Diferentes?

Capítulo 3 – Cinderela às avessas

Ela tinha razão. Devia ir embora. Estava confusa e precisava espairecer. Não senti mais vertigem, mas resolvi marcar uma consulta de rotina. Fui falar com Dagoberto para não deixa-lo na mão e depois fui para casa.

Cheguei em casa, coloquei uma roupa confortável e fui sentar na varanda. Fiquei pensando em tudo que eu passei na sala de Sophia. Estava inquieta, pensava em um milhão de coisas para me justificar em minha atitude e minhas reações. Pensava que aquela mulher despertara em mim muita admiração pela sua personalidade, capacidade de liderança, conhecimento e competência. Admirava também a sua beleza e elegância, além de ser uma mulher que atingira um alto posto em uma multinacional. Isto era para poucos.

— Definitivamente é isso. Sinto muita admiração por ela.

Falava baixo para mim mesma numa tentativa torpe de explicar o inexplicável. Resolvi sair e tomar um chope para relaxar. Liguei para uma amiga minha que morava bem perto para irmos ao Bar Urca.

Donna era minha amiga desde a época de colégio. Ela fez faculdade de cinema na mesma universidade em que cursei engenharia química. Acabei indo para a área de gestão e ela acabou parando em uma emissora de TV, atuando como diretora em programa de variedades. Tudo poderia ser bem normal, a não ser pelo fato de que ela sempre me chamava durante a semana para sairmos e eu nunca ia, pois meu horário de trabalho não permitia que me aventurasse durante as tardes cariocas.

— Oi, Donna! Tô indo tomar um chope no Bar Urca. Você tá fazendo alguma coisa?

— Você terminou com Marcos?

— Terminei. Como sabe?

— Não sabia, só que além de nunca me ligar à tarde para sair, Marcos era um “pé no saco” comigo. Pra falar a verdade, você sabe que ele nunca gostou de você ter amizade comigo por eu ser lésbica.

— Ah! Fala sério que você pensa isso? Ele pode ser tudo, mas nunca falou nada de você.

— Lógico que não. Ele sabia que nós somos amigas desde a adolescência, ele não iria querer perder a escora dele.

— Você sempre me falou isso e eu nunca dei ouvidos.

— E a que conclusão chegou?

— Que preciso prestar mais atenção no que você fala! – Sorri ao escutar a gargalhada da minha amiga do outro lado da linha. – Como é? Vai ou não vai tomar um chope comigo?

— Minha querida amiga, você acha mesmo que perderei a oportunidade de tomar um chope com você, num dia de semana ensolarado?

— Então já estou saindo e te encontro lá.

— Falou!

Enquanto caminhava pela rua para chegar ao bar, fiquei pensando seriamente se falaria alguma coisa para Donna. Afinal de contas ela era lésbica e eu não estava muito a fim de ouvi-la dizendo que eu senti alguma coisa por Sophia, pois isso não era verdade. Eu apenas estava admirada com a minha nova “chefe”. “Mas por que eu estou preocupada em achar que a Donna falaria alguma coisa a esse respeito? Isso não faz sentido” – Pensei.

Cheguei ao bar e pedi uma mesa próxima à janela para admirar a mureta e a enseada de Botafogo. Pedi logo meu chope. Queria dar uma boa golada na gelada bebida. Há muito tempo não me dava este prazer e estava começando a relaxar verdadeiramente. Fiquei feliz pela decisão, pois o dia estava lindo e eu começava a sentir a minha liberdade.

— Não é que minha amiga voltou mesmo?

Sorri para Donna que acabara de chegar. Sentou-se e já fazia sinal para o garçom trazer mais um para ela.

— Meu Deus, garota! “Cê” tá magra pra cacete! Foi dieta ou problema?

— E importa?

— Não, na realidade o resultado final está muito bom.

Gargalhei, pois sabia que Donna falaria isso, pois ela sempre foi estilo “gostosona”. Tudo nela era “ona”, tipo assim; quadril largo e bunda arrebitada, seios fartos e coxas grossas. Estaria tudo bem se ela não tivesse que fazer dieta ou exercícios físicos para não engordar, pois ela era do tipo que se comesse vento engordava. O garçom chegou com o chope dela e ela brindou comigo.

— E aí? O que houve com a “bichinha” do seu ex?

— Cara! Ele tá um saco, me ligando todo dia. Já tem uns quinze ou vinte dias que terminei com ele e ainda fica no meu pé.

