ver e aplaudir.

– Ah, Liz…Eu queria ter essa certeza.

– Não duvide. Eu não sei quem colocou na sua cabeça que você é fraca e dependente, mas eu olho pra você e vejo uma pessoa extremamente forte e corajosa, louca para se libertar. É uma questão de tempo, Fabi, eu sei.

 

Fabiana olhou para a sua melhor amiga com imensa ternura e falou:

– E eu, Liz, vejo em você uma pessoa extremamente forte e corajosa que esconde em algum lugar uma ferida profunda e que um dia vai ter confiança em mim o suficiente para me contar.

 

Liz olhou com surpresa para Fabiana e depois baixou o rosto, extraordinariamente muda. Fabiana pôs a mão em cima da mão da amiga.

 

– Liz…você nunca quis me levar em sua casa e nunca aceitou um único convite para visitar a minha. Por que?

 

Liz abriu a boca para emitir mais uma desculpa esfarrapada, mas se calou. Respirou fundo e disse:

 

– Primeiro, eu não tenho casa, tenho um quarto minúsculo e desconfortável e segundo, quanto a sua casa, talvez um dia, Fabi – sorriu tristemente e depois exclamou mais alto do que o normal. – Ei, hoje é último dia de aula. Suponho que tenhamos que festejar. Ei, Seu Aldo, uma rodada de coca-cola e uma porção gigante de batatas fritas.

 

A conversa parou por aí. Fabiana foi para casa e depois para as férias de verão na casa de praia. Liz ficou em seu quartinho perto do colégio e todos os dias passeava pelo parque da cidade caminhando e pensando em quantos dias faltavam para as aulas recomeçarem.

 

O primeiro dia de aula após as férias de verão foi como o esperado: vozes animadas por todos os lados jorrando novidades, bronzeados, cortes de cabelo, namoros sérios ou inventados, mas tendo sempre, sempre presente, a felicidade do encontro com os amigos depois de meses de separação.

 

Liz chegou muito cedo ao colégio, quase não dormira durante a noite de tanta ansiedade. Notou a entrada de Fabiana no exato momento em que ela adentrou o lugar. Levantou-se de onde estava sentada com o coração aos pulos. Viu Fabi percorrer o lugar com seus olhos guarnecidos por lentes grossas e teve o prazer de ver a boca de sua amiga abrir-se num sorriso quilométrico quando notou sua figura franzina no canto do pátio. Um aceno e um sorriso e tudo estava como sempre.

 

Não pararam de conversar o dia inteiro. Parecia que o dicionário não continha palavras suficientes para tudo o que tinham que contar e dividir. Trocaram bilhetinhos durante as aulas. Tagarelaram nos intervalos, no recreio, na missa de boas vindas. Riram por qualquer motivo.

Despediram-se, ao final do dia, contrariadas como se ainda tivessem meio mundo de assuntos sobre os quais tratar, mas felizes, muito felizes.

 

No dia seguinte.

 

– Ôôô, Fabi. Tem quase meia hora que você está dentro desse banheiro. Eu acho que a gente já perdeu o recreio. Ai, e eu tô com tanta fome. Agora é rezar pra chegar logo a hora do almoço. Fabi! Fabiana! Você está me ouvindo?

 

– Uma voz fraca, quase inaudível veio do banheiro.

– Tô.

– Então sai daí, menina.

– Não posso.

– Por que? Ah, não! – Liz perguntou baixinho junto à porta. – Você está com piriri, amiga?

– Não…

– Molhou o uniforme ou coisa parecida?

– Não.

– Então, o que é, Fabiana?!

– Eu tô com vergonha de falar.

– Mas do que você sentiria verg…Peraí! Fabi?

– Hum.

 

– Você menstruou?

– Ai, meu Deus! Que vergonha!

Fabi…

– Ai, meu Deus! O que eu faço agora, Liz?

– Calma. Primeiro, você se sujou?

– Não, quero dizer, espera um pouco…Acho que não. Eu notei na hora em que fiz xixi.

– Menos mal. Vamos ter que achar um absorvente para você.

