Diferentes?

Capítulo 31 — Sabor de vida

O dia foi muito gostoso e minha mãe não cansava de tecer elogios a Sophia. Estava encantada com ela e eu cheguei a brincar com meu pai dizendo que ele perderia a mulher e eu a minha se continuassem nesse “tititi” todo. Meus pais haviam sido professores universitários. Eram pessoas relativamente cultas e conversavam sobre tudo. Sophia também estava encantada com eles e eu nunca me senti tão feliz em minha vida. Parecia que o mundo havia me jogado na lama e depois se arrependeu dando-me o banho quente, roupas limpas e um lugar aconchegante para me compensar de seu erro.

Sophia fez reserva em um restaurante japonês no mirante do morro da Lagoa da Conceição. E me pediu a aliança. Fiquei um pouco incomodada, não por duvidar de sua intenção, mas apesar do pouco tempo, a aliança estava acomodada confortável em meu dedo.

— Eu falei a seu pai que seria formal, não falei? Então, assim será.

Deus do céu! Eu não acredito que ela vai fazer isso comigo? Vou morrer na hora!

……………

Todos nós apreciávamos demais a culinária japonesa e o jantar transcorreu muito agradável. Quer dizer… exceto pela a “rasgação” de seda dos dois lados que estava demais! Eu estava me sentindo a filha colocada de lado por uma nova filha e posta de lado pela noiva que parecia que ia casar com os meus pais.

— Galera. Quer parar um pouco com isso? Sophia está mais cheia que tanque de gás de taxista quando abastece e vocês tem filha, falou!

Eu não estava realmente com ciúme. Queria mesmo era mexer com eles, pois não estava acreditando na boa aventurança de tudo estar certo e nos lugares. Era uma forma de me beliscar mentalmente para ver se estava sonhando.

Todos riram e de repente chegou um balde com “Champagne” e taças.

— Sophia, o que você está aprontando?!

— Aprontando nada. É apenas como deve ser e como manda o figurino.

Vi surpresa nos olhos de meus pais. Eles achavam que Sophia estava brincando quando falou logo cedo em resposta a meu pai. Mas eu sabia que para ela era muito sério o que disse.

Ela pegou uma caixinha envolta em cetim branco de sua bolsa. Autorizou o garçom a servir o “Champagne” e colocou a caixa no centro da mesa.

— Senhor e senhora Boaventura. Há alguns meses atrás, conheci uma pessoa maravilhosa que mesmo diante de tantas circunstâncias contraditórias, não consegui refrear meu encantamento e meu afã de conhecê-la. Deixei-me levar, a princípio pela curiosidade por tal pessoa despertar em mim sentimentos indizíveis. Confesso que me assustei com o que deparei e o que despertou em mim. — Sophia inspirou transparecendo uma emoção incontida. – Tentei correr e magoei esta pessoa por algumas vezes, mas cada vez que o fazia, a dor se instalava em meu peito como algo imensurável e devastador. Precisou que minha vida estivesse à prova para ver o quanto meus conceitos pré-concebidos eram descabidos diante de tamanha felicidade que era estar ao lado dela. E nesse momento, peço a benção de vocês para tornar a minha felicidade real e, acredito que a dela também. Vocês abençoam a minha união com Cléo Boaventura, filha de vocês?

Sophia abriu a caixa com as duas alianças e ofereceu a meus pais.

Minha mãe tinha os olhos marejados e estendeu sua mão para que Sophia depositasse a caixinha sobre sua palma. Pegou a mão de meu pai, em choque, diga-se de passagem, e sobrepôs nas alianças. Meu pai estava parado e não conseguia sair da catatonia que o tomou. Acho que por essa ele não esperava. Sacaneou o dia inteirinho a nós duas e agora estava paralisado. Não poderia deixar de acontecer um momento de graça, não é mesmo? Minha mãe o acotovelou e ele sacodiu espantado olhando para ela.

— O que? Que é que faço agora? – Ele perguntou.

Sophia não pode conter um riso frouxo. Ela a seu modo era uma sacana. Olhei para ela com os olhos estreitos, e quase querendo bater. Ela sabia que “causaria”. Filha da mãe! Mas não pude deixar de me emocionar. O que ela falou, não deixou de ser um resumo do que ela passou ou sentiu durante o nosso processo e apenas agora revelava.

— Você é inacreditável! – Minha mãe falou para meu pai. — Mexeu com ela o dia inteiro e não sabe o que falar?

— Como assim? Ela pegou pesado! Atacou com uma bazuca!

Gente! Ninguém aguentou. Até Sophia perdeu a linha e gargalhou! Olhou-me rindo.

