Desde sempre

Capítulo 3

Capítulo 3

1992

– Vai pra merda dessa festa, Fabiana!

– Eu não vou sem você.

– Eu não curto esse tipo de programa.

– Isso não vai te matar…

– Ah, vai, sim!

– …e vai me fazer feliz.

– Isso vai realmente te fazer feliz?

– Vai.

– Então, eu vou – A loirinha viu sua amiga abrir um sorriso maravilhoso. – Mas, se eu me cansar daquela barulheira, eu me arranco de lá.

– Combinado.

– E se algum idiota pegar no meu pé, eu vou te fazer sofrer por pelo menos uma semana.

– Muito justo.

– E se…

– Eu aceito!

– Ai, meu Deus…Tá bom, tá bom. Mas, eu tomo banho primeiro.

Fabiana deu um pulo para o colchão onde estava a melhor amiga, deitou-se sobre ela e encheu-lhe o rosto de beijos.

– Ai, Liz. Eu te amo. Eu te amo, Eu te amo.

– Fabianaaaaaaa! Você vai me matar esmagada. – Liz empurrou a morena para o chão. – Eu vou tomar banho.

A loirinha saiu apressada. Praticamente, correu para o banheiro e fechou a porta atrás de si com estrondo. O seu coração estava descompassado, o rosto vermelho e o corpo latejando em lugares inconfessáveis. “Isso não pode continuar assim, meu Deus”.

1986

Fabiana não compareceu ao colégio naquela segunda-feira. Liz passou todo o horário letivo ansiosa e preocupada. Ao final das aulas, dirigiu-se à sala da coordenadora e perguntou sobre a colega.

– Bom dia, Liz. A mãe da Fabiana ligou e disse que ela está acamada. Provavelmente, uma gripe forte. Ela voltará às aulas assim que melhorar.

Liz agradeceu e saiu cabisbaixa. Fabiana apareceria somente na quarta-feira.

Ela chegou atrasada, mas a professora não fez qualquer comentário. Liz percebeu que a amiga estava ainda mais magra e muito abatida. Fabiana sentou-se calada e apática. Sem jeito, Liz não lhe dirigiu a palavra até o recreio. Ao sinal do intervalo, Fabiana saiu na frente sem dar atenção à melhor amiga. Liz foi encontrá-la sentada em um dos bancos de madeira que ficava debaixo das árvores em um pequeno pomar no fundo do pátio. Liz sentou-se ao seu lado.

– Você está bem?

Fabiana só balançou a cabeça em anuência.

– Você ficou doente…Foi mesmo gripe? Você está muito magra e pálida. Está se sentindo mesmo bem?

– Eu estou bem.

– Olha, eu conheço um tanto de chás ótimos para isso.

– Eu estou bem…

– Você pode…

– Você quer me deixar em paz?!! – Fabiana gritou, furiosa.

A violência, talvez não das palavras, mas da forma como foram ditas desconcertou Liz a ponto de deixá-la boquiaberta. Seu rosto ficou tão lívido que Fabiana, que já se arrependera da forma como gritou com sua melhor amiga, ficou assustada.

– Liz, me desculpe. Eu…

Fazia muito tempo que ela não se sentia assim: atônita pela afronta de uma palavra dita para agredir. Não, ela não era tão suscetível assim, mas já vivera a sua dose de ferocidade na vida e isso sempre a deixaria alterada e mais ainda quando vinda de alguém contra quem ela não tinha defesa.

– Liz, por favor, eu não queria ter falado assim…Você não merece. Liz! Fala comigo. Me perdoa, Liz…

A loirinha olhou para a melhor amiga e falou devagar, mas com firmeza.

– O que aconteceu?

Fabiana esteve a ponto de negar o esclarecimento, mas respirou fundo e relatou:

– Eu não posso mais jogar em nenhum time do colégio e nem ao menos participar de qualquer competição de qualquer tipo. Estou proibida. E ainda tive que lutar muito para não ser dispensada das aulas práticas de Educação Física das quais participarei, mas sem entrar em nenhuma partida.

