Desde sempre

Capítulo 6

Capítulo 6

 

Respirações ofegantes e descobertas fascinantes tomaram conta do pequeno jardim, até que uma voz estridente e raivosa fez-se ouvir bem próxima a elas. Separaram-se abruptamente. A mãe de Fabiana apareceu com o rosto cerrado de contrariedade.

– Fabiana, que falta de educação é essa em deixar os seus convidados sozinhos?

Fabiana não emitiu palavra.

– Você está me ouvindo, mocinha? Levante-se e venha para o salão agora.

Nem se quisesse, Fabi conseguiria se levantar do banco. Suas pernas não respondiam ao comando do cérebro.

– Fabiana, o que é… – Dona Eulália parou no meio da frase ao reparar a garrafa de champanhe vazia. – Mas, que diab…Fabiana, você está bêbada. – A mulher olhou para Liz. – Isso decerto foi ideia sua, não foi, menina?

Liz não respondeu.

Dona Eulália avançou em direção à filha e a puxou pelo braço.

– Levante-se, sua irresponsável. Nós vamos direto para casa. Eu invento qualquer desculpa aos convidados. Imagine se a família Paes ou os Lucena a virem neste estado. Não quero nem pensar.

Fabiana levantou-se trôpega. Liz refreou o desejo de ampará-la ante o olhar ameaçador que D. Eulália lançou-lhe. As duas sumiram por uma saída secundária sem retornarem ao salão principal.

Liz estaria profundamente chateada se não tivesse possuída por uma alegria esfuziante. Não! Mais. Radiante. Isso, radiante. Olhou para o céu e sorriu como se visse as estrelas pela primeira vez na vida.

Sentia vontade de gritar.

1992 – A infausta festa no DCE

Quando retornou ao local onde deixara Fabiana, Liz a viu conversando com um rapaz. Para a surpresa da loirinha, Fabiana soltou uma daquelas suas raras e deliciosas gargalhadas. Liz achegou-se intrigada. É que apesar de linda e obviamente muito assediada, Fabiana dificilmente conversava com rapazes sem lançar um olhar de súplica e embaraço para a melhor amiga. É claro que ambas já haviam ficado com rapazes, namorado alguns, mas nunca nada muito sério, prolongado ou demasiado íntimo. Mesmo agora, após dois anos de universidade, as coisas não haviam mudado muito. Dois anos…Liz sorriu ao lembrar de que finalmente moravam juntas não obstante as tentativas reiteradas de D. Eulália para que isso jamais acontecesse.

Liz se aproximou.

– Desculpe a demora – Liz falou entregando um copo de refrigerante para Fabiana.

– Ah, oi, Liz. Você não demorou, não. Este é o Caio. Ele faz medicina.

Liz o cumprimentou com a cabeça, mas o jovem estudante adiantou-se e a abraçou amigavelmente.

– Muito prazer, Liz. A Fabiana estava me contando que vocês são as melhores amigas.

Liz apenas sorriu. Ficaram conversando sobre atualidades durante alguns minutos e a loirinha teve que admitir que o rapaz era simpático e não perdia tempo com comentários repletos de testosterona. Era inteligente e agradável. E pelo jeito não era só ela que estava percebendo isso. Fabiana parecia encantada. Um ciúme sorrateiro começou a se instalar no peito de Liz. Ela balançou a cabeça e resolveu pegar mais cerveja. Alguns minutos fora e Fabiana começaria a procurá-la com os olhos, nervosa com a sua demora.

Enganou-se.

Meia hora depois, a morena continuava conversando animada com seu novo amigo. Liz sentiu o estômago embrulhar. Aproximou-se.

– Olha, Fabi. Esta festa está um saco. Vou me mandar.

– Mas, Liz, nós não demoramos nada…

– Se você quiser pode ficar. Eu estou indo para casa dormir.

– Eu te levo mais tarde, Fabiana – Caio ofereceu-se.

Para a surpresa de Liz, Fabiana aceitou.

– Então eu vou ficar.

Liz se despediu com um aceno leve e saiu confusa e decepcionada. Olhou para trás uma única vez para ver Fabiana rindo e se recostando no braço do jovem estudante de medicina. Sentiu o coração se apertando como se vislumbrasse uma séria mudança nas coisas dali para frente.

1987

Fabiana e Liz voltaram a se encontrar somente na segunda-feira, após a festa de quinze anos de Fabiana. A loirinha estava apreensiva em vista do momento de encontrar Fabiana, depois do que havia acontecido entre elas. Chegou cedo e ficou esperando. Fabi apareceu uns quinze minutos mais tarde e Liz, ao contrário do que fazia todos os dias de aula, não se aproximou da amiga contando qualquer coisa com a costumeira verborragia. A jovem loira ficou quieta e muda, ciente do estranho embaraço que lhe entorpecia o ânimo. Fabiana a viu e acenou. Seus cabelos negros estavam presos num rabo de cavalo e o rosto livre dos óculos aparecia com todo o seu esplendor. A morena ainda usava o uniforme austero de sempre, mas para maioria dos alunos no pátio do colégio, muitos dos quais a conheciam a vida inteira, ela se assemelhava a uma aparição. Um milagre que surgiu do dia para a noite plasmado em um rosto sem retoques. “Deus, como ela é linda”, Liz pensou.

