Desprendimento

Desprendimento

DESPRENDIMENTO

– Vai lá, Cintia. – Incentiva Paula.

– Ééé! – Rejane reforça. – Já foi um drama conseguir fazer você sair de casa, agora vai ficar só olhando de longe pra garota?

– Só a achei bonita, caramba! – Cintia justifica.

– Pelo jeito, as que têm certo ar de mistério – Glória mudou o tom de voz pra dizer a palavra – são as que te atraem.

– Calma, gente! – Monica interfere. – Nossa! Um passo de cada vez. Hoje ela saiu, tá aqui com a gente, daqui a pouco ela dança com alguém, é só dar um tempo.

– Você não a conhece tanto quanto nós, amor. – Gloria replica. – Se a gente não empurrar, ela não vai tomar nenhuma atitude nunca.

– Ela já foi casada, deve saber se virar. – Monica fala.

– É ruim, hein! – Gloria responde. – Marilda foi quem a convenceu. Algum tempo depois de se conhecerem, fizeram amizade e quando Marilda se descobriu apaixonada, ficou no pé dela até convencê-la a viverem juntas.

– Sério? – Monica se surpreende. – Eu pensei que, um relacionamento de oito anos, durou todo esse tempo por elas estarem apaixonadas.

– Marilda estava apaixonada, Cintia gostava dela, tinha amizade e acabou se envolvendo. – Paula fala. – Opa! Pelo jeito os olhares são recíprocos.

– Quer saber? Cintia, vem comigo. – Rejane fala, com firmeza.

Rejane pegou a mão de Cintia e saiu puxando-a pelo bar em direção da mesa onde estava sentada a tal “mulher misteriosa”.

– Olá! – Rejane cumprimenta. – Desculpe incomoda-la, mas minha amiga aqui quer saber o que você pode fazer para apagar o vulcão que provocou nela.

Cintia e, agora a garota olhando pra Rejane perguntaram ao mesmo tempo, espantadas.

– O quê?

– Agora já se conhecem, me retiro. – Rejane sorri.

Virou-se e voltou para a mesa das amigas.

– Me desculpe, é o que dá ter amigas doidas. – Cintia fala, encabulada. – Boa noite

Foi se virando pra retornar à sua mesa quando ouviu e se virou surpresa.

– É verdade?

– É verdade, o quê?

– Que provoco o “vulcão” que há em você?

– Ahhhh! Se eu fosse o tipo, com certeza você seria a mulher que o faria entrar em erupção, mas sou mais pra isqueirinho em vias de acabar o gás, mais pra traque do que rojão.

A mulher soltou uma risada cristalina. Cintia não entendeu bem o porque, ficou sem graça e ia saindo quando a outra estendeu uma mão e segurou seu braço, enquanto fazia o gesto de esperar com a outra mão. Quando parou de rir respirou fundo.

– Desculpe! Você tem um ar tão sério, mas pelo jeito é bem engraçada… e tem amigas que se preocupam por você.

– Ué! Amigos são assim mesmo! Que bom que tenha rido e me achado engraçada, mas não tive essa intenção.

– Talvez justamente por isso é que teve tanta graça. Não quer sentar-se?

– Está mesmo sozinha?

– Estou sim. Acho que não sou muito agradável.

– Imagina! Eu te acho… ops.

– Você me acha… o que?

– Interessante.

– Isso é bom?

– Eu acho ótimo.

– Suas amigas são casais?

– São sim.

– E como você está sozinha e andou, digamos, me paquerando, resolveram tomar uma atitude?

– Só a Rejane. Ela é do tipo prematura que, até hoje continua apressada e, como estou viúva há 18 meses, ela está doida pra me arrumar alguém.

– Ah, tua mulher faleceu! Sinto muito.

– Não sinta. Pra ela foi melhor, descansou.

– Foi doença?

– Foi. Bom, acho que vou parar de te incomodar e voltar pras minhas amigas.

– Por que? Não gostou da companhia, ou foram as perguntas?

– Não! Nem uma coisa nem outra. Talvez eu tenha perdido a espontaneidade em conversar com desconhecidos, faz tempo que não faço isso.

– Então vamos remediar esse desconhecimento – a garota estende a mão. – Prazer, eu sou Aniete.

– Cintia – responde, segurando a mão que lhe fora estendida.

– Agora que já não somos mais desconhecidas podemos manter uma conversação, não é?

-Bom, sabemos os nomes, mas isso não nos torna exatamente “conhecidas”. O nome carrega um tipo de energia, com certeza, mas uma pessoa é muito mais que um nome. Desculpe, de novo, agora comecei a destravar abobrinhas.

– Talvez eu goste dessas “abobrinhas”, – Aniete sorri – mas acho que vamos ser interrompidas.

– Hum, o quê…?

– Escuta essa! – Rejane se aproxima e fala. – A Gloria e a Paula estão dizendo que homem só serve pra carregar peso e que quando olha pra mulher, imediatamente pensa em como ela seria na cama.

– A Paula concorda comigo e acrescentou que eles pensam “que gostosa! – Gloria fala. – Essa eu levava pra cama rapidinho” ou “ Que canhão! Essa nem com a bandeira do –ai vem o time- na cara”, mas a giletona aqui discorda.

– A Monica ainda disse que se pensar diferente disso vai ser “Aiii, eu queria ser como ela” ou melhor ainda, “ser ela” e a ultima. “Que rasgada bonita, será que tem irmão?”. – Rejane continua. – Vocês não acham que é preconceito?

– Acho exagerado.  – Aniete responde. – Tenho alguns bons amigos homens e garanto que não são assim. Estão nivelando por baixo.

– Obrigada. – Rejane agradece.

– Também temos amigos homens bem legais, vocês se esqueceram? – Cintia informa. – Parece que estão falando é de machões, não de homens. São coisas beeeem diferentes.

– Viu, Paula? – Rejane provoca. – Vocês estão parecendo aquelas adolescentes fazendo fofoquinhas sobre os garotos que não se interessam por elas. Não é ….? – Indaga para a garota

– Aniete.

– Nome diferente! – Rejane observa.

– Eu ia mesmo perguntar se é descendência francesa ou nordestina. – Cintia especula.

Olharam-na sem entender.

– Lá vem, mas vamos perguntar. – Gloria fala. – Por que nordestina, Cintia?

– Ué, gente! – Cintia responde. – Quem tem o hábito de pegar os nomes dos pais e juntar pra botar nos filhos, ou homenagear parentes misturando os nomes?

– Você tem algo contra? – Aniete quer saber.

– Nadica de nada, – Cintia responde – apenas conheço vários casos, inclusive temos um amigo e uma amiga que têm nomes resultantes dessas misturas hãã … “normais”.

Agora riram.

– Não disse que você é engraçada! – Aniete sorri.

– Iiiiii, menina, você nem imagina o que vem dai de vez em quando. – Rejane fala. – É uma mulher séria, responsável, mas às vezes não pensa pra falar, ou fala o que pensa sem filtrar e vem cada tijolada.

– Pronto.  – Gloria interfere. – Já conhece o maior e o pior defeito dela. Vamos, Re, vamos voltar pra mesa.

– Parece que tuas amigas te entregaram. – Aniete ri.

– Pois é! Depois se dizem amigas.

– Mas respondendo a sua dúvida, tenho descendência francesa. – Informa Aniete.

– Olha só, Aniete, – fala Cintia – eu não sou nem nunca fui do tipo que facilmente se entrosa com as pessoas. Sou viúva, sozinha e desimpedida, aquelas são minhas amigas mais chegadas que acham que já passou da hora d’eu ter outro alguém na minha vida. Embora você tenha atraído minha atenção, eu jamais tomaria a iniciativa de vir falar com você, por isso Rejane fez o que fez. Vou entender perfeitamente se não quiser mais me ver, mas eu gostaria de voltar a te encontrar sem plateia e sem nenhum compromisso.

– Pois eu estou achando que você está se saindo muito bem. – Aniete fala. – Estava meio por baixo quando entrei, a fim de tomar todas e mais um pouco e, quem sabe, sair com alguém que não conheço e pela manhã continuar sem conhecer, mas você me fez rir e mudar de ideia. Fez ver que ainda há pessoas que valem a pena.