– Você não pode ser dispensada das aulas de Educação Física. A matéria faz parte da grade curricular.

– Eu sei, mas eu posso, como algumas colegas que você conhece, assistir às aulas teóricas e fazer apenas relatórios das aulas práticas em razão de incapacitação para a prática de exercícios físicos.

– Incapacitação? Mas você é forte como um touro!

– Minha mãe tratou de conseguir um atestado da minha fragilidade física – Fabiana disse e tirou da bolsa um papel que entregou à Liz. A loirinha passou os olhos pelo atestado.

– Mas isso não é verdade. Sua mãe não pode fazer isso!

– Você não conhece a minha mãe…- Fabi baixou a cabeça desconsolada.

Liz pôs a mão no ombro da amiga.

– Nós vamos dar um jeito, Fabi.

– Que jeito, Liz? Cada vez que eu gosto realmente de alguma coisa parece que a minha mãe consegue me arrancar aquele prazer da mão: “Isso não é coisa de moça de família” ou “Uma moça decente é recatada e discreta” ou … Ah! Não sei, Liz, às vezes eu acho que ela quer que eu seja infeliz.

A jovem loira sentou-se ao lado da morena e passou o braço por seus ombros como que para dar-lhe a certeza de que ela estava ali para ouvi-la e compreendê-la. Fabiana deu um suspiro.

– E eu gosto tanto de jogar. Acho que poucas vezes me senti mais feliz do que numa quadra jogando, vibrando, dando e recebendo apoio e energia. Até isso, uma coisa tão boa e saudável, eu não posso mais ter! – Fabiana terminou a frase com um soluço e lágrimas grossas começaram a cair de seu rosto abaixado. – Ah, Liz…

A loirinha somente abraçou a amiga e a deixou chorar mansamente. Quando Fabiana começou a se acalmar, Liz falou:

– Sabe, Fabi. Eu vou te contar uma coisa que você pode até julgar amoral, mas que infelizmente é a mais pura verdade: existem coisas que as pessoas das quais nós ainda dependemos não precisam saber. Calma. Não me entenda mal. Eu não estou dizendo pra você mentir para a sua mãe por mais que você considere os preceitos dela estapafúrdios e improcedentes. Eu estou lhe dizendo que, na maioria das vezes, a essas pessoas basta que elas tenham a impressão de que você não as contradiz. As pessoas vivem de aparências, Fabi, e se você quer sobreviver nesse mundo de hipocrisias, aprenda a transitar por ele. Sou capaz de apostar que se você nunca mais tocar no assunto com a sua mãe, simplesmente continuar jogando, mas tomando o cuidado para que ela não perceba que você não está agindo segundo o que ela considera uma donzela perfeita, ela não vai te perguntar nada. Simplesmente, minha querida, porque ela não quer se aborrecer com você. Ouviu? Ela não quer saber!

Fabiana enxugou as bochechas molhadas com a palma da mão.

– Não sei se eu consigo mentir.

– Não minta. Só não toque no assunto. Eu te garanto que ela não vai perguntar.

– Não sei…

– O que pode acontecer? Ela vai te dar mais uma bronca ou um sermão de duas horas? Vai te proibir de fazer Educação Física? Ora, com os primeiros você já deve estar acostumada e quanto às aulas, bom, do jeito que você vai ser obrigada a participar, elas não vão te interessar mesmo!

Fabiana pareceu pensar um instante e retrucou:

– A Anita pode me dedurar de novo para a minha mãe.

– Deixa a Anita comigo.

– O que você vai fazer?

– Somente deixe a Anita comigo! – Liz falou com veemência e dobrou o atestado guardando-o no bolso – Você não vai mais precisar disso, por enquanto.

Fabiana respirou fundo, acenou a cabeça em concordância e tirou os óculos para limpar as lágrimas dos olhos.

– Está bem, Liz.

Fabiana ergueu os olhos sem as grossas armações para a melhor amiga.

