Diferentes?

Capítulo 42 – Meu silêncio era medo

Quando eu abri a porta, vi as cortinas fechadas deixando a sala na penumbra, dando ao ambiente um ar melancólico. Aquela sala se parecia comigo naquele momento. Estava triste e com um bolo no estômago. Minha raiva havia passado, porém continuava magoada. Olhei uma segurança nova que havia integrado a equipe há pouco tempo. Ela fechou a porta para mim.

— Pode avisar a dona Sophia que não me suicidei e nem tomei um avião de volta para o Rio… Ah! Esqueci. Ela já deve saber, não? Reinaldo e Abreu naqueles ternos estavam muito discretos no parque.

— Qual o seu nome, menina?

Escutei a voz de Sophia inquirindo a garota. Olhei ao redor e consegui divisá-la sentada em uma poltrona no canto.

— Nydia, senhora.

— Nydia, você poderia nos deixar a sós?

— Sim, senhora.

A menina saiu da sala e eu entrei colocando a minha bolsa sobre o sofá, me sentando ao lado. Cruzei minhas pernas olhando Sophia e via seu rosto com um semblante cansado e triste. Doía-me, mas eu estava doída também.

— O almoço terminou tranquilo?

Perguntei irônica, pois apesar de tudo, minha mágoa estava latente. O pior é que não me sentia melhor por falar desta forma.

— Cléo, eu só quero me desculpar por tudo, não pelos meus pais, mas por mim.

— Droga, Sophia! Eu me senti uma verdadeira imbecil aqui, diante deles!

Falei exasperada! Sophia passou as mãos pelos cabelos, apoiou seu cotovelo no braço da poltrona e o rosto na palma da mão, pousando seu olhar triste sobre mim.

— Eu sei, por isso que te peço desculpas. Quando você saiu por aquela porta, caí em mim pela forma como estava agindo e não foi muito bom. Eu te amo, Cléo e aquilo me deixou sem chão.

“Merda! Não se desculpe, Sophia, reaja”! Este era o meu pensamento, mas não queria expressá-lo. Estava cansada emocionalmente e acreditava que ela teria o seu próprio peso sobre os ombros, mas não queria esconder meu desagrado também. Não era justo comigo.

— Sophia, eu realmente gostaria que as coisas não fossem tão pesadas para você em relação a sua família, mas vi hoje que…

— Não, Cléo. Acho que hoje eu coloquei algum limite nesta relação doentia. Não foi da melhor forma, mas talvez não houvesse outra.

— Por que está falando isso?

Sophia inspirou e contou o que ocorreu depois que saí. Escutei tudo atenta e depois me pronunciei.

— Merda! Eu tinha que ter um pozinho mágico!

— O que?

— Mmm… É… Bem, gostaria de ter retornado ao apartamento sem que fosse percebida para ver isto. – Sorri um pouco sem graça. — Queria ver a cara de seus pais sendo acompanhados para fora pela Walda! Desculpe Sophia, mas ainda estou com muita raiva deles.

Sophia gargalhou e eu ri junto. Fomos serenando e nos olhamos. Eu a amava muito! Passei por cima de meu orgulho, pois queria ficar em paz com ela.

— Você me desculpou?

Ela me perguntou.

— Quase.

— Quase?

— Sim, quase. Você vai ter que se esforçar mais um pouquinho para dissipar completamente minha raiva.

Levantei e sentei em seu colo a beijando. Ela apertou-me forte entre seus braços e foi como se eu estivesse voltado ao nosso lar. Apartamo-nos e ela suspirou aliviada.

— Sabe o que mais?

Ela me inquiriu.

— Mmm… Diga.

— Vou limitar estes seguranças em algumas áreas comuns…

— Uma excelente ideia, senhora Sophia…

— …Boaventura.

— O que?

— Não nos perguntávamos quem levaria o nome de quem? Pois bem. Eu quero levar o seu nome. O nome da sua família e agora porque desejo e não por imposição social.

Meu sorriso abriu enormemente. Algumas horas atrás eu estava magoada e triste com as atitudes dela e agora, ela me fazia explodir de felicidade.