– Posso saber o que aconteceu? – Cintia indaga, interessada.

– Não sou de chorar as mágoas com todo mundo ou com quem não conheço bem, nem quis falar com meus amigos sobre o que aconteceu, mas estou querendo te contar, sim.

– Então, manda ver.

– Viajo muito pela companhia que trabalho, às vezes viagens longas. Na quarta feira, iria para Fortaleza sanar um problema de uma compra, mas um colega do trabalho que poderia muito bem resolvê-lo e tem família por lá, incluindo a mãe, pediu para trocar e o chefe concordou. Essa viagem seria coisa de uns dez dias e a dele, que ficou pra mim, apenas três ou dois, já que era aqui no interior do Estado. Pensando em surpreender alguém que namorava há uns oito meses, não a avisei que voltaria logo.

– Tá me cheirando a traição!

– Pois é! – Aniete suspirou. – Resolvi tudo em dois dias, cheguei na casa dela cedo com flores pra entregar, deixei minha mala na sala, abri a porta do quarto, que não sabia porque estava fechada, e lá estava a minha namorada completamente nua, dormindo nos braços adivinha de quem?

– Da melhor amiga dela?

– Não! Da minha melhor amiga.

– Credo! Que baita dor dupla!

– Eu as acordei, calmamente. Ficaram apavoradas, gaguejando aquelas frases famosas, começando com aquela que é a pior, porque acham que a gente é um asno “não é o que você está pensando”, “vamos conversar e esclarecer tudo”.

– Não teve vontade de matá-las? O que você fez?

– Com certeza, mas sai da casa levando tudo que me pertencia. A …. traidora primeiro insistiu que não era o que parecia, que já tentara falar comigo e eu não a ouvia.

– Que cara de pau!

– Fui irredutível. Sai, fui pra casa, mandei um chaveiro trocar as duas fechaduras, avisei na portaria que estavam proibidas de entrarem no prédio, tentei não pensar no assunto, resolvi sair para espairecer e aqui estou.

– Que barra!

Conversaram mais um pouco e se despediram levando números de telefones e a promessa de novo encontro.

Cintia, naquela madrugada, teve um sonho estranho. “Estava com roupas antigas em uma… fazenda!? É, parecia ser uma fazenda. Alguém que achava ser sua mãe chorava e implorava por ela, enquanto outra pessoa que parecia ser seu pai, estava furioso e gritava (não se pareciam com seus pais de verdade). Uma senhora negra chorava ajoelhada no chão e ela olhava firmemente para o homem com altivez e raiva contida. Ele gritava que acabaria com a pouca vergonha em sua casa, que mataria aquela negrinha no chicote.

De repente, estava escuro lá fora e a senhora negra, que antes estava chorando ajoelhada, ajudava a retirar uma jovem negra que estivera amarrada ao tronco (pelourinho). A jovem parecia morta, estava toda suja de seu próprio sangue. Cintia (ou quem quer que fosse no sonho) estava trancada em seu quarto na parte de cima da casa grande e da janela olhava a cena e sentia-se morrer de dor. Quando a jovem foi carregada para dentro da senzala e ela não podia mais vê-la, as lágrimas desceram como enxurrada depois da chuva de verão.

E, rapidamente pareceu dia claro. Permanecia sentada no mesmo lugar olhando pro nada, quando a porta foi destrancada e seu pai entrou seguido pela mãe. A mãe dizia pra ela pedir perdão e obedecer ao pai, enquanto ele dizia que iria providenciar seu casamento urgente com alguém que ela nem tinha ideia de quem era. Ela apenas permaneceu quieta sob a mesma sensação de vida finda e eles saíram.

A senhora negra apareceu depois com uma bandeja com comida. Carinhosamente dizia que elas tinham sido descuidadas por terem sido surpreendidas; que ela cuidaria de Aurora como sempre cuidara dela, mas que estava muito mal, não sabiam se sobreviveria e, se sobrevivesse, seria vendida, com certeza”.

Acordou com a sensação de vazio já bem sua conhecida. Que coisa mais estranha aquele sonho com tantos detalhes. O que seria?

O dia todo as imagens daquele sonho voltava toda vez que parava por um segundo que fosse. Ao chegar em casa recebeu um telefonema.

– Alô!

– Oi, Cintia. É Aniete, dispõe de alguns minutos?

– Claro! Pode falar à vontade.

– É que… bom, eu tive um sonho muito estranho e você, por incrível que pareça, estava nele.

– Hum, estranho como?

– Parecia cena de livro, novela, ou filme, sei lá. Parecia época da escravidão em uma fazenda, eu estava no tronco para ser morta e tinha uma pessoa trancada num quarto e esta pessoa estava desesperada pela minha situação e, bem … parecia que havia algo entre nós e você, pela janela, me viu ser levada por uma senhora negra e ficou pior ainda.

Por alguns segundos houve um silencio imenso.

– Cintia! Você está ai?

– Estou sim. Desculpe. – Cintia suspira profundamente. – Nesse sonho, por acaso, seu nome era Aurora?

– Era! E a senhora me dizia que Maria Clara, que seria você, tenho certeza, sentia a minha dor e jamais me esqueceria.

– Meu Deus! Será que isso aconteceu com a gente em alguma época lá atrás?

– Não sou espírita nem nunca me interessei por essas coisas. Tenho que confessar que estou assustada!

– Somos duas. Quando nada conheço alguns espíritas, eu já sou mais espiritualista. Nós vamos tentar descobrir o que foi esse “sonho em conjunto”?

– Acho que sim, mas tenho receio dessas coisas, então se você conhecer hã … algum espírita de confiança…?

– A gente se encontra amanhã para combinar pessoalmente. Pode ser?

– Pode sim.

Passou o endereço de sua casa, antes de desligarem e Cintia se comprometeu a comparecer às 20 horas para conversarem.

Naquela noite, o sonho se repetiu e Cintia viu mãos, detalhes, incluindo uma mancha de nascença no pescoço da senhora negra, que naquela soube chamava-se Benedita, idêntica à de…. Marilda!? Acordou assustada. Será que ela, Marilda e Aniete já haviam se encontrado em outra vida? Já ouvira essa expressão antes, mas não acreditava piamente, ou melhor, nunca havia se preocupado com essas coisas e quando a hora do despertar chegou, estava doida pra continuar dormindo. Mais um dia de trabalho difícil, concentração dispersa, e assim chegou ao fim e o encontro com Aniete.

Às 20:03 horas, tocou a campainha. Estava contente, embora cansada e gostou do jeito de Aniete ao abrir a porta, sorridente, simpática. Após cumprimentos com beijinhos nos rostos, sentaram-se pra conversar. Cintia contou sobre a repetição do sonho e Aniete disse achar que também sonhara algo semelhante, mas como quase sempre não se lembrava do conjunto, só trechos deles. Justamente por isso ficara tão surpresa com a lembrança do sonho anterior.

– Desta vez, vi um sinal no pescoço da senhora negra, igualzinho ao de Marilda, minha ex-mulher.

– Tá brincando! Sério?

– Seríssimo!

– Meu Deus! Será que esse negócio de “sonhos reveladores” é verdade?

– Não sei, mas estou curiosa e até preocupada. Pra dizer a verdade, estava pensando em Rejane. Ela é uma das pessoas espíritas que comentei com você, e falei com ela sobre os sonhos coincidentes. Pelo que ela disse na sexta feira, eles têm … é é… não sei o nome, mas eles atendem pessoas que precisam de algum tipo de ajuda. Acho que vou com ela antes que fique encucada demais com isso. Quem sabe alguém por lá tenha alguma explicação.

– Hum, vou pensar na possibilidade.

– Ok. Caso resolva ir tem meu telefone. Escuta. Que tal irmos comer uma pizza, vi uma pizzaria aqui no quarteirão e estou morrendo de fome.

– Ah, desculpa! Eu também estou só com o almoço e faminta, mas pelo horário que cheguei não deu pra arrumar nada ainda. Já que gosta de pizza, vamos lá.

