Diferentes?

Capítulo 40 – A cidade que nunca dorme

Entramos no apartamento de São Paulo na sexta-feira à tarde com algumas bolsas de viagem. Mel chegaria no dia seguinte de manhã, pois a Lucy não iria e ela esperaria a Beth e a Donna para ficarem com ela. Nós preferimos chegar mais cedo, para comprarmos as coisas do almoço do dia seguinte, para a cozinheira fazer.

 Quando falamos que iríamos para São Paulo, a empresa de segurança destacou uma equipe para ir conosco e outra para acompanhar Melissa. Na equipe que ficou conosco, a líder era a Walda. Bem, desta vez pelo caráter de nossa viagem, parece que ela optou por se vestir mais formal… terno e gravata. Pela primeira vez, quando ela entrou no apartamento na nossa frente, para fazer a inspeção de segurança, procedimento que comecei a me acostumar, eu a olhei com muita satisfação. Era provável que a mãe de Sophia não percebesse que ela era uma mulher, mas não importava. Ela já fazia parte de nossas vidas, tanto no sentido profissional, como na construção do mundo em que nós começávamos a vivenciar. Digo isto, pois eu comecei a ver que o mundo real não fazia separações, nós é que sempre fizemos. No mundo real, as personalidades seguiam de acordo com as suas próprias vidas, independente do que qualquer pessoa pudesse querer.

Eu acho que a Sophia também começou a ver desta forma, pois interagia mais a vontade e até começou a brincar com Walda e os outros integrantes da equipe. Lógico, as brincadeiras de Sophia sempre eram em um tom mais irônico do que as minhas.

— Walda, você não acha que alguém pudesse escalar até a cobertura de um prédio de 15 andares, não é mesmo?

Sophia falou depois que Walda voltou de sua inspeção a todos os cantos do apartamento, fazendo sinal para que entrássemos seguidas de mais um segurança que se postou à porta.

— Eu não acho nada, dona Sophia. Mas eu não achar nada é bom para a sua segurança.

Franzi meu cenho de forma interrogativa e Sophia sorriu.

— Pois assim executa todos os procedimentos…

Sophia falou e acabei lembrando-me das normas de segurança em áreas industriais. Elas devem ser executadas sempre, para que riscos sejam minimizados. Walda devolveu o sorriso timidamente, percebendo que Sophia havia mexido com ela e que sua resposta havia sido compreendida. Ficou ligeiramente envergonhada, pois entendeu a brincadeira de minha noiva com ela e entendeu que Sophia percebeu a sua resposta igualmente irônica.

Nós nos acomodamos e entramos em contato com a cozinheira que já nos esperava para que pudéssemos ver o que seria feito para o dia seguinte. Por mim, um petisquinho, um prato qualquer e um sorvete de sobremesa, já estavam de bom tamanho. Quanto menos aquela mulher quisesse ficar melhor seria, mas… Minha futura esposa parecia que queria fazer bonito. Tudo bem, fazer o que se ela é que aguentaria.

— Ok. Vamos ao mercadão fazer as compras?

— O que? Você está louca, Cléo!

— Eu? Por quê? Qual o problema de ir ao mercadão fazer compras? Eu amo o mercadão!

— Cléo, aquilo é uma loucura de gente. O que a gente tem que comprar, compramos em qualquer mercado daqui da região.

— Ih! Esqueci que você nasceu aqui. Pois saiba que esse é um dos melhores programas de turistas para quem vem a São Paulo. Você não sabe de nada. Eu adoro.

Falei com um sorriso cínico. Sophia balançou a cabeça rindo como se não acreditasse no que eu dizia.

— Vai me dizer que nunca foi ao mercadão comer pastel de bacalhau?

— Já fui sim, Cléo. Só que eu tinha 16 anos.

Ela falou de forma enfadonha como quem diz “Tem certeza que é isto o que quer”?

— Ótimo! Você o conheceu antes da reforma. Vamos lá para você relembrar e ver o Mercadão como está agora.

Passei a mão na minha bolsa e segurei a sua para arrastá-la.

— Não acredito que quer me arrastar para lá agora! Temos que comprar as coisas, Cléo! Minha mãe, neste sentido é muito criteriosa. Irá reclamar muito se as coisas não estiverem a contento.

— Pelo que percebi de sua mãe, colocará defeito em qualquer coisa, Sophia. E isto só para te contrariar, então, que ela coloque o defeito que quiser, mas primeiro eu vou me divertir.