— Agora entendo de onde vem seu humor.

Disse-me com os olhos cheios d’água de tanto rir.

— Você nem sabe o quanto sofri em minha infância. Imagina isso todo dia.

Nosso riso foi abrandando e ela segurou minha mão.

— Pois eu agradeço a eles imensamente por isso… por você ser quem é.

— Então… – minha mãe falou. – Terminando as formalidades. Eu vou falar.

Minha mãe estendeu sua mão para segurar a minha. Colocou sob a caixa das alianças. Fez o mesmo com Sophia pondo a dela sob a minha e pôs a mão de meu pai por cima da caixinha pondo a sua por último por cima, recobrindo tudo.

— A nossa felicidade já foi realizada há anos atrás quando nos casamos e demos vida a essa linda mulher. Hoje, depois de anos e construções em nossas vidas, experimentamos a força de um grande amor como o nosso. Que a luz e a felicidade se faça nas vidas de vocês, como a que tivemos ao longo das nossas. Sigam com as nossas bênçãos e que cada obstáculo, seja algo para fortalecê-las cada vez mais na estrada que escolheram trilhar.

Não precisava dizer que eu chorava copiosamente e vi meu pai soluçando que nem um elefante marmanjo. Sophia me abraçou acalentando-me e minha mãe consolava meu pai. Brega, mas emocionante!

……………

Agora imaginem que eu e a Sophia estávamos no “AP” de meus pais de três quartos na beira da Lagoa da Conceição. Vista linda, mas para os padrões da minha poderosa… E sabem o que mais? Parecia que isto fazia parte dela e que a vida toda tinha sido assim. Classe média brasileira, andar de chinelo “Havaiana” e sair para comprar pão na esquina. Irreconhecível… em parte. Pois, qualquer lugar que essa mulher entrava eu me irritava, e por quê? Não era o que vestia, mas a postura. Olhares de homens e mulheres se voltavam para ela com admiração e até mesmo desejo. Que raiva! Sabem Carmen Mayrink Veiga? Aquela coroa que até de short desfiado é “classuda”? É isso. Nessa hora achava saco, viu?!!

………

— Se estiver pesado, carrego a sacola para você mesmo que more no alto da Praia Mole!

Isso foi a cantada de um cara… Para mim!!!

— Pode deixar que ela não tem nenhum retardo mental como você e já tem acompanhante.

 Isso foi Sophia em resposta. Como a Donna fala; “bolei”!

Fui rebocada por ela que estava bem irritada e saímos da padaria.

— Que foi? – Perguntei diante da sua irritação.

— Será que dá para esses idiotas com testosterona no cérebro pararem de sobrevoar você iguais a urubus?

Eu comecei a rir e segurei seu braço retardando nosso passo.

— Por que está rindo? – Ela continuava irritada.

— Porque pensei a mesma coisa quando entramos naquela padaria, mas em relação a você. Várias pessoas te olhavam e eu só enxergava olhares libidinosos.

— Então empatamos.

Ela parou de vez. Olhou-me e… Sorriu.

— Acho que a gente vai ter que aprender a lidar com isso, não é mesmo?

— Acho que sim.

— Na realidade nunca me importou se olhassem ou se insinuassem para o Cássio…

— Eu também não. Nunca me importei com qualquer namorado meu.

Olhamo-nos e começamos a rir. Voltamos a caminhar tranquilamente uma ao lado da outra.

……………

Chegamos a casa com as compras da padaria para o lanche da tarde.

— Mãe, chegamos!

Minha mãe veio da cozinha e disse que estava fazendo um cheesecake para o dia seguinte.

— Mmmm! Que gostoso! – Abracei minha mãe. – Por que só para amanhã?

— Porque tem que ir à geladeira e a Donna chega com seus amigos.

— Ãh! Como assim?

— Ela ligou e disse que estava com saudades de nós. Alugaram (em) uma pousada na rua de trás. Ela não falou nada para vocês? Disse que queria fazer um churrasco na Lagoa do Peri para a namorada conhecer.

— Mãe, a Donna é louca! Churrasco na Lagoa do Peri?

— Ué minha filha! Que eu saiba a Lagoa do Peri tem um monte de churrasqueira para isso!

— “Alôou”! A última vez que estive lá, as churrasqueiras não existiam mais e nem tijolo para fazer improvisado tinha.

— Ah, minha filha! “Cê resolve” com ela. A amiga é sua.

 — Valeu!

Sophia se divertia comigo e minha mãe, pois ela não parava de rir e ainda a apoiava.

— Sua mãe está certa, Cléo.

