Desde sempre

Capítulo 4

Capítulo 4

 

De fato, fora um ou outro comentário desagradável, Anita não azucrinou a vida de Fabiana durante o restante do ano.

E que ano!

A equipe do Colégio foi a campeã dos Jogos Regionais. Liz e Fabiana tornaram-se figuras populares e cada vez mais unidas. Muito mais segura e realizada, Fabi libertava os talentos desconhecidos até por ela mesma: além de uma atleta invulgar, ainda possuía natural liderança que a fazia comandar sem maiores contestações as equipes das quais participava. Em quadra ou no campo de atletismo, Fabiana era uma figura respeitada, firme e inspiradora, ainda que nas relações pessoais ela continuasse tímida e sua única amiga próxima fosse Liz.

Além disso, os meses descortinaram o florescimento do corpo feminino em Fabiana. Às pernas e tronco longilíneos sobrevieram as curvas harmoniosas e provocantes da cintura e do quadril. Seios firmes emolduraram o tronco e a postura de menina foi gradualmente cedendo espaço à de mulher. Liz observava essas mudanças com interesse tanto quanto os meninos que agora olhavam para Fabiana com outros olhos. Alheia a estas mudanças, Fabiana nem notava que os colegas lhe dirigiam a palavra amiúde e que não desgrudavam os olhos do seu peito enquanto conversavam.

– Fabi, você não está notando que os meninos não tiram os olhos dos seus seios? Aquele bando de tarados desavergonhados.

Fabiana olhou para Liz com seus grandes olhos míopes repletos de surpresa.

– Não tiram os olhos de…Ah! Liz. Os meninos nunca olharam para mim.

– Você disse bem. Nunca olharam, mas agora olham. Você não notou que a sua bunda triplicou de tamanho no último ano?

– Liz!

– Tá bom, tá bom. Eu exagerei, mas você mudou e muito, Fabi. Está na hora de você começar a aprender a lidar com os garotos.

– Ai, Liz. Eu não sei como fazer isso. Além disso, eu não me acho atraente…

– Com uns peitos desses, nem precisava ser.

– Liz!

– O que não é o caso. Você é muito bonita, querida – Liz falou com carinho.

– Você diz isso porque é minha amiga.

– Um dia você vai descobrir que eu não falo isso só porque sou sua amiga. Por enquanto, quando um desses tarados vierem conversar com você, exija que eles te olhem nos olhos, ok?

– Ok.

“E antes que eu arranque os olhos de todos”, Liz pensou não sem uma boa dose de raiva.

**********

– Nem vem! Eu vou ficar ridícula com um modelito desses!

– Ai, Liz. Eu sei que o vestido não é lá muito moderno, mas…

– Moderno?!!! Esse embrulho de ovo de páscoa cor-de-rosa? Isso é uma aberração da moda dentro de um baile ultrapassado e símbolo do domínio patriarcal. Essa coisa de apresentar a jovem de boa família, e naturalmente casadoira (eca!), à sociedade como se fosse carne de açougue é lamentável – Liz emendou o seu discurso com o rosto claro afogueado.

Calou-se ao perceber a expressão desolada da melhor amiga.

– Ah, Fabi, desculpa. Olha só…tudo bem se você quer essa coisa de festa de quinze anos, mas não conte comigo para ser uma das meninas que vão te acompanhar. Só pra te lembrar, você já me viu alguma vez de vestido?

– Não.

– Então.

– Mas, eu não entendo o porquê. Você tem um corpo tão lindo!

– Não faz o meu estilo, entende?

– Não. Tenho certeza de que você ficaria maravilhosa com um vestido ou uma saia. Tem a cintura incrivelmente fina e as pernas bem formadas. Não existe motivo para esta resistência.

– Não tenho costume. Na fazenda, você sabe…

– Você não mora mais na fazenda.

– É, mas e o costume?

– Muda-se.

– Eu realmente não gosto, Fabi…

– Abra uma exceção. Por mim.

Liz titubeou, mas retornou com uma firmeza que não sentia:

– Não!

– Caramba, Liz. Que intransigência! Nem por sua melhor amiga você abre mão de uma besteira dessa. Eu sei que você acha esta festa uma bobagem. Eu também acho e não me importaria se meus quinze anos passassem em brancas nuvens, mas é algo importante para a minha mãe e, sinceramente, há muitos anos eu não a vejo tão animada e nem tão delicada comigo. Tenho esperanças de que a gente se entenda melhor depois disso e… – Fabiana suspirou. – Aí eu venho pedir apoio para a minha melhor amiga e…ela me fala que não pode me ajudar porque não gosta de usar vestido.

Fabiana terminou de falar em um tom quase inaudível, mas notoriamente magoado.

– Não é isso, Fabi.

– O que é, então?

– Você não entende…

– O que eu não entendo, Liz?

– E-eu não posso.

– Por que, meu Deus?!

Liz fitou muda e tristemente a sua amiga por alguns segundos como se sopesasse alguma decisão. Fabiana não a interrompeu. De repente, Liz desabotoou a calça jeans e baixou o zíper. Baixou a calça devagar, com os olhos voltados para o chão. Girou o corpo, ficando de costas para Fabiana e subiu um pouco a camiseta que usava. Fabiana puxou o ar com força e susto.

– Meu…Deus…

As coxas de Liz até onde a calcinha deixava ver as nádegas e boa parte das costas eram rasgadas por cicatrizes como cortes rubros na carne alva.