— Ele ainda tá trabalhando com você?

— Deus me livre! Demiti também. Não “tava” fazendo nada na empresa.

— Eu avisei.

— Tá. Eu sei que você falou que era “furada” colocar ele para trabalhar comigo, mas ele era prestativo…

— …Prestativo enquanto não fincava o pé lá dentro. Desde o início eu falei que ele fazia corpo mole.

— Você fala de todos os meus namorados.

— O que posso fazer se você tem chamariz pra malandro, “dedo podre” para homem… Cara! Parece que você tem um “feromônio” atrativo de pilantra! – Rimos juntas.

— Tá. Tá bem. Não vou discutir de novo isso com você.

— Da próxima vez, você me chama para sair junto. Se eu fizer sinal pra cair fora, você corre.

Nós duas gargalhamos. Donna era assim. Simples, nada a incomodava e não dispensava uma boa sacaneada.

— E você? Tá com alguém?

— E eu deixo de estar com alguém?

Balancei a cabeça em negativa e sorrindo. Ela nunca ficava mais que dois ou três meses com uma garota e isso porque resolvia que ia dar uma chance para o namoro. Quando estava sozinha, saía pelo menos duas vezes por semana para “beijar na boca”, como ela mesma falava.

— Estou falando sério. Já estou namorando há uns cinco meses.

— Cinco meses? Como eu não soube disso?

— Cléo, a gente mora no mesmo bairro, mas é como se morássemos em outro planeta. A gente não se vê há mais de oito meses.

— Mentira! A gente não está tanto tempo assim sem se ver!

Ela agora balançava a cabeça sorrindo. Fazia isso quando não queria continuar a conversa, pois sabia que iriamos cambiar para a discussão.

— Tá, mas me conta o que a “ameba” fez desta vez.

Contei para ela o que vinha acontecendo no meu relacionamento com o Marcos e o que ocorreu na minha sala na empresa. Ela ficou pasma, dava umas opiniões até que a conversa chegou à minha vida sexual. Era inevitável dado o tipo de intimidade que a gente sempre teve.

— Você alguma vez chegou a sentir prazer com esse projeto de playboy?

— Mmmm deixe-me ver… No início, ele me estimulava muito, mas na realidade na maioria das vezes, ele não fazia exatamente “bem” para me dar orgasmos toda vez que a gente transava.

— E por que você demorou a despachar esse pastel? Cléo, fala sério! Você é uma mulher “arrumada”, inteligente e dona de sua vida.

— E burra emocionalmente.

— Caraca! Do jeito que você é com os caras talvez fosse melhor você ficar com uma mulher, sabia?

Eu tinha certeza que Donna nunca realmente achou que eu poderia me relacionar com uma mulher. Sempre me falava isso ao final de um fracasso meu em algum relacionamento, mas dessa vez essa brincadeira me afetou mais do que eu queria. Dei um grande gole no meu chope e desviei o olhar para fora da janela. Tentava me tranquilizar na calmaria da enseada.

— Cléo? Aconteceu alguma coisa?

Droga”! – Pensei. Donna me conhecia melhor do que qualquer outra pessoa na face da terra. Na realidade, nós éramos muito amigas desde muito jovens e eu fui a primeira pessoa que soube de sua sexualidade. Quando me contou, não tínhamos mais que quinze anos e me choquei com a revelação. Cheguei a pensar em me afastar, ou melhor, cheguei a me afastar um tempo, pois temia, em uma ignorância infantil, que descobrissem e que achassem que eu também era lésbica. Isso não durou muito tempo, porque eu gostava tanto dela que me fazia mal ficar longe. Senti-me mal em me afastar, pois sabia que ela estava sofrendo duplamente. Por descobrir que todos condenavam e por eu, sua melhor amiga, me afastar também. Quando, numa tarde voltei do colégio e minha avó me chamou, pois andava me vendo pelos cantos e sem a minha fiel amiga a tiracolo, conversou comigo. Contei que sentia falta de Donna, mas que ela havia me contado que tinha feito algo que se as pessoas descobrissem, iriam discriminá-la e tinha medo que, por ser sua amiga, fizessem o mesmo comigo. Minha avó perguntou se eu estava sofrendo com isso. Respondi que sim. Foi quando ela perguntou se eu achava que, por ela ter feito essa “coisa”, ela seria diferente comigo ou para mim. Eu pensei um pouco e respondi a minha avó que tinha certeza que não. E minha avó falou: “Então o que te importa o que os outros pensam se para você, o que vale é o que a Donna pensa”? Essa foi uma das maiores lições que recebi de minha avó. No mesmo dia procurei Donna em sua casa, pedi desculpas e pedi que não deixasse de ser minha amiga. Choramos juntas naquela tarde e a partir dali, choraríamos e riríamos durante muitos anos.

