Desde sempre

Capítulo 8

Capítulo 8 –

1992

Fabiana começou a sair com Caio todos os fins de semana. Como o prometido, Liz não falou mais absolutamente nada a respeito. Quando Caio chegava, ela o tratava com polidez e contida frieza.

– Sua amiga não gosta de mim – Caio comentou num fim de semana.

– Não é isso, Caio. É que ela demora a se acostumar com pessoas estranhas. Só isso.

– Não sei, não.

– Quando ela te conhecer melhor, isso vai mudar. Você vai ver.

– Está bem, Fabiana, eu vou esperar – Caio disse dando um beijo rápido na boca da namorada.

– Bom, a minha irmã nos chamou para irmos ao cinema amanhã. Um programa do tipo filme e pipoca. A sua amiga podia vir junto. Talvez, de repente, conhecendo a mim e à minha irmã num clima descontraído, sei lá!, a gente possa quebrar esse gelo.

– Eu acho a ideia ótima. Deixa comigo que eu vou convencer a Liz.

Caio deixou Fabiana na porta do apartamento e a beijou na boca ternamente. Fabi sorriu para ele com carinho. Ele não a assustava, não a deixava nervosa. Caio era um cavalheiro. Fabiana passou a mão pelo rosto do rapaz com afeto e lhe deu um beijo mais longo nos lábios.

– Até amanhã, gato.

Na frente do prédio, segurando os livros como a uma tábua de salvação, Liz tentava não ter pensamentos homicidas. Subiu as escadas fingindo não tê-los percebido.

Fabiana levou horas para conseguir convencer Liz a ir ao cinema. Somente quando ameaçou encher os grandes olhos azuis de lágrimas foi que Liz concordou com o programa.

Quão irônica é a vida. Nesse dia, Liz conheceu Taís.

**********

Taís não era particularmente bonita, não assim como Fabiana. É fantástico como isso realmente não importa. Taís era charmosa, gentil e tinha um sorriso franco e contagiante. Não! Lindo mesmo! Desses sorrisos de parar o trânsito. Talvez porque Caio tenha lhe dito que tinha problemas com a melhor amiga de Fabiana ou talvez porque a jovem de longos cabelos loiros e reticentes olhos verdes a tivesse interessado imediatamente, Taís foi especialmente agradável no dia do cinema. A verdade é que a identificação entre as duas foi rápida e mútua.

– Qual filme? – Taís perguntou a todos, mas olhando para Liz.

Eram uns dez títulos. Caio arriscou uma fita sobre corrida de carros. Três pares de olhos acusadores o fizeram erguer os ombros em derrota. Antes que Fabiana sugerisse um drama, Liz comentou que havia lido comentários elogiosos sobre um filme iraniano que estava em cartaz. Taís aceitou na hora. Caio assentiu atrás mesmo que tivesse que passar duas horas fingindo que não queria dormir. Afinal, ele mal acreditava na sorte da vinda de Taís ter sido tão auspiciosa: Liz estava extremamente afável. Fabiana não sabia se gostava ou não de Liz nem ter lhe perguntado sobre o filme que ela gostaria de ver.

A película era realmente muito boa. Mas boas mesmo eram as mãos macias de Taís no braço de Liz a cada comentário sobre alguma cena. Fazia muito tempo que Liz não sentia aquela agitação no íntimo. Fazia muito tempo que ela não ficava tão excitada na presença de outra mulher que não fosse Fabiana.

Depois do filme foram comer uma pizza. Liz estava incrivelmente bem-humorada. Desfilou o seu rol de chistes e piadas sem pudores e os irmãos riram muito ao mesmo tempo em que Fabiana ficava cada vez mais amuada. “Tão contrário a si é mesmo o amor”². Quanto mais Fabiana se mostrava aborrecida, mais Liz parecia exultante e mais Taís se debruçava coquete sobre a loirinha derramando o perfume dos cabelos castanho-avermelhados.

O resultado da noite foi fácil de adivinhar. Dois dias depois, Liz saiu sozinha com Tais para outro filme. Depois um barzinho, cerveja, confissões e outro barzinho para público mais restrito. Um beijo e estavam namorando. Pela primeira vez em muitos anos, Liz sonhou com outra mulher que não fosse Fabiana.

Fabi percebia a tudo com um misto de alívio por Liz não pegar mais no pé de Caio e um inconfessável incômodo por ela não fazer mais isso.