– Liz…Meu Deus…O que é isso?

A pequena loira baixou a camiseta, subiu as calças, virou-se novamente para a morena e respondeu:

– Lembranças do modo de disciplinar crianças que o meu pai usava.

– Mas, isso é…

– Chicote. Na verdade, um látego de couro curtido que servia tanto para os cavalos quanto para os filhos.

– Como? Que absurdo é esse! Liz…por que você nunca me contou.

– Não é algo de que a gente se orgulhe – a loirinha disse com um meio sorriso triste.

– Esse homem tem que ser preso. Encarcerado. Não se faz isso nem com um animal.

Fabiana estava transtornada. Por baixo de seus óculos fundos, lágrimas escorriam enquanto ela falava entre soluços.

– Tudo bem, Fabi – Liz tentou minimizar.

Fabiana continuava a chorar. Liz se aproximou e a abraçou delicadamente.

– Eu estou bem, Fabi.

A jovem loira não chorou. Seu estoque de lágrimas já havia se escoado há muito tempo, e, no entanto, ali abraçada a Fabiana que tão sinceramente lamentava o seu sofrimento de infância, ela sentia um repentino conforto. Como se o abraço de Fabiana lhe concedesse um aconchego tão intenso, um lenitivo tão potente que a mantivesse, de alguma forma e pela primeira vez, longe daquelas lembranças amargas. Fechou os olhos e deixou-se desfrutar do alívio inesperado e da alegria de ter Fabiana em seus braços.

1970 – A história de Beverly Hills Mello

Geraldo, peão de fazenda, ignorante e analfabeto, viu pela primeira vez a foto dos coqueiros de Los Angeles em um calendário na mercearia do pequeno povoado perto da fazenda onde moravam. Encantado com a beleza da paisagem, perguntou ao dono da mercearia onde ficava aquele lugar.

– Num sei, não, Gerardo. Isso aí veio com o “úrtimo” carregamento de “parmito”.

Geraldo olhou novamente para a foto. Isso sim era um lugar para se viver. Bonito igual aos fogos de artifício que vira uma única vez num fim de ano em que fora para capital, ainda criança junto com o pai, para visitar a tia mais nova que morava na periferia de Goiânia.

Pediu ao dono da mercearia para ler o nome do lugar. Seu Joaquim pôs os óculos e leu as letrinhas no canto inferior da gravura.

– Ber…Berv…Bervelííí – leu em voz alta. – Ah, Gerardo, é um desses nome das “estranja”.

– Fala-se bérveli ríus, ignorante – corrigiu o filho do maior fazendeiro da região recostado no balcão gastando o resto da fortuna do pai na décima dose de pinga. – Fica nos Estados Unidos – completou.

Geraldo achou o nome tão bonito quanto o lugar, pediu para que o Seu Joaquim o escrevesse num papel e decidiu que seu próximo filho teria o mesmo nome daquelas banda lá das estranja.

Deu esse nome à menina que nasceu quase um ano depois, mas nunca conseguiu pronunciá-lo certo, nem a mãe, nem um dos nove irmãos. Quando a mãe passou a chamar a menina loira e franzina de Liz, todo mundo a acompanhou. Ainda que isso não fizesse muita diferença ao pai que nunca se dirigia a ela a não ser para ordenar alguma tarefa sempre inadiável ou para corrigi-la com surras impiedosas se ela não a executasse do jeito que ele gostaria.

Aos seis anos, Liz já se acostumara a descobrir pelos passos do pai se ele estava contrariado com alguma coisa e a se esconder dos seus olhos e do seu chicote até que ele se acalmasse.

Aos nove anos aconteceu algo que mudaria a vida da pequena Liz para sempre. Numa decisão inédita, o pai resolveu que os pequenos iriam para a escola para não ficarem tão jumentos quanto os mais velhos que eram analfabetos. Foi como se o mundo se descortinasse para a menina. As letras e os números viraram seus maiores amigos e em pouco tempo a loirinha apresentou uma imensa capacidade de aprender rapidamente. Encantada, a professora se ofereceu para lhe dar aulas particulares porque os colegas não a acompanhavam e ela estava sendo prejudicada por sua própria avidez.

– Carece, não, fessora. Basta ensinar essa menina a ler as coisa e fazer umas conta direito que já é o bastante. Essa chucra nunca vai sair daqui mesmo e por aqui num precisa mais que isso – o pai falou para a professora que ainda tentou delicadamente insistir. Em vão. Naquela tarde, Liz levaria a maior surra da sua vida por fazer o pai passar vexame com a professora.

Aquela surra, ironicamente, seria a libertação da pequena Liz.

A brutalidade do chicote do pai a deixou de cama, e como ela nunca faltasse à escola, ao cabo de uma semana, a professora retornou ao casebre dos Mello sem se anunciar. A primeira pessoa que a mestra viu foi Liz alimentando as galinhas no terreiro. Nos braços a menina ainda levava grossos arroxeados e nas pernas magras sobressaíam-se vergões sangrentos em recuperação. O choque fez a professora ruborizar-se de forma intensa e sua indignação transformou-se imediatamente em ira incontida.

Depois disso, tudo foi muito rápido. A mestra ameaçou denunciar os pais por maus-tratos ao que ela ouviu que se podia disciplinar aquela menina de forma melhor, ela que a criasse.

Aos dez anos, Liz deixou a casa dos pais e nunca mais voltou.

 



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