— Não vai complicar na sua vida profissional? Há uns meses, você era Brandão…

Sophia fez uma careta engraçada que me fez rir junto com ela. Ela mexia em meu cabelo, displicente.

— Depois retornou para Vasto Arqueiro e agora acrescentará o “Boaventura”? A Grasoil terá certo trabalho com os contratos que vier a assinar…

— Eles se adaptam. O mundo se adapta.

Ela me deu um beijo rápido.

— E seus pais se adequarão?

Perguntei sabendo que poderia mexer na ferida, mas não queria que ela esquecesse que existia a sua família, apesar de tudo.

— Depois de hoje, se não se adequarem, não participarão mais de minha vida. Acho que deixei claro para eles, ou não?

Dei um pequeno soco no ar.

— Droga! Queria ser um inseto, hoje nesta sala.

Sophia gargalhou novamente.

— Veja as gravações da segurança.

Olhei para ela, num lampejo.

— É verdade! Mmm…

Após a exaltação, ocorreu-me algo do qual não gostei.

— O que foi?

— Acho que teremos que rever a política de segurança. Não estou gostando dessa história de ter câmeras espalhadas por toda área comum.

— Eu falei na época.. e você ficava nos meus ouvidos. “Para de implicar, Sophia”!

Sophia falava com voz de remedo.

— Tá. Não tinha ainda ideia de certas implicações, engraçadinha. Mas pode deixar que assim que chegar ao Rio, conversarei pessoalmente com o senhor Azeredo.

Sophia riu e colocou a suas mãos sob minha blusa acariciando minhas costas. Puxou-me para outro beijo carinhoso. Afastamo-nos sabendo que não poderíamos nos exceder ali.

— Sophia.

— Mmm?

— Eu posso pôr seu nome também?

— Vai querer o nome de minha família no seu nome?

— Quero você em mim. Não importa o nome de família. “Me” importa que esta é você,  com tudo que tenho direito.

Ela sorriu, embevecida. Seu olhar transparecia felicidade e meu coração aqueceu.

— Ok. Segundo round com a senhora “Vasto Arqueiro”. Acho que desta vez vou desfrutar muito o embate.

Novamente minha noiva sorriu.

— Acha que sua mãe implicará com isto? O casamento já não é o suficiente para ela implicar?

— Meu amor… Meu grande e lindo amor. Qualquer coisa é um pingo suficiente para dona Arminda implicar. Mas depois de hoje, acho que consegui me vacinar.

– Assim espero!

– Pode ter certeza. Muita coisa em relação a minha família se quebrou hoje, Cléo. Quero que acredite em mim.

Olhei-a, vi sinceridade nas palavras, em seus olhos e vi também um pedido de confiança. Ela era uma mulher íntegra e eu, uma mulher apaixonada. Fazer o que, né?! Beijei-a com todo o meu coração. Desgrudei meus lábios da deliciosa boca de Sophia e…

– O que foi? Algum problema, Cléo?

Seu olhar era de confusão.

– Não. Só estou morrendo de fome!

Rimos e ela fez menção de levantar-se. Saí do seu colo e ela me pegou pela mão.

– Vem. Eu também estou com fome. Não comi nada também e acredito que nem Melissa. Vamos chamá-la e jantar mais cedo.

– Ou almoçar mais tarde?!

 ……………………..

Estávamos à mesa e Melissa soltou uma expressão engraçadíssima. E não pudemos deixar de rir.

– Mmmmm!!! Jesus! Como isso tá bom!

– Não seria a fome, minha filha?

– Mãe, a fome era muita, mas está divino isso aqui!

– Por que não comeu antes, Mel?

Melissa olhou fazendo uma careta diante de minha pergunta.

– E me intrometer na iminência de uma revolução? Cléo, hoje mamãe gritou comigo, tá legal! Só peço para vocês me tirarem do meio de vocês nas discussões futuras, beleza?!

Eu ri com a garota, mas Sophia parou para olhá-la.

– Beleza.

Foi o que ela disse para a filha, voltando a comer e a gargalhada se instaurou no ambiente.

…………………..