Semanas depois, o incômodo virou reclamação. Liz não dormia mais em casa. Taís aparecia no campus com frequência e sem avisar e pegava Liz para almoçar. A loirinha passava horas ao telefone e praticamente saía todas as noites.

– Nossa, você se deu bem mesmo com a Taís, né?

Liz tirou os olhos do livro que estava lendo e os voltou curiosa para a amiga.

– Ela é ótima, sim.

-Não só isso! Ela deve ser maravilhosa porque vocês não se largam.

– Maravilhosa tanto quanto o irmão que você também não larga.

– É diferente.

– Diferente no que?

– Ele é meu namorado.

Liz sentiu uma vontade súbita de dizer que Taís também era sua namorada, mas conteve-se.

– Não tem diferença nenhuma. Eu gosto dela e ela gosta de mim. A gente se dá bem e você é que não fica nada bem com ciúme.

– Eu não estou com ciúme.

– Sei…

– Para com isso, Liz! – Fabi quase gritou com o rosto já vermelho.

– Sabe com o que esse papo está parecendo? Está igualzinho ao da época da Mirna.

– Mirna…? Ah, Liz, você desenterra cada uma. Eu nem me lembrava mais daquela…daquela…Deixa pra lá! Eu nem sei porque eu estou tendo essa conversa com você. Eu não tenho nada a ver com isso e, depois, preciso ir à biblioteca.

Fabiana saiu rapidamente fechando a porta com estrondo atrás de si e deixando Liz dividida entre prazer de presenciar uma nítida cena de ciúmes de Fabiana e o receio de que aquele amor improvável pairasse sempre como uma maldição em torno dos seus relacionamentos.

² Verso de Luiz Vaz de Camões do soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”.

1987

A História da Mirna

Liz dava aulas de português e redação para ganhar alguns trocados além da caridade das irmãs. A professora que a tirara de casa e cuidara dela por cinco anos morrera de câncer de mama pouco antes de conseguir para Liz um lugar no melhor colégio da cidade. Liz sempre se lembraria dela como a pessoa mais generosa que já tivera a honra de conhecer. A honra e a sorte, pensava sempre consigo. A sua professora do primário lhe dera muito mais do que a simples oportunidade de viver uma vida diferente da sina de seus irmãos, ela lhe dera a chance, que a todos deveria ser indisponível, de ter uma escolha. Enfim, por ser tão boa com as letras, Liz dava aulas particulares para alguns colegas até de séries à frente da sua. Foi quando ela conheceu Mirna, terceiranista, com dificuldades em redação para o vestibular.

O grande lance da redação é colocar sistematização naquilo que você imagina. É claro que uma boa dose de leitura é desejável… – Liz começou recebendo Mirna na sala pequena, mas clara do quarto e sala em que agora morava, distante poucos metros do colégio.

– Aham. – Mirna fingia prestar atenção. – E onde a gente pode…estudar.

– O quê? Ah! Aqui na mesa – Liz falou apontando uma mesa de madeira que já tivera melhores anos. – Não é grande coisa, mas é espaçosa o suficiente. Quero dizer, se estiver bom para você.

– Está perfeito. Você vai estar aqui, não vai? – a menina mais velha perguntou de um jeito que deixou Liz imediatamente inquieta.

– Claro! – a loirinha respondeu meio sem jeito. – Bom, é…

– Qual o material que eu tenho que trazer, Liz? – Mirna perguntou debruçando o busto exuberante escapando da blusa decotada ao sentar-se à mesa.

– Material? Não, quero dizer…papel e caneta…É-é apenas do que precisamos.

– Só isso?

– Só, digo, para que mais? Bom, vamos começar trabalhando o parágrafo de introdução. Você verá que não é nenhum bicho de sete cabeças e é essencial para a condução do desenvolvimento.

– Claro, claro – concordou a garota mais velha com um sorriso largo e malicioso.

Começaram a aula. Liz explicou algumas técnicas de se iniciar uma dissertação. Mirna prestava atenção intensa e diretamente nos lábios da loirinha. Liz baixou os olhos, ruborizada, mas intimamente instigada.