Foram à pizzaria, comeram com calma  e muita conversa, – apreciando mais a companhia do que a pizza – principalmente sobre suas crenças e quando o local já se preparava para fechar se despediram.

Na quinta, Aniete telefonou dizendo que iria ao tal Centro com ela. Mais porque desejava estar com Cintia do que por alguma crença, já que não era dada a religiosidade.

Na sexta, encontraram-se na porta do banco que Rejane trabalhava e de lá as três se dirigiram ao “Centro” com Aniete seguindo em seu carro, o veículo com as outras duas. Após pequena palestra e orações, chegou o momento dos médiuns receberem “as entidades” para trabalharem em prol das pessoas que ali estavam e que não eram poucas.

Chegando a vez delas, que não quiseram ir separadamente, foram conduzidas a um “preto velho” que tinha uma moça ao lado para explicar o que não entendessem e atender a tal entidade. Um tanto quanto receosas sentaram-se à frente dele.

– Boa noite, fias.

– Boa noite. – Responderam.

– Pruque viero as duas junta, tão cum medo du véio? – A entidade sorriu marotamente.

A atitude e as palavras deixaram-nas mais descontraídas e falaram do sonho em comum. A entidade ficou quieta apoiada em sua bengala por “longos” minutos.

– Ói fias, ces já se cruzaro mesmo. Por varia veiz. Uma delas foi lá quando esses véio – apontou os demais incorporados que estavam atendendo outras pessoas – era tudo escravo. Ces tivero ligação sim, sofrero muito e a nega qui foi imbora faiz pocas lua, ajudo ôceis. Notras vida, ela fico com revorta, feiz mardade e agora si redimiu ca ajuda d’ocê fia – apontou Cintia. – Ela ta bem agora, ta bem sim. Parece que ôceis vortaro a si encontra pra se filiz. Esses sonhu d’ôceis tava mesmo mostranu o qui ces passaru. Já si incontraro otras veiz depois da veiz que foi iscrava, mas ôce fia – agora apontou Aniete -, num proveito as chanci por raiva, por magua, achanu qui tudu mundo tem curpa dos seus probrem. Apruveita a chancii agora. Num dexa passa. Arguma pregunta, fia?

As duas talvez tivessem várias perguntas, mas simplesmente balançaram a cabeça negativamente. A entidade agradeceu a vinda delas, deu-lhes um “passe”, desejou-lhes felicidade e se despediu. A mesma pessoa que as trouxe, conduziu-as até a próxima divisão onde assistiram à palestra e chamou outra pessoa para ser atendida.

 Elas se sentaram e ficaram em silêncio, cada uma com seus pensamentos. Passado um tempo:

– Cintia, eu vou embora. Você vai esperar a Rejane?

– Hã!? Ah, sim. O que foi? Está com ar estranho!

– Vamos lá fora?

Foram.

– Pronto, pode me dizer agora o que foi?

– Olha, eu não sei o quanto você acredita nessas coisas, mas eu nunca botei muita fé, então vou ser franca. Não sei como aconteceu esse negocio desse maldito sonho, não sei se você está envolvida, mas pra mim, é muito estranho virmos a um lugar que sua melhor amiga frequenta e um cara, pseudo médium, vir com esse papo de reencontro entre nós. Acabei de sair de uma fria e não vou me deixar levar e entrar em nada, absolutamente nada, nem com todo esse papo espiritual.

– Ah sei! Quer dizer que você está pensando que assim que te vi no barzinho, caí de quatro e, com minhas amigas, armei todo esse esquema “do outro mundo” pra te levar pra cama? Seria isso que eu entendi?

– Mais ou menos isso, então acho melhor dar um basta já.

– Hum, hum. Não vou negar que algo em você me atraiu naquela noite. Sou uma pessoa franca, sempre fui. Parece que a vida te fez super desconfiada, mas você não está se valorizando por demais? – Cintia replica. – Eu penso que interesse por um corpo, é paixão, é desejo. Interesse pela companhia, pelo papo, pela falta que faz, eu chamo de amizade. Amizade é um tipo de amor. – Tomando fôlego, continua. – Pra outro tipo de relacionamento, que leva pra cama, que envolva sexo, é preciso ter tudo isso e, se chegar a se tornar o Amor com a maiúsculo, deve ser maravilhoso, o que não aconteceu comigo ainda. Então, tenha uma boa vida, porque ali dentro tem uma amiga que prezo muito e, acreditando ou não na religião dela, eu a respeito, porque jamais seria usada por Rejane em beneficio escuso de ninguém. Boa noite.

Aniete sentiu-se roxa, sem saber se era vergonha, raiva, um misto das duas coisas, ou por talvez, só talvez, ter feito um julgamento falso. Quando deu por si, estava sozinha. Olhou em volta sem graça e foi pro seu carro.

Sentada, segurando com força o volante, olhando para o nada, até sentir dor nos ombros e nas mãos. Percebeu como estava apertando o volante, da raiva que sentia. Gritou, soltou palavrões, cerrou os punhos e bateu no banco ao lado. Mais gente querendo enganá-la, mais gente a quem mostrar quem era ela, que não era a boba que pensavam. Não estava acostumada a ouvir de outra pessoa a última palavra. Primeiro a ex, depois essas falsas boazinhas. Ligou o carro e foi pra casa.

****

Um mês depois, enquanto as amigas de Cintia continuavam querendo encontrar alguém legal pra ela, Aniete começou a por em prática sua primeira vingança.

Era aniversário de uma antiga amiga, logo, Violeta, sua ex-amiga, provavelmente também iria e, quem sabe, acompanhada de Débora, a ex-namorada.

Entrou, propositadamente, na metade da festa com uma acompanhante deslumbrante que, de imediato, atraiu muitos olhares, que parecia ignorar. Tudo corria bem até Violeta sair um pouco da sala, onde estava a maioria das pessoas, para respirar o ar da noite, o perfume dos jasmins floridos no jardim da casa. Logo depois da sua saída, a “deslumbrante” acompanhante de Aniete surgiu ao seu lado.

– Boa noite. Eu soube que você é a mulher que roubou a ex da minha namorada.

– O quê? Do que você está falando, garota? Aniete sabe que veio falar comigo ou ela quem mandou?

– Calma! Só estou curiosa em saber qual é… o mistério que você tem para tê-la atraído. Deixa Aniete fora disso.

– Desculpe, mas é que não esperava esse tipo de abordagem. Conheço muito bem sua namorada pra não achar que ela deixaria barato. Só espero que não estrague a festa.

– Por que estragaria? A aniversariante não é amiga dela?

– Acredito que a amiga de verdade que ela tinha era eu, mas como ela nunca dá ouvidos ao que as pessoas falam, a não ser que seja do interesse dela, acabou por ter conhecidos, não amigos.

– Credo! Tem certeza que está falando de Aniete?

– Claro. Sei que normalmente ninguém liga pra conselhos, mas como também não custa nada, vou te dar um. Pra conviver com Aniete, tem que gostar muito dela e estar disposta a ceder sempre. Se não estiver, caia fora antes que sofra.

– Obrigada, mas não temos nada tão sério e você me pareceu gostosa, só isso. Tem uma boca convidativa.

– Obrigada, mas tem dona exclusiva.

– Você deve estar brincando! – Colou seu corpo em Violeta. – Só para experimentar, ninguém vai saber.

Enquanto conversavam no jardim, Aniete se aproximou de Débora.

– Hummm! Você me parece estar bem.

– Boa noite, Aniete! Estou sim e você?

– Estou ótima. Como vai o relacionamento? Ou já mudaram de par?

– Sabia! Quando se aproximou, cheguei a pensar que poderia ter mudado, que estaria menos egoísta, mas me enganei feio.

– Ah! A egoísta sou eu!? Fui duplamente traída e ainda levo a pecha de egoísta?

– Como é impossível conversar com você como pessoas adultas e maduras, façamos o seguinte, eu te ignoro e você faz o mesmo durante a festa. Que tal?