– Não conte pra ninguém, pelo amor de Deus!

– Mas eu tenho que contar pra as irmãs, Fabi. Como eu vou conseguir um absorvente?

– Liz! – a voz foi categórica. – Se você contar pra alguém, eu nunca mais saio deste banheiro, entendeu? Não com vida.

– Vira essa boca pra lá! Hum…Deixe-me pensar. Epa! Acho que estamos salvas. Não saia daí. Fabiana só bufou. “Como se eu pudesse ir pra algum lugar”.

– Liz correu para a sala vazia, evitando habilmente as freiras que vigiavam os corredores durante o recreio. Foi até a sua mochila e de lá tirou uma bolsinha pequena e amarela. Voltou mais rápido ainda.

– Fabi…- chamou sussurrando como uma espiã da resistência francesa.

– Tô aqui.

– Toma.

Fabiana abriu uma fresta pela porta e pegou a bolsinha de Liz.

– Aí tem um absorvente que eu não usei da última vez. Você sabe como usar?

– Acho que sim.

– É só desembrulhar e colocar na…

– Eu sei onde colocar, Liz!

– Tá bom, tá bom.

 

Poucos minutos depois, Fabiana saiu do banheiro. Bem a tempo de o sinal tocar a volta às salas. Os corredores se encheram de alunos instantaneamente. Fabiana passou as mãos pela saia plissada e deu uma volta.

– Eu estou bem?

– Como se nada tivesse acontecido.

– Ufa!

 

Foram andando para a sala.

– Fabi?

– Hum.

– Você vai contar para a sua mãe?

– Nunca!

– Mas ela vai descobrir de qualquer jeito.

– Ela que descubra, mas não por minha boca. Continuaram andando pelo corredor.

 

– Fabi?

– Que?

– Você agora é uma mocinha.

– Ora, Liz, cala a boca! – Fabiana exclamou alto com o rosto em fogo. Os colegas ao lado viraram o rosto para ela, atraídos pelo tom alterado de sua voz. Fabiana abaixou a cabeça mais envergonhada ainda. A loirinha mal continha o riso. A garota mais alta curvou-se um pouco e falou baixinho.

– Você me paga, Beverlly Hills.

– Olha o golpe baixo!

– Ouse abrir a boca novamente.

– Sem comentários.

– Promete?

– Prometo.

 

A pequena loira começou com um sorrisinho contido, depois segurou o riso com as mãos. Segundos depois, ambas eram repreendidas pela freira responsável pela disciplina por causa das gargalhadas no meio do corredor. Mais tarde e durante muitos anos elas dariam muitas risadas desse episódio.

 

**********

 

– Anda logo, Fabi, senão vamos chegar atrasadas e daí será outra bronca de meia hora na minha orelha.

– Ai, Liz. Eu odeio as aulas de Educação Física.

– Não sei porque! É a melhor aula. A professora é bacana. A gente pode gritar, correr, pular e brincar sem medo de ser feliz.

– Fácil falar quando se é ágil e boa nos esportes como você.

– Tenha a santa paciência, Fabiana! Você é sonho de qualquer técnico de basquete ou voleibol. É jovem, alta, magra, mas naturalmente musculosa.

– Você esqueceu de desengonçada, desastrada e lenta.

– Conversa! A verdade é que você não tenta. Faz corpo mole. Deixa uma pirralha qualquer vinte centímetros mais baixa do que você te derrubar e desconfio que deixa escapar a bola toda hora e desperdiça boas jogadas de propósito só pra sair mais rápido do jogo. Estou enganada?

 

A morena virou o rosto e não respondeu.

 

Fabiana continuava muito magra e ainda mais alta que no ano anterior – o que a tornava mais destoante do que nunca perto das colegas. No entanto, curvas e formas femininas já começavam a se instalar devagar em seu corpo adolescente, prenunciando os contornos precisos que seu corpo teria no futuro.

 

Liz, que parecia já ter alcançado o máximo do seu crescimento, há muito que possuía de sobra toda a exuberante feminilidade de uma mulher feita. Mas, apesar do número considerável de meninos atrás dela, Liz pouco se afastava de Fabiana para o que quer que fosse.