– Fabiana, é você? – uma colega de outra classe perguntou com sincero assombro.

Fabi não respondeu, apenas sorriu de leve e olhou para Liz. Em três segundos outras meninas se juntaram à avaliação pasma e indiscreta da primeira colega.

– Menina, o que você fez?

– Como você escondia esses olhos?

– Nossa, que pele!

– Foi plástica?

Outros colegas foram se amontoando, ante o inegável frisson em torno da moça alta e até a semana anterior mascarada como um Zorro com lentes disformes. Fabiana olhou de novo para Liz desta vez com olhos súplices e envergonhados. A loirinha atendeu incontinenti ao pedido mudo da melhor amiga. Caminhou até ela para fazer o que parecia ser a sua missão na terra: salvar Fabiana.

– Fabi, anda logo! Esqueceu da prova de português? Temos que repassar a matéria e a Irmã Maria não tolera atrasos, especialmente em dia de exame – Liz falou com convicção, puxando a mão da garota mais alta sem ligar para as reclamações de duas estudantes em quem ela esbarrara sem remorsos em sua missão de socorro.

Foram para o fim do pátio.

– Nossa, amiga, você causou furor – Liz comentou rindo do rosto ainda vermelho de Fabiana.

– Ai, Liz. Pare de me gozar. Que coisa mais estranha, aquelas pessoas que mal conheço me fazendo perguntas…

– Compreensível, né, amiga? No decorrer de um simples fim de semana eles pararam de ver dois fundos de garrafa pairando acima deles para se depararem com uma gata.

– Gata, eu? Ai, Liz, você tem cada uma.

Sentaram-se em um banco de madeira longe dos curiosos, repentinamente caladas. Fabiana olhou sem muito interesse para o livro de química e Liz passou os dedos pelos cabelos longos fingindo prestar atenção em um bando de garotos jogando futebol com um bagaço de laranja.

– Fabi…

– Sim? – Fabiana perguntou de forma abrupta.

– Eu…

– O que é?

– Sobre o baile…

– O que tem?

– Bom…é…sobre o que aconteceu entre a gen…

– Aaah! – Fabiana falou mais alto que o normal. – Eu fiquei completamente bêbada com aquele champanhe, amiga. Sabia que eu não me lembro de nada depois de rirmos como duas bobas daquele bichinho de jardim? Eu não tenho o costume, você sabe. Minha mãe quase me matou no outro dia. Poxa, que ressaca…

Liz ficou ouvindo a amiga desfiar as agruras de um dia pós-bebedeira sem deixar de reparar no quanto Fabiana estava falando para uma pessoa tão avessa a palavras excessivas e, principalmente, sem parar de pensar que a lembrança daquilo que de mais lindo já havia acontecido em toda a sua vida e com a pessoa mais importante da sua existência parecia ser uma lembrança unicamente dela. Fabiana não se lembrava…ou não queria se lembrar. Não importava.

O sinal para a primeira aula tocou. Ambas se levantaram e seguiram para a sala com Fabiana estranhamente dominando a conversa. Liz olhava para ela fingindo prestar atenção no assunto enquanto seu estômago parecia tomado por um misterioso bolo de decepção. Mas então ela reparou em Fabiana carregando os livros apertados junto ao colo, caminhando com os cabelos presos balançado ao ritmo das pernas longas, corada e alegre. Liz sorriu com carinho. “Quer saber? Dane-se!”. Sem avisar, Liz deu um empurrão na melhor amiga.

– Que é isso, Liz?

– Nossa, Fabi, eu não aguento mais a sua voz. Você está parecendo uma matraca. Para de falar um pouquinho, por favor.

– Olha só quem fala! Você, às vezes, parece que tomou uma overdose daquela pílula falante da Emília do Sítio do Pica-pau Amarelo. Dá vontade de virar avestruz e enterrar a cabeça na terra.

– Cuidado, alto-falante, lembre-se de que os seus joelhos estão perfeitamente ao meu alcance.

– Rá, rá, tampinha, lembre-se de que posso te diminuir alguns preciosos centímetros só com os meus punhos e a força da gravidade.

– Eu mordo o seu calcanhar!

– Eu te penduro no lugar do retrato da madre fundadora da escola.

– Meu Deus, eis que a sacrílega finalmente se revela.