— Sophia, não sacaneia. Pois você não conhece Donna e você estará no meio do churrasco se bem a conheço, mesmo que ela resolva fazer o churrasco aqui na porta do prédio!

O sorriso de Sophia morreu e minha excelentíssima mãe saiu para a cozinha gargalhando.

Resultado. Chegaram à noite. Saímos para comer e jogar conversa fora e não consegui convencer a Donna de esquecer o churrasco. A Mel também veio com a Isles e a Sophia estava bem feliz com isso. Dia seguinte me recusei a ir até a Lagoa do Peri, pois sabia que eles “dariam com os burros n’água” e a lagoa estaria lotada, sem nenhum espacinho para acomodar um grupo como o nosso. Pasmem. Mel estava toda animada seguindo o grupo e querendo fazer farofa na Lagoa do Peri.

— Cléo, não acha que ficou mal não irmos com eles?

— Vai por mim. Dago vai odiar e você também odiaria. Eles vão voltar correndo porque não tem espaço para ficar lá.

O meu celular tocou e olhei o número. Sorri. Era o Erick.

— Vamos ver o resultado? – Perguntei para Sophia atendendo o celular no viva voz. – Alô, Erick?

— Cléo! Me livra dessa sapata dos infernos! Ela quer arrumar espaço cinquenta metros lagoa à dentro! Não tem lugar nem para descansar o dedo mindinho!

Sophia gargalhou e eu também.

— Passa esse telefone para a Donna.

— Agora mesmo!

Depois de um minuto de silêncio Donna atendeu. Acho que ela não queria falar comigo, dado o tempo que demorou a atender.

— Eu quero churrasco, Cléo! Nem vem! – Essa era Donna.

— Vem para cá que a gente vê um jeito.

— Não. Nem adianta você querer me levar para churrascaria.

— Não vou te levar para churrascaria. Já disse que a gente dá um jeito. Vem logo.

— Tá. Tô indo.

Sophia não parava de rir.

— Viu o que eu falei?

— O que você vai fazer?

— Dar um jeito. Fazer o que, né?

Eles voltaram e eu já havia visto um espaço na beira da lagoa da Conceição sob umas árvores para acomodar o grupo. Comprei uma churrasqueira de camping, levei umas cadeiras de praia e quando chegaram com os isopores, com as carnes e os aparatos, estávamos prontos para uma digna farofa carioca.

Para falar a verdade, o dia foi maravilhoso. Tenho que admitir que a Donna, apesar da teimosia, sabia armar uma bagunça no bom sentido. A Rizzoli se mostrou uma churrasqueira de mão cheia e mais para a tarde estávamos em um semicírculo de cadeiras tomando cerveja e conversando alheios aos olhares. Olhei Sophia e pensei que se fosse uma endinheirada esnobe, estaria odiando! Mas ela não estava. Conversava, sorria e estava descontraída, completamente desligada do que nos aconteceu. Também, quem iria imaginar Sophia Vasto Arqueiro sentada entre amigos em um churrasco na beira da Lagoa da Conceição em “Floripa”? Eu sorri e o celular dela tocou.

Comecei a me preocupar, pois ela levantou da cadeira e se afastou do grupo. Fiquei observando um pouco tensa. Quando ela voltou, eu relaxei. Ela retornou com um enorme sorriso e sentou-se ao meu lado.

— Meu amor! – Ela falou em um tom jocoso e alegre. – Sua noiva está “quase” empregada novamente!

Pulei imediatamente no pescoço dela fazendo festa.

— Alguém ligou para te contratar!

Ela ria igualmente me abraçando.

— Não. Apenas o meu plano e de Bartolomeu deu certo. Isso é o que foi o mais gostoso!

— Não acredito!

— Eu também estava descrente, mas parece que aquele presidente daquela empresa italiana de massas que fez aqueles comentários homofóbicos há um tempo, abriu um enorme precedente para que a ideia do Bartolomeu desse certo.

— E como foi rápido! Nunca imaginei que em duas semanas surtisse algum efeito.

— Para falar a verdade, nem eu Cléo. Nunca me atinei para esse tipo de força destas entidades. Mas acho que depois destas ondas de ódio pelo mundo, seja a nível de religiões, a nível de governos, ou mesmo empresas de grande porte que se pronunciam contra a livre expressão da sexualidade, as entidades que lutam pela causa estão mais atuantes. Lançar um desafio dentro destas entidades e um boato de que a Grasoil me forçou a demissão por conta de minha sexualidade fez com que algumas campanhas corressem contra a minha saída. A imagem da Grasoil não está lá estas coisas depois disto.