– Posso fazer isso, mas parece que tua mulherzinha não. Está lá fora de papo com minha… acompanhante.

– Pra isso você veio à festa? Pra nos envenenar?

– Se não acredita, vá conferir. Eu te acompanho.

Foram em direção ao jardim.

– Hei! Me larga, pode parar! – Violenta tenta se desvencilhar da garota. – Costuma agarrar desconhecidas, é?

– Por isso, não. Eu sou Simone e estou doida por tua boca.

– Já te disse que é exclusiva. Amo minha mulher, garota.

– Calma! Nossa, que coisa! Tanto escândalo por um simples beijo?

– Beijo nunca é simples, a não ser para pilantras ou desmioladas como você.

– Ok, ok, não precisa ofender, sou apenas… liberal, nada mais. Não estou acostumada a ser rejeitada e…

– Aposto que não! Mas aprenda que juventude e beleza não são eternas e que existem pessoas íntegras.

– Talvez outra hora, outro lugar.

– Ela já disse não.  – Débora se aproxima. – Você tem problema para entender as palavras?

 – Opa! – Simone fala. – Eu a vi aqui fora, sozinha, e pensei que poderia estar entediada.

– Ela só não gosta de muito barulho, muita gente junta, então ela sai pra se recompor. – Débora olha para Aniete. – Estava contando com isso, Aniete?

– Não entendi? – Violeta indaga.

– Essa aí é a acompanhante dela. – Débora aponta para Simone. – Imagine a “coincidência” de estarem na mesma festa que nós; e essa aí vir para o jardim, justamente quando você está, e no mesmo momento, Aniete vir conversar comigo e comentar o fato de vocês estarem aqui fora juntas e saber onde me trazer!

– Você continua a mesma pessoa amarga e vingativa, não é, Aniete? – Violeta fala, triste.

– Esperar o que, com o tipo de pessoas com as quais me relaciono? – Fria, Aniete responde.

– Não! Mais uma vez você está redondamente enganada. – Violeta explica. – Fiz o impossível para me manter à distância, cheguei a sumir, lembra? Você foi atrás e me atazanou até me reaproximar; tentei te explicar, cheguei a dizer que não queria ficar perto de você e Débora, e você fez várias chantagens emocionais, usando amizade para me manter perto.

Débora intervém, dando sequência as explicações da namorada:

– Eu cheguei a pedir a chave de casa de volta, disse que devíamos acabar, que íamos para cama quando você chegava de viagem, depois de uma semana fora e tudo que você dizia era que eu não sabia exatamente o que queria, cortando a conversa pelo meio. Saia para sua casa, me deixando falando sozinha. Você não aceita não, ou basta, de ninguém.

– Não me lembro desses esforços de vocês, não! – Aniete fala.

– Sempre fui sua melhor amiga, mas você é uma das pessoas mais egoístas que já vi. – Violeta afirma. – Tudo sempre do teu jeito, na tua hora, nas tuas vontades. Quando me apresentou Débora, depois de um mês de namoro, eu me apaixonei. Fui me afastando aos poucos, até você me forçar a estar presente. Sofri à beça, todos notaram, menos a minha “melhor amiga”.

– Conforme fui te conhecendo, fui percebendo o quanto errara sobre você. – Débora continuou. – Você não tem o menor respeito pelos outros, acha que o mundo te deve algo, que até hoje não sei o que seja. Quando perguntei à Violeta o que estava acontecendo com ela e disse-me que estava amando alguém que não poderia, nem deveria, percebi a inveja que senti de tal pessoa. Inconscientemente, me aproximei mais dela e vi que ela sim, tinha as qualidades que achei que você tivesse. Vi a pessoa maravilhosa da qual você abusava sem dar nada em troca. Cada dia, cada coisa que você aprontava, com teu descaso e desprezo por todos à sua volta, fazia com que eu a amasse um pouco mais. Mesmo assim, sofremos e tentamos evitar, pra não te magoar. Coisa que você tem prazer em fazer com as pessoas. Não sei de onde vem tanta raiva, tanto ódio e vinganças mesquinhas!

Aniete tentara interromper várias vezes, mas não lhe deram oportunidade.

Violeta aproveitou a pausa e continuou:

– Hoje quando te vi chegar, pensei até que estava bem e que tinha tomado consciência do mundo à tua volta e que poderíamos, no mínimo, sermos conhecidas educadas e, quem sabe, com o tempo… mas nada mudou. Você apareceu aqui hoje pra se “vingar” do que você não conhece, como se tivesse direito a isso. Espero que, o que ela está te pagando, valha a pena, garota. Vamos embora, paixão?

–  Com certeza, Vi. – Débora aperta a mão de Violeta e saem.

– Merda! – Aniete fala, enraivecida. – Devia pegar meu dinheiro de volta; você trabalhou muito mal.

– Não vem, não! – Simone replica. – Você que não conhece as pessoas com quem convive, ou conviveu. Estou começando a pensar que elas têm razão a teu respeito.

– Vá a merda! To indo! Quando quiser ir, peça um táxi. Ganhou bem pra fazer nada.

– Que mulher mais grossa! Já que estou aqui vou aproveitar a festa. Quem sabe arranjo uma boa carona!

****

Passado algum tempo, Aniete vai a um restaurante almoçar e vê Rejane. Resolve se aproximar.

– Boa tarde. Incomodo?

– Boa tarde! À vontade, sente-se.

– Está estranhando minha presença?

– Definitivamente, sim. Depois da forma que se afastou!

– Cintia te contou.

– Contou o quê? – Rejane estranha. – Tudo que ela disse foi que você não tinha gostado do Centro e que não estava pronta pra qualquer relacionamento. Achei uma baita sacanagem da tua parte, já que a espírita sou eu, e não ela. O que mais tinha pra contar?

– Eu dei a entender que… o que disseram lá… não seria verdadeiro, mas que talvez você pudesse estar se esforçando pra arrumar alguém pra ela; no caso, eu.

– Nossa! Ela deve ter subido a serra! – Rejane riu. – Nem fui eu ou meus quem atendeu vocês!

– Bom, ela ficou furiosa; falou um monte de coisas te defendendo e voltou para te esperar. Mas, acabei de te contar e você não liga?

– Ligar eu até ligo, mas não vou dar à luz por isso. – Rejane responde, tranquila. – Se tivesse dito algo contra ela, rebateria na boa, mas de amigos ela fica puta. O que posso fazer é explicar as coisas.

– Gostaria de ouvir tais explicações.

– Beleza! Agora não dá que to no horário de pegar no pesado, mas te dou meu telefone e a gente marca.

Rejane foi embora e Aniete pediu seu almoço, pensando no por que de ter conversado e dito a verdade a Rejane. Estava muito solitária, e nessas horas os monstros e demônios internos ficam mais fortes, mas estava cansada da companhia deles. Ótima, profissionalmente, mas terrivelmente solitária. Não queria explicações, mas simplesmente alguém pra conversar. A forma com que o grupo parecia unido no bar, causara-lhe admiração e como se defendiam provava forte amizade, coisa que ela não sabia o que era. E… não esquecera aqueles olhos.

Naquela noite mesmo, ligou para Rejane e combinaram de se encontrar na sexta, que seria o último dia de trabalho antes de suas férias. O encontro seria na casa de Rejane que não iria ao Centro porque não “trabalhariam”, a “tchurma” não ia se reunir por motivos variados, mesmo Cintia que morava perto tinha compromisso de trabalho. Estariam em casa apenas ela e Paula, que chegaria tarde do trabalho.

– Oi, vamos entrando e fique à vontade.

– Obrigada, principalmente por me receber e conversar comigo, depois da minha atitude.

– Esquece! Sabe, pra gente, espiritualistas e espíritas de verdade, não existe essa de não perdoar, ficar ruminando raivinha e bronca por algo dito sem conhecimento de causa. E nas religiões, qualquer uma, procuramos quem procura o mesmo que nós. Então, com certeza não vai todo mundo pro mesmo lugar orar, né?

– Estou longe disso! Me parece que Cintia também.