Fabiana não resistiu à gargalhada. Liz levou um empurrão.

– Vamos pra aula sua gralha diminuta.

– Deusa da retórica é mais apropriado.

Foram andando rindo e se provocando. Eram meninas. Eram amigas. Eram felizes.

Liz, muitas vezes e por muito tempo, pensou em conversar com Fabiana sobre o que acontecera naquela noite, mas Fabi jamais tocara no assunto. Sempre que a menina mais baixa antevia um ensejo de falar sobre o episódio, algo a impedia: um medinho fundo e incômodo, uma premonição como um alarme miúdo no peito. E ela se calava e se contentava em ter Fabiana sempre ao alcance, em partilhar o seu riso, ver os seus olhos, e em receber de vez em quando um abraço tímido, um toque de mão imprevisto. E Liz seguia vivendo daquele banquete de migalhas que era sua vida com a garota dos seus sonhos. Somente dos sonhos…

1992

Fabiana só foi chegar às 03:27. Liz sabia o horário exato porque há horas seu relógio de pulso virara um pisca-pisca de tanto ter o botão da luz pressionado.

A moça alta ficou parada um tempo como se quisesse se certificar de que a amiga estava mesmo dormindo. Liz manteve-se imóvel. Fabiana caminhou até o banheiro, tomou um banho rápido e se deitou. Liz ouviu tudo sem entender direito porque não demonstrava à amiga que estava plenamente desperta.

De manhã teve um vislumbre do porquê.

– Ai, Liz ele é o máximo – Fabiana repetiu pela vigésima nona vez.

– Humf – foi a resposta da loirinha.

– Faz o último ano de medicina, dá plantão três vezes por semana e ainda participa de uma ONG ligada à luta pela preservação das espécies ameaçadas. Sabe, ele é vegetariano…

– Noooooossa! E o que esta mistura sobrenatural de Madre Tereza de Calcutá com Jacques Cousteau faz para se divertir?

– Ah, ele joga pólo, quando pode, com os amigos – respondeu Fabiana, ignorando a ironia.

– Pólo? Uau! Não me diga que esta perfeição ainda por cima é um milionário.

– Não sei. Ele não falou nada sobre isso, mas me trouxe para casa num Mercedes.

Liz olhou para Fabiana verdadeiramente surpresa. Um cara bom de papo, quase médico, rico, esportista e vegetariano! O que é isso? A versão moderna para o príncipe encantado? Só que a princesa em que ele estava de olho era a sua princesa. Liz absteve-se de outros comentários.

Para o martírio de uma pobre Liz e independente do seu auto-imposto silêncio, o restante da manhã de domingo passou como um sonho ruim daqueles que se repetem quando você fecha os olhos e tenta esquecê-los. Era Caio para cá, Caio para lá. A menina tentava mudar de assunto. Brincar as velhas brincadeiras e…de repente: o Caio disse, o Caio comentou. Liz estava um poço de nervosismo. “Ai, meu Deus. Por que eu não posso ser uma amiga comum daquelas que se sente feliz pelo sucesso amoroso da melhor amiga e passa horas excitantes comentando sobre o peito atlético do rapaz?”, pensou Liz olhando para uma entusiasmada Fabiana. Mas ela não era.

No meio da tarde, o estopim para lá de curto da loirinha estourou.

– Quer saber, Fabi? Esse tal de Caio é um idiota!

– Você não pode falar do Caio como fala dos outros, Liz – Fabiana retrucou ainda com calma. – Ele é diferente.

– Diferente uma ova! É um boçal estúpido que só pensa com a cabeça debaixo como todos eles.

Os olhos azuis de Fabiana arregalaram-se de indignação.

– O Caio é um gentleman.

– Gentleman? Que é isso? Baixou a D. Eulália?

– Você está sendo desagradável, Liz.

Mas, a loirinha já havia esvaziado a sua quota “Dalai Lama” do dia. Irritação, impotência, ciúme. Era coisa demais para um corpo compacto.

– Pois eu digo e repito: esse Caio é um estúpido idiota.

– Não é, não! Não fale assim do Caio. Você nem ao menos o conhece.

– Opaaaa! E nem você. Você só passou algumas horas com ele.

– E você nem isso. Não o conhece nem um pouquinho.

– Não preciso. Eu vi.

– Você não viu nada.

– Agora eu sou cega.

– Você enxerga como uma águia, Liz.

– Está vendo? Você acabou de concordar comigo.

– Aaaaaaargh! – Fabiana gritou, entre frustrada e furiosa. – Odeio quando você faz isso!

– Isso o que?

– Me faz de idiota porque eu não consigo ganhar uma discussão com você.

– Não é bem assim…

– Odeio, odeio!

– Fabi…

– Não! Eu vou tomar um banho. Preciso…preciso…Deixa pra lá.

 



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