Puxei-a sem que ela conseguisse reagir. Perguntei para os seguranças se eles poderiam nos levar no carro deles. Ramon sinalizou que sim e lá fomos. Quando chegamos, eu vi que tinha “dado bola fora”. “Aquilo” estava insuportável de tão cheio e como já conhecia cada banca, levei-a direto para comprar o bacalhau na banca que eu conhecia. Depois fui diretamente a cada banca para comprar o restante. Após todas as compras a arrastei para o mezanino, para comermos o famoso pastel e tomarmos um chope.

— Você é demais, sabia? Pelo menos, da próxima vez, tenta me preparar psicologicamente primeiro.

Ela não estava falando contrariada, mas eu sabia que tinha exagerado. Fiquei ligeiramente envergonhada, pois não me lembrava como o mercadão ficava cheio em uma sexta-feira. Era legal, mas… Bem, não era um programão para Sophia. Olhei lá de cima e vi o monte de cabeças se amontoando e transitando de um lado a outro. Olhei para Sophia sentada a minha frente e comecei a rir.

— O que foi agora? – Ela perguntou.

— O que vão querer? – O garçom perguntou.

— Dois pasteis de bacalhau e dois chopes. – Falei para o garçom. – Estou rindo da situação que te meti. – falei para ela.

O garçom olhou para ela em uma forma tácita de confirmar o pedido.

— Pode ser o que ela pediu, senhor.

O garçom se virou e se foi.

— Por que ele tinha que confirmar com você?

— Talvez por eu parecer mais centrada que você?

Ela devolveu de forma irônica com uma pergunta e ria da minha cara.

— Talvez por você “ter” cara de brava?

Sophia me olhou sorrindo levemente e com a cabeça pendendo. Uma figura realmente linda.

— Cléo, eu não gostaria que fosse diferente do que é ou mesmo parecida comigo. Se assim o fosse, possivelmente não me apaixonaria por você, mas…

Franzi meu cenho para tentar entender o que ela queria dizer.

— Mas?

O garçom chegou com o chope. E Sophia o agradeceu. Ele ficou parado nos olhando e eu o olhei diretamente.

— Obrigada, tá?!

Falei para que se tocasse e fosse embora. Garçom enxerido, esse!

— Esta mesma intensidade que me envolve, em algumas situações…

— Tá, eu entendi. Você está querendo dizer que fui “sem noção” hoje.

Ela riu e tomou um gole do seu chope.

— Beleza. Nada de arrastar impulsivamente para um programa meu. Anotado.

Ela continuou rindo e saboreando seu chope gelado. O garçom chegou com o pastel e ficou parado novamente, olhando para nós. Sophia tomou outro gole para sufocar o riso, pois olhava minha cara contrariada, no mesmo ato em que eu olhava o garçom. Parece que o “ser” se tocou e foi embora.

— Você adora, não é?

— Não. Você não entende. Eu adoro olhar suas reações… observar cada gesto seu…

Pronto. “Me” derreti. Se essa mulher nunca pensou em ser lésbica antes, eu tinha que agradecer a Deus, pois se ela já fosse lésbica, iria ter um monte de mulher atrás e aí eu estava ferrada!

— Você gosta é de ver como fico sem graça com você…

— Já falei que você me julga muito mal. Eu gosto de observar, pois você me fascina. A sua alegria, criatividade e suavidade, mesmo quando está brava, me fascinam…

Ela estava me paquerando com um jeito delicioso na forma de falar e de me olhar e isto estava me excitando em público. Vocês estão vendo que não estou fazendo nada. Queria mudar o rumo da conversa, pois ela não iria resolver o meu problema dentro do Mercadão.

— Tá. Vamos mudar de assunto. Você está me provocando e adora fazer isso. Sabe que eu me derreto toda com você falando deste jeito, só que aqui tem gente demais.

Falei e dei um gole no meu chope,  fazendo a cara mais safada que eu podia no momento.

— Tenho uma proposta melhor. Vamos pagar e ir embora. Tem coisas melhores para fazermos no apartamento.

— Concordo… Garçom! Onde esse cara se meteu, agora que a gente o quer aqui perto?

Sophia gargalhou da minha tirada. O garçom chegou e pedi a conta; também pedi para que embrulhasse os pasteis para a viagem, pois não havíamos tocado neles e eu estava com vontade de comê-los.

Não posso dizer que não gostei de ir ao Mercadão, mas também não posso dizer que não gostei muito de voltar ao apartamento. Quem estava se incomodando com os seguranças grudados em nós, agora era eu, pois em outras épocas, largaria tudo na sala e sairia beijando e tirando a roupa dessa mulher ali mesmo. Agora tinha que levar tudo para a cozinha e dar uma desculpa esfarrapada de que estava cansada para ir para o quarto. A nossa tarde foi excelente e a noite, nós saímos para jantar.