— Cléo! Cléo! Sua cabeça está onde? – ela me chamou — O que está acontecendo com você?

— Não está acontecendo nada!

Donna me olhou indignada.

— Não acredito que depois de tantos anos, você ainda tem receio de me contar algo!

Olhei novamente pela janela. O problema não era contar, o problema estava em ouvir… Suspirei.

— Tudo bem, mas não quero ficar mais aqui. Vamos lá para casa. Tenho umas cervejas na geladeira.

XXXXXXXXXXXXX

Eu me sentia bem no conforto da minha casa e quando chegamos fui direto pegar duas long necks.

— Senta aí que já volto.

Donna se esparramou no meu sofá e abraçou uma almofada. Quando voltei me olhava preocupada.

— Calma que você vai ver que não é nada demais, tá?

— Sei. Só vi você assim quando tinha uns dezoito anos. Pagava paixão pra um garoto que não estava nem aí para você, mas como você já cresceu “tô” quase achando que é problema com drogas!

— Para de drama! Já falei que não é nada demais.

— “Tô” escutando…

Inspirei fundo e comecei a contar desde quando conheci a “senhora olhar de falcão” até o que ocorreu na manhã de hoje.

— …Então é isso.

Terminei meu relato e Donna continuava calada e séria. Depois de um tempo ela me olhou e começou a gargalhar.

— Que é que foi? Por que você está rindo?

Ela continuava rindo e começou a falar.

— É que eu não tô acreditando que você não queria me contar isso. No mínimo estava achando que eu iria te zoar e que iria dizer que está apaixonada pela mulher!

As gargalhadas dela estavam me irritando e eu explodi.

Tá vendo porque eu não queria te contar? Sabia que você faria isso!

Falei irritada. Ela começou a forçar parar de rir e foi falando.

— Com sinceridade, Cléo, não acho que está apaixonada por ninguém, mas se estivesse? Não acha que essa mulher supera qualquer cara que você tenha tido?

Fiquei confusa. Ela não achava que eu estava tendo reações estranhas com a mulher?

— Você não acha que eu estou tendo reações estranhas com a mulher?

— Estranhas, sim, mas daí a estar apaixonada vai uma grande diferença.

Ela ainda sorria, mas tinha se controlado.

— Primeiro. Você falou que a primeira vez que a viu foi desagradável. Você sentiu algo naquele encontro?

— Não! – Falei enfática. – quer dizer… não sei bem, pois hoje analisando, eu fiquei um pouco sem ação diante dela. Não sou assim.

— Então, você poderia estar só um pouco mexida por conta da história do Marcos e aí, quando ela te deu atenção, você se sentiu confortada. Só isso.

— Então você não acha que as coisas que estava pensando… Sentindo…

— Olha para mim, Cléo. Não é que eu não ache que não possa acontecer. Já vi muita mulher depois dos trinta, que sempre foi “hetero”, se apaixonar por outra mulher. Isso realmente acontece. A maioria fala que se apaixonou pela pessoa, mas depois que termina, quando termina, a maioria não volta a ter relacionamentos com homens. Não achei nada demais na história, mas eu te pergunto, e se você tivesse se apaixonado? Você acha que seria uma coisa tão ruim assim?

— Donna, não é que eu tenha preconceito com ninguém, mas vamos falar sério, o que nessa altura do campeonato eu faria com uma mulher?

— Talvez algo melhor do que com um homem… – já iria interrompê-la, mas ela me brecou abanando a mão. – Já disse que não acho que seja o caso, mas… Mas, se realmente fosse, digo hipoteticamente, você acha que faria de você uma pessoa ruim, sem caráter, sem respeito, ou o que?

— Você sabe minha opinião sobre homossexualidade. Não vejo nada de errado, mas não sei como conduziria minha vida. Nunca senti qualquer coisa por mulher!

Estava angustiada, pois sabia que minha amiga possivelmente não entenderia a minha ótica. Ela se assumira muito jovem e essa condição sempre fez parte de sua vida.