– Não mesmo! – Rejane riu. – Como já te disse, ela ficou puta por te dito coisas sobre mim e na minha ausência. Ela é bem espiritualista, sim. Garanto a você que já passou a bronca e quando eu disser que você me contou e pediu desculpas que foram aceitas, ela vai apagar de vez o fato.

– Assim fácil?

– Pode parecer difícil pra nós, mas pra ela é assim mesmo. Embora eu seja espírita e médium que trabalha esse lado, na tentativa de ajudar as pessoas, ela tem muito mais facilidade em compreensão, perdão, essas coisas.

– Nossa! Parece que você a admira mesmo!

– Não só eu, mas todas as pessoas que dela se aproximam.

– Parece que cuspi pra cima, não é?

– Ahá! Foi mesmo! Mas pode ser esquecido, basta se aproximar. Quem sabe pinta o clima novamente?

Riram. Conversaram. Paula chegou e o papo continuou, regado a vinho e pizza até de madrugada. Quando saiu Aniete estava determinada a entrar no grupo, mas como já tinha programado viajar no domingo, faria isso no retorno.

Havia navegado pela internet em busca de um local para relaxar, viu uma cidadezinha no interior de Minas que lhe pareceu bem interessante. Algo, que não sabia precisar, a atraíra para lá. Foi de avião até a cidade grande mais próxima e, de lá, pegou um ônibus. Saíra de manhã de casa e a noite já estava pra chegar quando adentrou ao pequeno hotel, limpo e aconchegante. Apresentou-se no balcão da recepção, confirmando a reserva, preenchendo a ficha.

– Boa tarde, senhora. Fez boa viagem?

– Foi tranquila, obrigada.

– A senhora já conhece a cidade?

– Não, é a primeira vez.

– Veio buscar ar puro?

– Também, mas principalmente descansar.

– Isso é uma coisa que vai poder fazer por aqui. Amanhã posso lhe indicar lugares bonitos e tranquilos para visitar. Temos até um pequeno museu, onde está contada a história das famílias antigas da região. Imigrantes e migrantes, desde a época da escravidão. Cachoeiras, se quiser, passeios a cavalo, se gostar.

– Não tenho pressa, pretendo passar uns quinze dias na cidade.

– Deve estar cansada, o rapaz vai acompanhá-la até seu quarto. Seja bem-vinda!

Não havia dúvida que sossego não ia faltar. Tomou banho prolongado, ajeitou suas coisas e desceu para jantar. Hummmm! Teria que tomar cuidado pra não engordar. A comida era “pesada” e deliciosa! Logo depois de deitar-se, dormiu feito pedra.

Acordou por volta das oito horas, com um burburinho. Espreguiçou-se e resolveu que iria caminhar logo cedo. Quando desceu para o café da manhã, percebeu que não era hóspede exclusiva. Havia muitos hóspedes no restaurante e fora a conversa deles nos corredores que ouvira ao acordar. Pessoas praticantes de trilhas ecológicas principalmente. Foi convidada a participar, mas declinou o convite.

Saiu pela cidade e logo encontrou o museu. Fotos de fazendas e das famílias que outrora as habitaram. Pilões, torradores de café, moenda, ferro de passar a brasa, pinturas, etc…

– Olá! Está realmente interessada nessas velharias?

Virou-se e viu uma bonita jovem, meio rechonchuda, com um sorriso pra lá de simpático.

– Oi! Já que estou matando o tempo por que não ver o que tem aqui, não é?

– Sou Inês. Tomo conta daqui, qualquer coisa é só perguntar.

– Obrigada! Pode ter certeza que o farei.

A moça se afastou e ela continuou olhando as pinturas, as fotos… essa aqui… tinha certeza que já vira aquela casa antes. Procurou Inês.

– Inês, por favor, essa casa desta foto, onde fica? Existe ainda?

– Ah, existe sim. Está inteirona, bem cuidada. Minha mãe tem muito carinho por ela.

– É da tua família?

– É sim, desde 1673. A maioria dos moradores por aqui é de família antiga, tem pouca gente que veio de fora. Por isso a gente conhece quase todo morador desde pequeno. Mas, por que o interesse na fazenda?

– Não sei, apenas parece que a conheço.

– Vai ver de outra vida. – Inês observa, rindo.

Aniete lembrou-se das palavras do “preto velho”, naquele momento.

– Lá na fazenda existiram escravos?

– Infelizmente, até o último dia 30 de maio de 1888. Porque embora a lei tenha sido assinada em 13 de maio, até a notícia se espalhar e os donos da mão de obra gratuita aceitarem… sabe como é.

– É, sei sim. Vocês têm registro de tudo, dos nomes dos escravos?

– Temos! Você por acaso é escritora? Como se chama?

– Não! – Aniete responde, rindo. – É que talvez algum antepassado meu tenha vivido lá. Meu nome é Aniete, desculpe não ter me apresentado.

– Olha ai, de repente a gente tem até uma ancestralidade em comum!

– Acho que não, mas gostaria muito de ver esses registros. Posso?

Com um aceno, pediu para Aniete acompanhá-la. Enquanto falava pensativa, a caminho de uma sala.

– E pensar que eles só existem porque os “proprietários” tinham medo de serem enganados. Mantinham pessoas da mesma forma que seus animais. Sabe que isso me enoja até hoje? Acho que os mantenho para jamais esquecer as barbaridades que minha família já fez. Em compensação, tá vendo meus cabelos cacheados? – O sorrisão estampado novamente. – Herança. Minha avó casou-se com um negro lindo! Meu pai é um mulatão de fazer inveja. Quem diria que aquela fazenda que já teve um dos piores donos de escravos, um dia teria negro no seu comando. Minha avó era filha única, então não teve jeito de impedirem, embora meus bisavós, pelo que soube, tivessem tentado de tudo. Aqui está.

Haviam chegado à sala. Inês abriu um baú e, depois de breve procura, encontrou três cadernos enormes, onde estavam tais registros.

-Ah, sabia que estavam aqui.

Apanhou os cadernos que estavam embrulhados e Aniete pode ver em dois deles, capas bonitas, bem cuidadas e ter nas mãos os diários de Maria Clara Alcântara Figueiredo. Ficou estática, com impressão de ter um tesouro imensurável nas mãos.

– Tá tudo bem? Está passando mal? – Inês pergunta, preocupada.

– Hã? Ah, não! É que… bem, antes de vir para esta cidade que, até poucos dias atrás nem sabia existir, andei tendo sonhos estranhos, onde eu era uma escrava em uma fazenda como esta do quadro; e a filha do dono, um cara muito mau tinha esse nome.

– Nossa! Estou toda arrepiada, olha só! Uau! Será que você foi a tal Aurora que ela menciona nos diários?

– Meu Deus! Nos sonhos esse era o meu nome!

– Que barato! Vem, senta aqui e me conta tudinho.

Depois de contar os sonhos, o encontro com Cintia e a ida ao Centro, Inês toda arrepiada, apanhou os diários e abriu um deles em datas especificas e começou a ler, como quem já tivera lido muitas vezes antes.

“10 de abril de 1880

Hoje tivemos um azar enorme. Aurora sempre me acompanhou nos passeios, tomávamos cuidado com o local para nos entregarmos, mas infelizmente, fomos surpreendidas pelo feitor. Sujeito tão mau quanto meu pai, para quem correu para contar. Ao voltarmos, meu pai já havia sido informado e não acreditou nas histórias que inventei para remediar a situação. Aquele calhorda é de sua confiança absoluta. Tenho medo por mim, sim, mas muito mais por minha querida Aurora. Foi arrastada pelo feitor e está no tronco à espera do senhor meu pai. Que Deus nos ajude e nos proteja”.

“12 de abril de 1880

Ontem não tive condições de escrever. Aqueles miseráveis, a começar pelo senhor meu pai, bateram tanto em Aurora que não sei ainda se está viva. Da janela do meu quarto, que agora se transformou em minha prisão, só pude vê-la sendo surrada, até desfalecer e continuarem batendo. Benedita está cuidando dela, mas que recursos podem ter naquele lugar imundo? Oh meu Deus! Protegei-a. Meu pai diz que vai me casar com Alfredo Mesquita da Costa. Tudo que sei dele é que é filho de um amigo de meu pai, mas tudo que queria saber é de Aurora. Como eu a amo! Tanto amor assim não pode ser pecado”.