 

– Ok, Fabi. Você sabe que hoje nós iremos jogar basquete. Vamos fazer o seguinte: eu vou dar um jeito de você ficar no meu time e você, dondoca, não vai deixar nenhuma moleca te derrubar com um empurrão que não derrubaria um velho perneta sem muletas.

– Ei!

– Escuta! Continuando… Bom, quando eu pegar na bola você vai correndo para debaixo da cesta adversária. Eu vou te passar a bola, eeeeeee…sem que você trate “la pelota” como uma batata quente embebida em manteiga, você vai girar este pequenino corpo que o senhor lhe deu e colocar a humilde bolinha laranja dentro da cesta. Combinado?

 

Fabiana pensou um instante.

 

– Depois disso, você vai parar de pegar no meu pé?

– Palavra de escoteiro.

– Fechado.

 

A aula foi uma arraso. Para a surpresa geral, Fabiana não desmoronou no chão uma única vez, correu com uma velocidade surpreendente e não deixou a bola cair. Melhor do que isso, foi a cestinha do jogo. Apesar da falta de técnica, ela tinha força e altura de sobra. A professora ficou encantada e, pela primeira vez em sua história estudantil, Fabiana foi cumprimentada com alguma camaradagem pelas colegas.

 

Fabi sorriu para Liz com uma alegria contagiante estampada no rosto. A loirinha apenas ergueu os ombros como quem diz: “Eu não disse?”.

 

Após este evento, foi como se abrissem as compotas de um rio represado. Fabiana evoluiu em progressão geométrica nos esportes. Subitamente ciente de suas potencialidades atléticas, demonstrou uma extraordinária capacidade de saltar, correr, arremessar e lançar. Antes do fim do semestre já era uma das melhores atletas do colégio, e melhor do que isso, a sua nova condição de promessa mais do que satisfatória para o Jogos Estudantis, alçou-a a categoria de pequena celebridade na escola.

 

Fabiana já era cumprimentada no recreio, chamada para lanchar com alguns colegas, era disputada no par ou ímpar para partidas de basquete e voleibol dentro ou fora das aulas de Educação Física. Queriam-na para o salto em altura, arremesso de peso, lançamento de dardo. A morena alta que jamais fora alvo de tanta atenção e apesar de sua timidez, estava adorando descobrir-se capaz de ser boa em alguma coisa bem como de ser aceita e até mesmo paparicada por quase toda escola.

 

Quase.

 

Fabiana saiu do laboratório de química fazendo ainda algumas anotações em sua prancheta. Não percebeu Anita e sua turma logo à frente.

– Ora, ora, se não é o godzilla magricela quatro olhos. Vocês acreditam, meninas, que ela agora é uma atleta? Mas que divertido. Qual será a modalidade? Existe competição de surf nos jogos? É claro que você seria o pranchão, não é, querida?

 

Risadas da turma de amigas de Anita. Fabiana, calada.

– Ou será que existe… – Anita ia continuar com a zombaria.

– Pisada em cabeça de cobra! A pontuação é máxima se numa pisada certeira, a peçonhenta ainda morder a língua e provar do seu próprio veneno – Liz falou encostada na porta do laboratório.

 

Risadas maiores ainda, desta vez da turma inteira. Liz passou a mão pelo braço de Fabiana e a puxou.

– Vamos – disse.

 

Quando já haviam passado por Anita, ignorando-a completamente, ela perguntou alto:

– Sua mãe já sabe desse seu atual pendor atlético, Fabiana?

 

Fabi enrijeceu-se imediatamente e parou no meio do corredor como que petrificada. Liz olhou para ela e viu o rosto da melhor amiga ficar pálido como cera.

– O que foi, Fabi?

 

A garota alta nem olhou para ela balançou a cabeça em negação e seguiu em frente sem uma palavra. Por mais que Liz tentasse, não conseguiu arrancar dela nem uma simples referência ao comentário de Anita.

 



Notas:



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