— Como essas mulheres com mais de trinta anos que você falou, que se apaixonaram por outras mulheres, se viraram com essa informação? O que eu quero entender é, por que nunca se sentiram desse jeito em relação à outra mulher antes e sim, mais velhas?

Donna me olhou um pouco mais séria. Ainda estava agarrada a almofada e balançava a cabeça em negação.

— Cléo, você pode gerir projetos de qualidade em empresas, mas gerenciar a vida racionalmente você não pode. Será que não vê que, isso tudo pode ser só uma impressão errada que teve de um momento de fragilidade perante a “toda poderosa” da empresa? Por que se preocupar com uma reação que nem chegou a ser um fato real? Olha. – Donna deu uma pausa para tentar arrumar palavras melhores para se expressar. — “Me escuta” só um momento. “Me responde” com sinceridade o que você acha que sentiu, pois eu não estou vendo qualquer traço de que você tenha sentido algo em relação a essa mulher! Não estou vendo “o porquê” da sua preocupação!

 Parei um instante e inspirei fundo. Tentei rememorar com detalhes os minutos que passei naquela sala.

— Porque simplesmente… Simplesmente… ME SENTI EXCITADA COM OS TOQUES DELA!

Falei exasperada, derrotada e baixando minha cabeça envergonhada.  Em verdade, eu estava relutante porque não queria admitir para mim o que senti dentro daquela sala. O que senti quando os suaves toques de Sophia me fizeram despertar para algo tão inusitado que chocaram a mim mesma.

A expressão de Donna era de espanto. Deixou a almofada de lado e abriu a boca para falar diversas vezes sem emitir o menor som. Essa atitude me deixou mais nervosa e vexada, pois eu nunca tinha visto minha amiga sem palavras. Levantei no automático indo até o bar pegar algo mais forte. Definitivamente cerveja não estava me aliviando naquele momento.

— Desculpa, Cléo. Não é o que parece. Só estou tentando processar a informação tá legal?

— Qual a informação? De que eu sou lésbica e sempre ignorei isso? Ou de que eu sou lésbica e você nunca percebeu?

Peguei uma dose de whisky e virei de uma só vez. Ela chegou perto de mim e tirou o copo de minha mão.

— Para com isso que da última vez, tive que cuidar de você durante dois dias. Você vomitava o quarto todo e não aguentava que eu abrisse nem a cortina.

— Para isso que servem as amigas.

— Não. As amigas servem para não deixar fazer a burrada e não para cuidar da burrada. Vem cá. Senta aqui no meu lado.

Ela me levou até o sofá e me sentou como uma adolescente que acabara de falar para amiga que tinha perdido a virgindade e era exatamente desse jeito que eu me sentia.

— Por que você acha que se sentiu excitada?

— Como, porque eu acho que me senti excitada? Eu simplesmente me senti excitada! Pele arrepiada a cada toque, pensamentos sensuais em relação a ela e…

— E?

Donna elevou as sobrancelhas e eu respirei profundamente. Aliás, não iria demorar a hiperventilar de tanto que estava inspirando e expirando fundo naquele dia.

— Umidade, sacou?

— Umidade? Mmmm… Ah! Umidade!!!?

— É. Entendeu agora ou quer que eu faça mimica?

Olhamo-nos por uns instantes e começamos a rir. Era uma conversa estranha, mas engraçada. Parecia que tínhamos voltado no tempo quando conversávamos sobre nossas conquistas juvenis. Mesmo nessa aparente descontração, eu estava apreensiva quanto à opinião dela. Quando conseguimos parar de rir, ela levantou e foi até o bar.

— O que você está fazendo?

— Colocando uma dose de whisky para mim. Tô precisando…

— “Merda”, Donna!

— Que é que eu posso fazer? Você me pegou com a “bunda de fora”, sabia? Eu “tava” preparada para você dizer que “tava” sofrendo por aquele babaca, que “tava” deprimida com o trabalho, que “tava” usando drogas, mas não que estivesse tendo um surto lésbico!

— DONNA!

— O que “fooiii”? Tô sendo sincera!

Depois dessa pausa, eu e Donna conversamos muito, bebemos muito, ela me sacaneou, mas não chegamos a nenhuma conclusão. Já era tarde da noite e estávamos literalmente bêbadas. Nem lembro qual foi a última vez que fiquei “chapada” desse jeito, mas sabia que não conseguiria ir trabalhar. Donna acabou caindo na minha cama e eu resolvi dormir também.



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2021 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.