— Também sabia disto. Depois que você me contou o que planejaram, entro todo dia no site do Daily Newspaper e o Financial Time.

— Veja bem. Nunca me pronunciei a esse respeito para qualquer destas entidades, mas o fato é que um contato aqui fora para com eles, já detonou tudo.

— Como assim? Você e o Bartolomeu não entraram em contato com eles? Você disse que…

— Eu disse que nós tínhamos um plano. Não disse que tínhamos entrado em contato com eles. – Sophia riu. – Vou explicar. – Sorriu novamente. – Lembra-se que eu disse que o meu diretor de comunicações não gostava da ideia de minha saída?

— Sim.

— Bem, ele é um dos meus. Fui eu quem o colocou lá. Como eu caí, ele ficou a mercê de meu substituto e eu andei sabendo da própria boca do Raphael que veio de Oslo um interino. Conheço este diretor que puseram. Ele é um dos conselheiros da Grasoil e não era exatamente “amiguinho” meu. Certamente quando me demiti, o senhor Gunda quis averiguar de perto o que eu fazia por aqui. Penso que ele deve pedir uma auditoria na Grasoil Brasil.

— Para que? Ele acha que você poderia fazer algo escuso na empresa?

— Não sei o que ele acha, mas se fosse eu no lugar dele, o faria. Imagina alguém há tantos anos na direção de uma empresa e esta pessoa cai? Se fosse comigo, gostaria de saber em que pé realmente a empresa está. Não é uma retaliação, Cléo.

— Entendo.

— De qualquer forma, não me ofereceram nada ainda. Só me chamaram para ir a Oslo, pois a diretoria e o conselho querem falar comigo.

— Mas eu pensei…

— Não. Não me falaram nada por telefone, mas a julgar as repercussões…

— Então ainda não é certo.

— Ainda não, mas vai ser e isso eu sinto… Eu só queria que me chamassem para conversar novamente, porém, eu queria entrar pela porta da frente e de cabeça erguida. Quando saí, estava alquebrada. Aquele vídeo me colocou numa posição que basicamente me empurrou para sair pelos fundos da Grasoil. Eu não consegui digerir isso. Foram muitos anos em que me dediquei e sempre fui respeitada pela minha competência. Eu poderia tentar mais adiante outra empresa, mas isso não apaziguaria o gosto amargo que deixou em minha boca.

Sorri, pois a mulher de olhar de falcão estava se movimentando igual à raposa como já havia falado. Que delícia! Dei uma “bitoca” rápida nela e ela arregalou os olhos.

— Ei! Por que vocês estão fora da nossa conversa? E por que estão escandalizando o povo com essa exposição explícita de “sapatice”?

Donna e suas gracinhas! Olhei para Mel e ela estava com os olhos arregalados. Não acredito que ainda estava “bolada” com a gente juntas. Ou será por ter beijado Sophia em área pública? Ah! Vamos combinar que o mundo já tinha desabado nas nossas cabeças né? E que àquela hora, não tinha mais ninguém em volta. Ninguém viu!

Eu olhei ao redor só para constatar. Só tinha uma galerinha dentro d’agua há uns cem metros de distância de nós. Eu inspirei e respondi com segurança.

— Minha amiga. Amo esta mulher e quero ver quem vai peitar agora! – falei convicta.

— Sei. Só tá falando isso porque só a gente tá aqui nesse pedaço.

Mais uma vez Donna com as suas… Todos riram.

— Cléo. Dá uma olhada em volta e me diz se você faria isso se fosse duas horas da tarde quando chegamos aqui?

Dago inquiriu.  Beth me olhou e piscou.

— Eu apoio. Se alguém viesse de graça, iria ter comigo. – Beth falou.

— Você não é detetive aqui, Beth! Esqueceu que somos policiais vinculados ao estado do Rio? – Disse Lucy.

— Não importa. Hoje tenho o direito de casar. Se eu tenho o direito de casar, tenho todos os direitos iguais a qualquer um que seja reconhecido legalmente.

— Concordo parcialmente, pois o que a lei diz, não quer dizer que haja aceitação social. – Disse Lucy.

— Não tô falando que vou sair agarrando a Donna por aí, mas o beijo que elas deram, — Beth apontou para nós. — foi um momento da expressão de amor e felicidade do momento. Não deixaria que alguém viesse “tirar onda”!

— Mãe. Acho que vocês, pelo tempo que se descobriram, não tem ainda muita ideia do que significa amar o “diferente” aos olhos da sociedade, não é?

— E você? Já tem essa noção?

Sophia perguntou de pronto sorrindo, um pouco descrente talvez pela idade de sua filha.



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2021 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.