O decorrer da aula foi uma sucessão de esbarrões acidentais, atos consecutivos de tirar uma mecha de cabelo loiro caído sobre o papel e perguntas óbvias ditas ao pé do ouvido. Liz nunca havia sentido aquelas sensações, aquela excitação gostosa e a vontade de que aquele momento se prolongasse por uma tarde inteira. Dias depois, Mirna já comentava qualquer coisa quase encostando a boca na penugem macia logo abaixo da orelha de Liz. Mais algumas aulas, e a menina mais velha já falava roçando os lábios na cartilagem sensível da orelha da professorinha. Outra aula e Mirna já lhe passava os braços amigavelmente sobre os ombros e deixava os dedos tocarem por acaso os seios de Liz. Era algo inédito na vida da menina mais nova: ao mínimo toque de Mirna e ela já ficava molhada. Irremediavelmente, irrevogavelmente, definitivamente molhada. Depois de um par de semanas, Liz esperava aquelas aulas com avidez. Não falou nada com Fabi. Não saberia como contar o que estava acontecendo.

Na verdade, depois de cerca de um mês de aulas, Liz não saberia dizer nem para si mesma o dia ou a forma exata com que Mirna a beijou. Somente se lembraria não sem um pouco de vergonha de que, na ocasião, não registrara o menor pudor. Há muito já estava entregue àquelas sensações deliciosas e incomuns. Mirna não teve dificuldades em roubar-lhe um beijo e, mais do que isso, não teve dificuldades em entrar com as mãos por baixo da blusa de Liz e tatear longamente a barriga jovem e depois alcançar os seios e apertá-los sem reservas arrancando um suspiro da loirinha.

Foi a primeira mulher com quem Liz fez amor na vida.

Naquele dia e em outros, Mirna lhe ensinou os meandros de um desejo ainda latente. Despiu-a como ninguém jamais o fizera. Provou-lhe a carne com os lábios e a língua em lugares inimagináveis. Arremeteu os dedos no interior da vulva ainda intacta e obteve de início um primeiro gemido de desconforto, mas depois o arremesso instintivo do quadril da menina de encontro ao invasor e Liz pôde, pela primeira vez na vida, gritar de tesão dentro da boca de uma outra mulher.

Era uma nova vida. Depois de tanto tempo, a pequena Liz que escapara de um destino tosco e sem perspectivas, descobria um novo mistério em sua curta existência.

No colégio após esse dia, Liz parecia uma abelha encantada por uma flor. Não perdia oportunidade de estar nas proximidades de Mirna e encontrava as mais variadas desculpas para tal. Fabiana viu a melhor amiga negar-lhe uma ida ao Seu Aldo para comer uma batata frita. Ouviu uma desculpa esfarrapada qualquer para não ir tomar sol no clube e de quebra recebeu um comentário aéreo quando contou que havia torcido ligeiramente o tornozelo no último jogo de basquete, quando normalmente receberia uma enxurrada de perguntas sobre o seu bem-estar. Fabiana não sabia exatamente o que estava acontecendo, mas sabia que tinha algo a ver com a garota de cabelos curtos e cacheados do terceiro ano de quem Liz parecia não tirar os olhos. Fabi sentiu uma inédita vontade de bater em outro ser humano.

– Como vão indo as aulas particulares?

– Como? – Liz perguntou, distraída.

– As aulas particulares… Quantos alunos você tem mesmo?

– Ah! Uns seis, eu acho.

– Pois está parecendo que você só tem uma.

– Uma? O que você quer dizer com isso?

– Que você agora parece encantada com essa tal Mirna.

– A Mirna? É…ela é bem legal.

– Legal? Ela deve ser o máximo porque você não liga mais para outra coisa. Aliás, não liga mais para ninguém.

– O que é isso, Fabi?

– É verdade. Você nem liga mais para a sua melhor amiga, que nem deve ser mais a sua melhor amiga, porque você parece ansiosa em substituí-la.

– Pare com isso, Fabi. Eu jamais faria isso.

– Pois é o que você está fazendo.

Nesse momento, os olhos azuis de Fabiana se encheram de lágrimas e ela baixou a cabeça tristemente. Liz se exasperou. Como conversar com Fabiana sobre o que estava experimentando? Como falar sobre tantas e tão fascinantes sensações que a intrigavam e seduziam e que ela sentia que a amiga não entenderia? Se ela mesma mal sabia explicar para si como continuava amando Fabiana, mas não conseguia parar de pensar na próxima vez em que encontraria Mirna a sós?

Fabiana levantou o rosto e a fitou de frente e Liz pôde perceber tristeza e medo misturado com uma súplica calada e dolorida. Liz sentiu-se sem ar e soube que para sempre seria capaz de arrancar um braço para não ver mais aquela angústia nos olhos de Fabiana.

E Mirna passou devagar e inexoravelmente.

Mas, secretamente, sempre que via pelas ruas alguma mulher esbelta de cabelos curtos, escuros e cacheados, Liz sentia o peito encher-se de um estranho carinho.

 



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