15 de abril de 1880

Continuo aprisionada no meu quarto. As mucamas trazem o necessário para que eu me limpe e levam meus dejetos diariamente. O senhor meu pai ordenou que eu desça arrumada na hora do jantar para ser apresentada à família de meu futuro esposo. Isso não pode estar acontecendo! A única coisa boa foi Benedita ter-me dito que Aurora deu sinais de alguma recuperação. Como queria estar com ela, mas não posso nem mesmo vê-la”.

“16 de abril de 1880

O senhor meu pai tem pressa. O casamento foi marcado para 30 de junho. Já decidiram onde vamos passar a lua-de-mel, como se isso pudesse existir pra mim. Depois de casados, vamos morar aqui mesmo”.

Inês pulou várias folhas alegando não ter nada de importante nelas e foi lendo alternadamente.

“03 de julho de 1880

Estou doída, enojada. Acho que vou ficar doente e o senhor Alfredo, meu marido – ou carrasco – diz não entender porque não sorrio, porque não o encaro e ainda por cima choro quando ele me toma. Não vejo a hora de voltar para casa para saber de Aurora.”

“05 de agosto de 1880

O senhor Alfredo, meu dono, não respeitou nem meus dias de sangramento. Parece que sente um enorme prazer em me possuir, enquanto que para mim é um martírio. Ao menos, até hoje, quando não estamos a sós no quarto, ele é gentil. Pudera eu jamais ter que entrar em um quarto com ele. Sinto-me suja.

Benedita disse-me que Aurora está recuperada, mas parece que vai mancar pelo resto da vida. Assim que nos sentamos à mesa para a primeira refeição em casa depois da viagem, meu pai fez questão de informar sobre a venda de Aurora. Ignoraram minha palidez e o senhor Alfredo, ansioso para contar a viagem, nem se apercebeu”.

“25 de agosto de 1880

Finalmente pude sair sozinha. Caminhando pelo pomar, eu a encontrei. Havia raiva, dor, ódio nela. Não se parecia mais com a minha Aurora. Disse-me que eu a esquecera, afinal era só uma “neguinha à toa”, que eu estava bem casada e feliz, enquanto ela continuava sentindo dores pelas pancadas sofridas, mas que se vingaria um dia. Não me deixou falar nada, não me deu tempo, nem me olhou realmente, ou teria visto a minha dor”.

“26 de agosto de 1880

Aurora fugiu. Senhor meu Deus, ajudai-a para que não a capturem. Se Deus assim o permitir, um dia, talvez cuide de Benedita como ela cuidou de nós”.

“13 de março de 1881

Finalmente uma alegria em minha vida. No dia 03 de março, nasceu Miguel. Agora tenho alguém pra cuidar e amar”.

“28 de setembro de 1882

Há três dias, nasceram Maria Eulália e Antônio Pedro. Tenho três presentes de Deus para amar e cuidar”.

“30 de novembro de 1882

Dou Graças a Deus pelas prostitutas e tenho pena das escravas que o senhor Alfredo usa, mas é o jeito de me deixar em paz. Disse-me que eu parecia uma tábua quando ele me amava – se é que aquilo é amar -, que parecia não sentir nada e que só me interesso por meus filhos. É só o que posso fazer, já que até os nomes deles, foram escolhidos pelo avô. Ainda tenho saudade dela”.

“30 de maio de 1888

Espero que ela esteja viva e bem para que finalmente desfrute a liberdade que eu gostaria de ter também, mas não posso. E, que para ser feliz, não pense mais em vingança”.

“15 de fevereiro de 1894

O senhor Alfredo veio a falecer, depois de ter se envolvido em uma briga no bordel da cidade. O senhor meu pai está adoentado e parece-me sério”.

“01 de julho de 1894

Ontem pela manhã, não sei se por ironia do destino, já que coincidiu com o mesmo dia em que acabaram de me matar – o início da tortura para isso foi quando me tiraram Aurora -, o senhor meu pai faleceu.

Miguel, agora com 13 anos, está estudando na Inglaterra. Os gêmeos, prestes a completarem 12, vou deixá-los por perto. Somos mamãe, eu e as crianças. Mamãe anda esquecida, muito estranha. Parece variar, às vezes. Tudo agora depende de mim. Pudesse eu escolher, pegaria meus filhos e iria procurá-la. A saudade dela dói mais que tudo”.

– Eu sempre achei essa minha tataravó super romântica, apaixonada. Apesar de tudo que passou, manteve a fazenda, cuidou da mãe que, como se dizia na época, caducou. O engraçado é que as mulheres da família mantiveram os diários, mesmo com todo preconceito existente. Não diziam nada pra ninguém, mas passaram os diários para as mulheres mais velhas cuidarem. Como sou a mais velha deste século, – Inês riu – tive a sorte de recebê-los. Até parece que aguardavam algo como este momento! Adoro lê-los.

– Eu agradeço por tê-los dividido comigo.

– E ai? Você acha que foi Aurora? Nossa! Estou emocionada, imagine só! Vem ver ela.

– Ver quem?

– Minha tataravó, uai! Aqui está o retrato de dona Maria Clara.

Ali estava ela, sem dúvida alguma. Igualzinha aos sonhos. Maria Clara ou Cintia? Havia dor, tristeza e também fortaleza naqueles olhos, mas também serenidade e… pareceu-lhe, saudade.

– Então? É ela?

– Sem dúvida! Agora vive em São Paulo. Continua uma pessoa mansa, mas forte e muito especial.

– Será que vocês são almas gêmeas?

– Talvez. Quem sabe, não é?

Embora rissem, Aniete sentia que o que lhe haviam dito – os sonhos e no Centro que fora – era verdade e ela queria muito que assim fosse. Estava disposta a mudar e não deixar mais a raiva e prepotência dominá-la.

Durante os dias que permaneceu na cidade, esteve no museu várias vezes, fez amizade com Inês, leu com tranquilidade os diários de Maria Clara, descobrindo o sofrimento e o tamanho da dor de sua saudade, visitou a fazenda da família. Em vários lugares que passou na fazenda, antes mesmo de chegar a eles, sabia o que encontraria. Isto lhe deu a certeza do que fora um dia.

Ao voltar, a primeira coisa que fez sem pensar muito, seguindo – coisa rara – seus impulsos, foi visitar Débora e Violeta. Quando o porteiro avisou quem queria falar com elas nem acreditaram. As duas estavam na porta do apartamento em atitude de “combate” e descrença.

– Caramba! – Débora exclamou. – É você mesmo? Pensei que o porteiro tivesse errado o nome, ou fosse brincadeira de alguma amiga!

– Não, ele não errou. Sou eu mesmo. Posso entrar ou vamos conversar aqui no corredor?

– Ah, claro! – Violeta respondeu. – Desculpe. Entre, entre.

– Obrigada. E, por favor, podem se “desarmar” que não vim aqui brigar nem provocar ninguém.

– NÃO!? – As duas falaram ao mesmo tempo; agora estavam mesmo espantadas.

– Nossa! Andam ensaiando pra fazer dupla? Esse “não” duplo foi harmonia perfeita. – Brincou, sorrindo, Aniete.  – Queria só conversar um pouco.

– Tá! Sente-se, por favor. – Violeta convidou.

– Olha, estive pensando no que me disseram no nosso último encontro, principalmente depois de algumas coisas que me aconteceram. Fazendo uma… retrospectiva mental, pareceu-me que as pessoas que tenho contato, têm certo medo de mim. Então, de repente, tenho necessidade de me conhecer melhor. Saber mais das minhas atitudes.

Falara com calma. Olhava para as duas que simplesmente olhavam de volta, com cara de interrogação.

– Então, não vão dizer nada?

– Você está com alguma doença grave? – Débora pergunta, reticente. – Coisa terminal?

– Não! – Aniete responde, gargalhando. – Eu estou ótima de saúde, apenas aconteceram coisas que me fizeram pensar. Por que não tenho amigos? Por que essa coisa de controlar os outros?