No dia seguinte caminhávamos pela rua Oscar Freire, vendo as lojas. Estávamos apenas passeando. Não tínhamos realmente intenção de comprar nada e de repente Sophia entrou em uma joalheria.

– Vem…

Ela acenou para mim.

– Quero te mostrar uma coisa.

– Sophia… Tenho a impressão que sei o que é. Quando você…

– Ainda lá no Rio, mas pedi para a Ivana, dona da loja, separar algumas alianças para vermos. Quero que me ajude a escolher nossas alianças de casamento.

Gente, tinha cada uma mais linda do que a outra e nós estávamos realmente felizes por estarmos juntas escolhendo. A Ivana era simpática e nos recebeu em seu escritório. Comecei a repará-la e percebi que ela nos olhava sorrindo muito, quase como que achando tudo muito… legal!

– Essa. O que acha, Cléo?

– Adorei também.

– É muito bonita, mesmo! Ela tem um detalhe muito interessante, que é o ouro retorcido dando a ideia da “Lamniscata”, ou o símbolo do infinito, como costumam chamar. Foi feito em tramas distintas e depois unido em uma suave fundição.

Meus olhos estavam vidrados na arte. Era linda e suave.

– Por mim, será esta.

Sophia sorriu.

– Então, será esta. Também gostei muito dela.

E foi assim que compramos nossas alianças de casamento, com a benção da designer de joias que depois, vim a descobrir, ser “da confraria”. Era outra designação para a categoria de lésbicas, que a Beth costumava denominar.

Sophia contou que sempre comprou joias com ela por achar suas peças diferentes e elegantes. Ela sabia que a “moça”, como Sophia se referiu, era lésbica, porém isso nunca foi um ponto que a incomodou, ou chamou sua atenção. Só agora se dava conta, de quantas pessoas a cercavam que eram homossexuais e estava feliz que, afinal, não era uma pessoa conservadora.

Bom… Nosso fim de semana foi ótimo, após o desastroso encontro com a minha “sogrinha” e meu “sogrinho”, como passei a chamá-los. Decidimos relaxar e nos divertir da forma que pudemos. Vi que não deu certo ir a um bar gay junto com Melissa, pois a minha “amada esposa” resolveu defender os “fracos e oprimidos”. Digo isso pois, Melissa não podia se aproximar de ninguém, mesmo que a pessoa fosse conhecida. Ela fez amizades ao longo de sua estadia em São Paulo e para mim era natural que ela conversasse com as pessoas que encontrava, mas “minha amada” não pensava da mesma forma. Ela queria saber “quem era” e se a Lucy “conhecia”…  Apesar de achar que era legal essa coisa de cuidar, foi uma forma bem interessante de pensar a maternidade como a Donna tinha sugerido. Não que achasse ruim o “cuidar” de Sophia, mas ela estava começando a ver a vida de outra forma e achava que ela deveria “realmente ver a vida de outra forma”, principalmente com relação a sua “filhinha”. Aí, galera! Vamos combinar que a Mel dava de “dez” na gente em termos de vivência gay, não é mesmo?! Mas a filha era dela… fazer o que?! Com a Mel eu tinha carinho, apreço e até sentido de proteção, mas… não era mãe. Digamos que eu via… de fora!

– Sophia.

– Oi!

– Dá para me olhar uns dez minutos consecutivos e deixar Mel falar com as amigas dela sem você olhar?

Sophia me olhou apreensiva e depois deixou seus ombros caírem.

– Desculpa. Desculpa! Mas é que…

– É que?

Olhei com minha sobrancelha arqueada com uma expressão de descrédito em qualquer desculpa que ela pudesse elaborar.

– Nada. Acho que não posso vir a lugares tão… tão…

– Lugares em que você esteja vendo sua filha se socializar?

– Você coloca como se eu estivesse sendo ridícula.

– É?! E o que você acha da situação?

– Acho que tenho que me acostumar e não frequentar muito os mesmos lugares que ela. Pelo menos por enquanto…

Ela falou sem graça.

– Ótimo! Temos uma opinião em comum.

Eu sorri para ela e a abracei.