Sophia me levou a uma cantina italiana de um chef conhecido na mídia, mas que eu não conhecia. Não me ligava muito nessas coisas. Pedimos um antepasto e um vinho para acompanhar. Estávamos em uma conversa agradável.

— Ora, ora… Que surpresa vê-la depois de tanto tempo.

Olhei na direção de onde vinha à voz e retornei meu olhar para Sophia. Ela já havia assumido aquela postura tão conhecida de mulher de negócios e cumprimentou o homem.

— Como vai, Donatelo?

Ele se aproximou e me olhou.

— Bem. E você Sophia, como vai?

— Estou muito bem. Esta é Cléo Boaventura.

Ele estendeu a mão me cumprimentando.

— Muito prazer, senhorita Boaventura. Meu nome é Donatelo Alião.

— O prazer é todo meu, senhor Alião.

Ele voltou-se para Sophia lhe perguntando.

— Então é verdade?

Deixou a pergunta no ar e me senti ligeiramente constrangida. O que exatamente este homem, que acabava de conhecer, queria saber?

— Verdade o que, Donatelo? Que me separei de Cássio? Sim, é verdade.

O homem me olhou novamente e voltou a falar com Sophia.

— Sei que Cássio não foi correto naquela situação de seu sequestro, mas…

O rosto de Sophia já começava a dar sinais de contrariedade e se esse homem não parasse por ali, talvez ele não viesse a gostar do que Sophia poderia falar a ele.

— Mas?

Nesta hora, ela já o olhava beligerante e acredito que ele tenha percebido, pois tratou de se esquivar.

— É… Mmm… Bem, acredito que já tenham resolvido esta pendenga… e.. bom, retornarei a minha mesa, pois minha esposa me espera. Bom jantar para as senhoras.

— Obrigada, Donatelo. Bom jantar a vocês também e… mande um abraço a sua esposa por mim.

Sophia olhou a mesa que estava mais ao fundo e fez um pequeno sinal para a mesa em que havia apenas uma mulher sentada. Ele se despediu rapidamente com um “com licença” e se foi.

— Que homem intrometido!

Soltei quase num sussurro para que não fosse ouvida.

— Ele é um grande amigo de Cássio. Conhecem-se desde a adolescência e acredito que Cássio o tenha procurado para destilar suas lamúrias. Provavelmente soube o que ocorreu entre mim e você e não creio que a pergunta dele tinha a ver com a separação e sim, sobre nós duas.

— Bom, pelo menos estamos em um terreno de vocês e agora temos a oportunidade de ver, como as pessoas estão lidando com a informação da nova vida da “grande Sophia Vasto Arqueiro”.

— Que reconfortante ter esta importante informação!

— E sua mãe agora tem do que se queixar verdadeiramente, não apenas pelas bobagens que ela se preocupava.

— Agora você me tranquilizou, Cléo.

Sophia revirou os olhos e bebericou seu vinho.

— Desculpe-me. É que quando fico tensa uso de deboche para tentar dissipar o nervosismo. Se quiser, podemos dispensar o jantar e…

— Claro que não, Cléo! Não vou deixar de fazer coisas, por conta do que os outros acham de mim.

— Tudo bem, então…

Peguei sua mão e sorri para ela. Ela retirou a mão num gesto automático.

— O que você está fazendo, Cléo?

Falou baixo em tom de repreensão.

— Apenas tentando perceber até onde vai a sua segurança. Perdoe-me, mas eu queria te mostrar, que não vai ser tão fácil como você está querendo colocar a si mesma.

— Ok. Já mostrou.

— Sophia, eu só quero que perceba que esse cara foi um idiota e queria nos afrontar. Também quero te fazer ver, que situações assim vão acontecer durante muito tempo e que nós ainda não sabemos como lidar muito bem, com os sentimentos que teremos diante disso. Lembra quando Dago e Erick foram atacados? Dago me confessou que havia momentos, em que ele se sentia exausto por ter que se colocar em uma postura de defesa constante diante das agressões das pessoas. Algumas vezes mudas e em outras vezes verbalizadas.

Sophia deixou que seus ombros relaxassem no espaldar da cadeira, olhando-me com certo desânimo.

— Eu entendo, Cléo. A verdade é não me sinto uma pessoa pior por ter assumido outra condição sexual, pelo contrário, me sinto muito mais feliz, mas parece que agora é que enxergo do lado de cá, o que muitas vezes fiz do lado de lá.