– Você sempre foi assim. – Observa Violeta. – O que aconteceu que te fez ver essas coisas?

– Uma valiosa amiga a quem não dei o merecido valor, me disse algumas coisas. Uma ex-namorada que eu não percebi que tratava mal me disse outras e uma pessoa muito especial chacoalhou-me as estruturas. Além disso, estou descobrindo coisas que não acreditava. Tudo me fez ver que não estou sempre certa. Acho que até sei agora o motivo desta minha raiva, desprezo pelas pessoas.

– Jura? – Débora fala, surpresa. – Gente, taí a prova de que há esperança para a humanidade!

– Não brinca, estou falando sério.

– Eu também! – Afirma Débora. – Juro que estou pasma!

– Se eu não estivesse aqui, presenciando o fato, não acreditaria se alguém me contasse. – Violeta fala.

– Eu sou tão … tão …

– Vingativa? Mesquinha? Prepotente? – Débora completa.

– Nossa!

– Pois é, Aniete. – Confirma Violeta.

– Mas não dizem que as pessoas podem mudar?

– Só o fato de você estar aqui conversando, ao invés de se impor, perguntando, ao invés de determinar e ouvindo o que Deb disse, sem nenhuma reação violenta, já demonstra que você é outra pessoa! – Pondera Violeta.

– Onde é que está a Aniete verdadeira? – Brinca Débora. – Vocês a abduziram e algum de vocês está tomando o lugar dela? Foi sequestrada e você fez uma plástica pra ficar no lugar dela?

Aniete, depois de parar de rir, fala.

– Sou eu mesma quem está aqui, podem acreditar. Talvez o que me aconteceu tenha promovido uma cirurgia plástica interna, que eu espero, tenha melhorado alguma coisa.

– Pelo jeito, melhorou muita coisa. – Afirma Violeta. – Esta nova Aniete está me parecendo uma pessoa real e não aquela coisa amarga. Parece que faxinou o coração. Até aprendeu a rir com vontade!

– Eu sou uma mulher madura, uma profissional competente, exigente com todos, inclusive comigo mesma. Isso não mudou. Pensei que soubesse o que queria, mas descobri que estava errada. Raiva do mundo, vingança sem nem saber o porquê, não traz nenhum beneficio e, isso sim, é que quero mudar. Mudar de atitude diante das pessoas, da vida.

– Não sei o que aconteceu ou “quem” aconteceu, mas foi um ótimo acontecimento! – Afirma Violeta.

Finalmente Aniete descobriu e sentiu o prazer de conversar com amigos sobre banalidades, coisas importantes, sobre tudo enfim, apenas porque se pode, se confia – palavra até então desconhecida para ela. Foi embora com o dia quase chegando.

Então, pensou, estou pronta pra tentar “novas amizades”. No sábado à tarde, arriscou uma visita surpresa na casa de Rejane e Paula.

– Hei! Voltou de viagem! E aí, tudo bem? Mozão, olha quem chegou.

Rejane ao mesmo tempo que falava, abraçou-a carinhosamente. Paula entrou na sala e também a abraçou.

– Oi, Aniete, como vai? Que surpresa boa!

– Desculpem. – Aniete fala, constrangida. – Não tenho o hábito de invadir o espaço alheio, ma cheguei de viagem há dois dias e sabe… queria saber como… Cintia está.

– Aha! – Rejane grita, feliz. – Eu sabia que não seria só aquilo passageiro, já que Cintia nunca foi de auê, nem de se interessar por ninguém.

– Amor, calma, relaxa. – Paula fala. – Vamos lá pro fundo?

– Não. – Responde Rejane. – Você vai e eu fico aqui com Aniete um pouco, quero conversar com ela. Me dá um tempo e pede pra alguém vir aqui – cochicha no ouvido de Paula – , mas não diz quem tá aqui.

– Nem vou discutir! – Responde Paula, sorrindo. – Até daqui a pouco, Aniete. Com licença.

– Senta aí, vamos conversar um pouco. – Fala Rejane. – Cintia tá bem, eu garanto. Agora me conta tudo.

– Bom… – Aniete suspira. – Acho que me convenci de onde vinha tanta mágoa, raiva, mal humor e até uma… certa mania de vingança que sempre tive.

– Credo! Tudo isso? Como Cintia foi se interessar por você? E por que EU não detesto você?

– Talvez porque estejam destinadas a me ajudar a mudar tudo isso. Porque eu realmente quero e preciso me melhorar, com urgência.

– Sério? Muito bom! A sala do coração, quando está cheia de mágoas, egoísmo, raiva, sentimentos de vingança, precisa fazer uma faxina interna. São nossos piores monstros, fantasmas e demônios interiores. E o pior, é que podem nos destruir.

– Podem mesmo, eu que o diga. – Concorda Aniete. – Acho que, pela primeira vez na vida, pedi desculpas a alguém. Percebi que não dói o tanto que pensava, não arranca pedaço, nem me torna menor. Pelo contrário. Depois do que encontrei nessa viagem, resolvi pedir desculpas a duas pessoas que me são caras e não queria admitir. E, se quer saber, me senti muito bem com isso. Mudanças são sempre importantes.

– Uau! To impressionada! É difícil encontrar alguém que reconheça que está gastando a oportunidade da vida de forma errada e se esforçar pra mudar. Tendemos a aprender mais com a dor, mas está me parecendo que, no teu caso, tem algo mais envolvido.

– Acho que comecei a perceber tudo isso depois desse “algo mais”, mas as coisas que fazia, o modo que agia, me causavam solidão e dor que não queria ver.

– Vai. Agora me conta o que aconteceu de tão importante nessa viagem.

À medida que Aniete conta os detalhes, desde a chegada à pequena cidade, Rejane ficava mais impressionada, mais envolvida e, ao mesmo tempo, mais alegre por suas crenças.

– Menina, que barato! – Rejane fala, entusiasmada.

– Impressionante!

As duas se viraram para olhar quem falara e se encontrava de pé na porta.

– Oi, Cintia. – Rejane fala. – Faz tempo que tá ouvindo?

– Oi, Cintia! – Aniete a cumprimenta. – Não sabia que estava aqui.

– Oi, Aniete. – Responde Cíntia. – Desculpe não ter avisado que entrei. Paula pediu pra eu vir ajudar a Re a levar algo que tinha sido entregue e, quando entrei você estava contando que viu os diários e não consegui interromper. Sei lá! Havia uma… coisa no ar. Espero que não pense que foi xeretice, Aniete.

– Por favor, claro que não! – Afirma Aniete. – O que estávamos conversando diz respeito a você e eu. Quando disse que não sabia que estava aqui, quis dizer na casa. Não me dá um abraço de boas vindas?

– Com certeza! – Cíntia se aproxima.

Foi um abraço aconchegante. Algo que, em Aniete, despertou saudade.

– Vou deixar vocês duas conversando e cuidar das “visitas”. – Rejane fala.

– Opa, cheguei em má hora. – Desculpa-se Aniete. – Você está com visitas!

– As de sempre. – Rejane a tranquiliza. – A hora que disser que é você que está aqui, vão querer vir atrapalhar ou te levar pros fundos, então aproveita que têm pouco tempo.

Sentaram-se.

– Me diz como se sentiu ao ler os diários e visitar a fazenda.

– Me senti de volta a uma época, um lugar ao qual já pertencera. Saudades de alguma coisa, dor por outra. Coisas sentidas, mas difíceis de explicar em palavras. – Aniete tenta explicar. – E você, como está?

– Como sempre. Sou uma pessoa tranquila que tenta não se encasquetar com problemas e deixá-los maiores do que realmente são.

– Não sente falta de algo, ou de alguém?

– Claro que sim, sou uma pessoa normal. – Responde sorrindo.

– Não me parece. Acho que quem te conhece bem também te acha especial.

– Apenas tento ser responsável pelo invólucro da minha alma – passou a mão em volta dando a entender que falava do seu próprio corpo -, não ferir ninguém por algo que não esteja bem comigo. Nada de especial, tá vendo?