– Você é uma amigona mesmo, eu…

Liz não ouviu mais nada. Estava hipnotizada. Fabiana continuou a falar qualquer coisa que Liz nem se preocupou em decifrar. Uma onda azul havia lhe atingido o rosto com a força de um vagalhão de ressaca. A sensação era de afogamento. Ela não conseguia respirar. Fabiana continuava como um filme mudo sem legendas. Depois, a sensação de sufocamento foi substituída pela impressão de uma queda livre na imensidão celeste – uma mistura indescritível de pânico e fascínio. Foi nesse momento que Liz se deu conta de que via os olhos de Fabiana pela primeira vez. Foi aí que se deu conta, também pela primeira vez, de que estava perdida. Completamente perdida.

Cinco horas da tarde.

Anita Ávila separou-se de seu séquito de amigas e seguia andando com a costumeira soberba pela avenida principal da cidade, onde se situava o colégio. A avenida terminava na praça da igreja na qual se localizava a residência da família Ávila. Tratava-se de uma imponente construção que misturava sem muito critério, arquitetura colonial e clássica, como se a escolha dos estilos devesse-se muito mais ao fausto que as pudesse distinguir do que à harmonia das formas do edifício. Ao passar pelas escadarias do antigo cinema São José, Anita foi interpelada por uma mão pequena que a puxou pelo braço.

– Ai! Nossa, Liz, você quase me mata de susto! O que você quer?

– O que eu quero é muito simples e vai te custar menos que este susto: larga do pé da Fabiana.

O rosto de Anita tomou uma expressão de escárnio.

– Ora, ora. Parece que aquela porta de igreja precisa mesmo de um micro paladino para protegê-la como a um bebê chorão super desenvolvido.

– É o que os amigos fazem.

– Quanto a isso, não creio que você possa fazer nada. Eu apenas desempenhei meu papel de boa moça cristã ao contar pra Dona Eulália que sua filhinha anda mentindo descaradamente em casa.

– Por falar nisso – Liz não conseguiu evitar um sorrisinho ferino. – Eu também não poderei me furtar a cumprir o meu dever e informar não só à sua família como também à diretoria do Colégio o que você, este exemplo de boa moça cristã, anda fazendo no depósito atrás do ginásio.

Anita empalideceu.

– E-eu não sei do que você está falando.

– Eu estou falando dos amassos babilônicos que você dá no Rodrigo, isso se ele for o único, no depósito dos fundos do colégio. Nada cristão, não é mesmo…moça?

– Isso é um absurdo! De-depois, ninguém vai acreditar em você.

– É… Pode ser, pode não ser. Difícil mesmo será explicar como o Rodrigo conseguiu a posse de um soutien bordado com umas iniciais mais do que conhecidas na cidade e que foi descuidadamente deixado às pressas no depósito do colégio em um dia de particular azar em que a irmã Luzia achou por bem dar uma geral no lugar.

Desta vez, Anita ficou branca como cera.

– Rodrigo não faria isso.

– Apesar de se divertir com você – Liz falou com desdém. – Você sabe por quem ele é capaz de fazer qualquer coisa.

– O que você prometeu a ele, sua depravada?

Liz soltou uma risada alta e mordaz.

– Olha só quem fala. Escute aqui, garota – Liz mudou o tom para algo mais que ameaçador. – Deixe a Fabi em paz e sua reputação permanecerá intacta. Deixe-me saber que a sua língua de víbora a perturbou outra vez e a cidade inteira saberá com riqueza de detalhes das suas incursões impudicas pelos cantos escuros do colégio. Entendeu?

Anita abriu a boca para falar alguma coisa, mas não chegou a pronunciar palavra. O seu rosto era uma máscara vermelha e os olhos pareciam soltar faíscas de pura fúria. Olhou com ódio para Liz e seguiu caminho tentando andar com toda a dignidade que seu corpo trêmulo conseguia.

– Vou entender o seu silêncio como um acordo, Anita. Tenha uma boa tarde

Liz quase gritou e seguiu sorrindo para o outro lado. Não havia nada mais importante para pessoas como Anita do que a sua imagem. Fabiana não seria mais importunada.

 



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