– Sophia…

– … Eu sei. Ela já é uma mulher e blá, blá, blá… Ok! Vamos embora.

– Vamos embora?!

Não entendi essa da Sophia agora.

– Sim, vamos embora. Eu a estou vigiando e tenho que acostumar com toda a situação. Se ficar aqui, não vou relaxar e também não quero, que mais tarde, ela me jogue isso em uma  situação de conflito com você.

Achei engraçada a lógica da Sophia, pois ela sabia que estava vigiando a filha e apesar da garota não estar fazendo nada demais, era como uma responsabilidade protetora. Não como uma repreensão real. Entendi a lógica! Eu sorri e a beijei.

– Então, vamos. Também não quero que a Mel comece a reparar na gente.

Voltamos para o apartamento e fomos para nosso conforto particular…

……………

Entrei no banheiro para tomar um banho antes de dormir. Minha noiva entrou envolvida em um roupão. Já havia retirado sua roupa e se dirigiu até a hidromassagem abrindo a água e verificando a temperatura com as mãos, enquanto eu fazia a minha higiene bucal.

– Vai tomar banho de hidro agora?

– Achava que podíamos tomar banho juntas…– Olhou-me e piscou. – Quer tomar banho comigo?

– Será um prazer, senhora Sophia Vasto Arqueiro… Boaventura.

Arrastei na língua meu sobrenome para provocá-la e ver sua reação. Ela me sorriu e levantou-se da borda da hidro, me tomando pela cintura.

– Então, senhora Cléo Vasto Arqueiro Boaventura, devo lhe dizer que o prazer é todo meu!

Beijou-me suave e voltamos a olhar-nos. Observamos brevemente a hidro se enchendo, perdidas em nossos pensamentos.

– Acha que poderei trocar a ordem do meu nome para que o seu venha no meio?

– Isto incomoda você?

Ela me olhou um pouco temerosa pela insinuação que fez sobre a disposição de nossos nomes.

– Claro que não. Deste jeito soa mais harmônico e assim também não haverá dúvidas que somos casadas. Porém, minha cara noiva, não sei se é possível a nível jurídico.

– Falei hoje com Bartolomeu, ele verificará para nós, mas não acredito que haja impedimentos. Aliás, falei com nossos advogados.

Não entendi o que ela quis dizer. Ela havia falado com a Magda também?

– Você falou com Magda hoje?

– Não com ela pessoalmente, mas Bartolomeu me contou que a chamou para integrar o seu escritório. Ao que me parece, ele gostou do trabalho dela e ela, pelo visto já aceitou. Acredito que ela ligue para você amanhã, que é segunda-feira.

– Droga!

– O que? Não gostou?

– Desculpa, Sophia. Estou feliz por ela, mas convenhamos que eu e a Hermes perdemos nossa assistência jurídica. Eu não tenho um lastro tão grande para contratar o escritório do Bartolomeu.

Ela me olhou um pouco intrigada.

– Você acha que eu deixaria você sem suporte?

Franziu a testa em sinal de descrença ou contrariedade. Não consegui perceber seu olhar. Aquilo me incomodou, pois eu tinha as coisas muito claras na minha cabeça. Eu estava casando com Sophia e não com as posses dela. Eu me soltei do abraço e virei para fechar a água da hidro que chegava ao limite para a utilizarmos. Não queria ofendê-la ou melindrá-la. Tinha que arrumar uma forma que não soasse arrogante ou gerasse desconforto.

– Sophia, suas posses e conquistas são suas e minha empresa tem que ser administrada com recursos próprios.

Não sei se consegui deixar claro o que queria dizer, mas estava um pouco inibida para abordar este assunto sem ofendê-la.

Ela estreitou ligeiramente o cenho e semicerrou os olhos, deixando uma expressão de compreensão que eu sempre via, quando em reunião de trabalho na Grasoil. Aquilo me incomodava, pois nesta hora, eu não conseguia saber o que se passava em sua mente. Era como se a “olhar de falcão”, toda poderosa diretora, tivesse dado passagem e entrado no lugar da minha doce e amada noiva.



Notas:



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