– Ah, tá! Facílimo este modo de viver! – Ri Aniete.

– Ora, ora! – Gloria fala, interrompendo a conversa. – Você chega e essas duas não nos avisam? Nada de privacidade hoje. Vem logo que a comida e os jogos estão lá nos fundos do quintal. Queremos saber das novidades, onde estava, por que não temos te visto.

Não se arrependeu por ter ido. O local era gostoso, coberto, com uma cozinha fora da casa em um quintal espaçoso. Conversou com o pessoal, tomou um pouco de cerveja, jogou, comeu e divertiu-se muito, sem cobranças.

Em um momento qualquer, Cintia sentou-se ao seu lado. Enquanto conversavam, sentiu a mão sobre a sua e o calor dela era muito gostoso. Quando Cintia entrou para ir ao banheiro, logo em seguida ela também o fez. Ao sair do banheiro, Cintia colocou-se de lado para que ela entrasse. Ao ficarem lado a lado, olharam-se nos olhos, seguraram-se pelas mãos e lentamente se beijaram. E, naquele beijo, Aniete teve a certeza que já haviam se beijado antes, muitas e muitas vezes. Ao se separarem, havia lágrimas em seus olhos. Nada mais precisava ser dito sobre o passado, sobre os porquês das saudades inexplicáveis.

– Vai. – Cintia afirma. – Te espero aqui.

Ao voltarem.

– E aí, gente, o que aconteceu? – Curiosa, Rejane pergunta.

– Apenas um beijo, minha caríssima amiga, que confirmou aquilo que já conversamos. – Cintia, calmamente, responde.

– E está tudo bem entre vocês? – Insiste Rejane.

– O que foi confirmado? – Quer saber Glória. – Cês estão esquisitas! Sei que existe um certo clima entre vocês, mas não que estão de segredos.

– Ô Gloria, não é segredo nenhum. – Rejane responde. – Vocês é que começam a brincar quando o papo é sobre espiritualidade, encarnação e é sobre isso que estamos falando agora.

– Por isso que ficou conversando sozinha com ela? – Paula pergunta. – E o que Cintia tem com isso?

– Elas não conhecem a história? – Aniete indaga.

– Sobre os sonhos e a visita ao Centro? – Responde Rejane. – Claro que não! Ficam de brincadeira, a gente acaba brigando, mas na hora do aperto gritam por socorro, então quando o assunto envolve essas coisas, evitamos falar com elas.

– Mas agora a gente quer saber qual é o babado, com certeza.

Então, com várias interrupções por questionamentos, com ajuda de Rejane, Cintia e Aniete contaram detalhadamente os acontecimentos desde quando se conheceram, até o momento atual.

– Foi por isso que você sumiu! – Gloria fala. – Estava de férias, viajando?

– Sobretudo pensando. – Responde Aniete.

A conversa continuou com muitas perguntas e se despediram com o sol já brilhando.

Já na rua:

– Cintia, podemos nos encontrar mais tarde? – Aniete indaga. – Já me desculpou pela minha atitude do dia do Centro?

– Rejane me contou a conversa de vocês e sobre as desculpas, então não tem porque não esquecer. E você? Já conseguiu perdoar Maria Clara por suas dores?

– Depois de ler seus diários e ver o quanto sofreu e não conseguiu ser feliz, nem esquecer Aurora até o fim de seus dias? Não tem como não admirar uma pessoa assim, com um amor tão profundo, sincero; tinha mais é que pedir perdão a ela por carregar ódio, raiva, ressentimento, vontade de vingar-se, como se ninguém mais tivesse sofrido.

– Acho que ela, pelo que você disse que leu, jamais teve algum pensamento ruim para Aurora. Afinal, não perdoar é tomar veneno esperando que o outro morra.

– Profundo isso! Surgiu agora ou sempre pensou assim?

– Imagina! Eu li em algum lugar e concordei, só isso.

– Sabe, o amor que li naqueles diários é o tipo de amor que acho que todo mundo procura. Algo profundo, sem cobranças, que dá força pra encarar o medo e coragem para resistir à vida, porque foi vivido, sentido e a esperança de um dia chegar a ver a pessoa amada, faz a gente ir em frente. É invejável!

– De certa forma, era seu esse amor. Amor pra ser bom precisa ser abnegado, ter desprendimento. Não consigo entender as pessoas que procuram alguém pra dar seu amor, mas com padrões estéticos e vários outros. Ninguém permanece imutável. Acredito que todo mundo tenta se cuidar, dentro de suas possibilidades físicas, emocionais e psicológicas, mas daí a pensar que alguém fora de seus “padrões de beleza”, não seja adequada a ser amada, acho absurdo.

– Entendo o que você quer dizer. Até um mês atrás, eu era assim. Só me envolvia com pessoas socialmente aceitáveis pelos meus padrões e depois não as respeitava. Talvez fosse apenas mais uma demonstração da minha “capacidade”, sei lá. Você tem razão, envelhecemos, adoecemos. Engordamos e emagrecemos. Vem celulite e rugas. Tem dias que ficamos, sem motivo aparente mais alegre ou mais triste, mais calada ou falando mais. O ser humano é bem complexo.

– É bem por ai! Já vou avisando que não faço regimes, como doces; não o tempo todo, claro, e não gosto de controle.

– Opa! Vislumbrei sinal verde para aproximação total?

– Talvez. Depende do que você quer. Tive um bom casamento, embora não a amasse da forma que era amada. Nunca amei alguém… – Cintia sorri -, pelo menos nesta vida, mas sempre acreditei em relação sincera. Portanto, depende do que você queira pra começarmos algo. Eu sei o que quero e sei que posso amá-la de fato, mas esse tipo de coisa depende de duas pessoas.

Pararam em frente à casa de Cintia.

– Uau! Gostei. Posso entrar?

– Hum… não! Hoje, não. Pense primeiro. O que tivemos em algum lugar, em algum tempo, não nos obriga a nada agora. Acredito que o amor verdadeiro é aquele que nos faz procurar alguém pra fazermos feliz, não para nos fazer feliz. Sem desprendimento, continuamos arraigadas ao EU, ao invés de NÓS. Eu quero o NÓS, com todos os nós desfeitos. Com sinceridade, sem guardar palavras que poderiam magoar, mas, ao não serem ditas, acabam ocasionando doenças graves no físico e na relação. Ou aparecem descontroladas nas horas mais impróprias e ferem profundamente. Decida-se primeiro.

– Eu já me decidi! O que mais fiz esses dias foi pensar. Embora tenhamos tido pouco contato, sinto tua falta. Quando fui à casa de Rejane e Paula, foi pra conversar a teu respeito. Pra dizer da saudade estranha que sinto. Voltei da viagem disposta a mudar algumas coisas em mim e te conquistar.

Cintia abriu um sorriso maroto e deu um suave beijo nos lábios de Aniete.

– Mas o “não” pra hoje persiste e tem tudo verde pra tentar me conquistar. – Despede-se Cintia. -Tchau.

Aniete ficou na calçada, vendo-a entrar. Foi buscar seu carro que ficara na frente da casa de Rejane. O dia estava lindo e começando – parece que tá virando hábito ir pra casa com o sol chegando e sem ser por lucro monetário, pensou. Portanto, iria descansar o quanto pudesse, porque no dia seguinte começaria a sua mais importante batalha, que seria a de não deixar a “velha” Aniete se impor e fazer dessa “nova” que, por sinal, era capaz de amar, conquistar a sua vida. Vida que com certeza, seria plena, pois agora era capaz de ter amigos, sorrir e rir com vontade, jogar a raiva e a amargura fora. Podia até … olha só! Perceber a beleza do dia nascendo! Coisas simples, coisas fáceis!

– Nossa! Estou até cantando! Nem sabia que sabia cantar! De fato, tudo pode ser maravilhoso, basta mudar de atitude.

Sem se controlar, num impulso, antes de entrar no carro gritou a plenos pulmões.

– CINNNNNTIAAAAAAAA!

Dentro de sua casa, Rejane e Paula riram.

FIM.



Notas:



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