 — O que você já fez?

— Calma, nunca falei nada preconceituoso para ninguém, mas já olhei de soslaio muita gente e pensava, por que “estas” pessoas tinham que afrontar expressando carinho em público? Agora sinto na pele o quanto este pensamento era arrogante e o quanto era egoísta, achando que só “nós” – ela fez um gesto de aspas com os dedos enfatizando a expressão – tínhamos este direito.

Soltei meu corpo sobre o espaldar da cadeira também. Apesar de conhecer Donna muitos anos, eu também já tive este tipo de pensamento. E o mais engraçado é que, eu tirava Donna desta categoria. Estes pensamentos nunca se aplicaram a ela, mas a outros homossexuais que via, sim. Suspirei longamente.

— Sophia, eu acho que teremos ressaca destas atitudes que tivemos anteriormente durante algum tempo, pois nós duas — apontei em direção a ela e a mim em seguida – éramos duas “heteros” idiotas como algumas destas pessoas que estão a nossa volta.

— Pois é.

A noite terminou com mais algumas conversas sobre nossos comportamentos anteriores e como nos sentíamos diante dos olhares de pessoas conhecidas por ela naquele restaurante. Parece que a “nata paulista” resolveu se encontrar naquela cantina exatamente na noite de hoje. Depois de jantarmos, nós fomos embora com a certeza que tínhamos iniciado a grande fofoca do fim de semana de São Paulo.

………………

— Mãe, cheguei!

Eram oito horas da manhã quando escutamos Mel gritar da sala.

— Estamos aqui na copa tomando café, Melissa.

Sophia gritou de volta, o que muito me espantou.

— Nossa, que evolução!

— É só uma brincadeira minha e de Melissa desde que ela era criança. Ela adorava a “Família Dinossauro” e ria quando o pai Dino gritava, ”querida, cheguei”. Ela passou a gritar “mamãe, cheguei”, toda vez que chegava da escola.

Sophia explicou sem graça a brincadeira delas e que parecia que Mel não havia parado de fazer, mesmo depois que cresceu. Eu ri da carinha envergonhada que ela fez. Mel chegou à copa e beijou a mãe na testa e depois a mim. Comecei a me sentir madrasta. Melissa sempre fazia este gesto com Sophia, mas era a primeira vez que fazia comigo. Não passou em branco pelo olhar de Sophia e ela riu desta vez de mim.

— O que foi que vocês estão rindo?

— Você acabou de colocar a faixa de madrasta em mim, depois deste beijo na testa.

Mel gargalhou.

— Sabe que nem me toquei! Mas, beleza. Vai ser minha madrasta mesmo.

— Quer café, Melissa?

— Não. Tomei antes de sair, aliás, este voo foi muito cedo. Tô morrendo de sono. Acho que vou para o quarto dormir um pouco.

— Melissa, sua vó deve chegar pontualmente ao meio-dia. Não perca a hora.

— Que bom, então. Assim o barraco começa cedo e termina cedo.

— Melissa!

— Que foi, mãe? Ainda acha que não vai rolar barraco? Sinto muito lhe informar, mas Dona Arminda já desceu a ladeira depois que ligou para Cléo. Ela está descontrolada e só estou aqui para apoio moral.

Mel não esperou a resposta e saiu da copa para o quarto. O semblante de Sophia se fechou.

— Amor, não se preocupe. O máximo que fará será destilar agressões verbais. Isso a gente segura. Ela não tem mais qualquer poder sobre você.

— Tem sim, Cléo. Tem o poder de me deixar mal e desestabilizada.

O semblante de Sophia estava tenso e cansado. Estendi minha mão até seu rosto e afaguei suave. Ela virou o rosto para aumentar o contato com minha mão e apoiou seu rosto nela.

— Vamos. Deixe-me ver se está tudo em ordem.

Levantou-se e saiu em direção à cozinha.

…………..

A mulher era uma coisa, mesmo. Quando faltava um minuto para meio-dia, a empregada anunciou que eles já estavam subindo. Sophia pediu que a empregada abrisse a porta e aqui, nós esperávamos na sala de estar. A porta foi aberta no momento em que a campainha tocou. Uma mulher na casa de seus sessenta e cinco anos, de porte altivo e elegante, entrou através dela, seguida de um senhor igualmente elegante com idade equiparada e…

— Cássio? O que está fazendo aqui?

Essa foi Sophia interpelando e eu, logo atrás, estava tão surpreendida que minha boca abriu ligeiramente. Minha sogra lançou mão de artilharia pesada!



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