Líberiz

Capítulo 27 – A Coroação

Fira cavalgou, deixando o vento bater no rosto. Sabia o que estava acontecendo. Ela estava livre de todos os perigos que seu pai a alertara desde pequena e, agora, poderia viver sem medos. Mesmo assim, sentia-se oprimida. Pegou a trilha que levava em direção ao rancho de Bert. Quando se aproximou, viu as fogueiras para reverenciar a Deusa da fertilidade, sendo acesas, espalhadas pelo campo. As pessoas chegavam a pé e a cavalo. Apeou e deixou seu cavalo amarrado no mourão, onde outras vezes o havia amarrado. Parecia que já fazia parte daquele cenário.

— Olá, Lady Dotcha! 

Antes mesmo de se voltar para a figura que a abordara, reconheceu a voz da esposa de Bert a lhe cumprimentar, alegremente.

— Como vai, Maia? Pelo visto a festa no campo será animada. – Sorriu.

— Estou feliz que tenha vindo. Bert tem se preocupado com milady.

— Por favor, Maia, aqui sou Dotcha, lembra-se? – Recebeu um aceno afirmativo da anfitriã. – Bert se preocupa em demasia. Estou bem. Me livrei dos perigos que rondavam a minha vida. 

— Eu sei. Ela me contou, mas não a condene. Lembre-se que somos companheiras e casadas. Não há segredos entre nós.

Começaram a andar, lado a lado, e caminhavam em direção a uma grande mesa armada no descampado, antecedendo o campo de plantio. 

— Já que não quer formalidades, então falarei. Não importa o que você queira de Bert, ela se preocupa com você. Possibilitou a ela uma vida melhor, quando a contratou, antes mesmo que ela soubesse o que queria da própria vida. Quando nos casamos, ela já era sua escudeira e pôde comprar essas terras com o soldo que ganhava. Formamos uma família e tivemos a proteção de leis, pelas quais seu pai lutou e, você continuou o legado dele.

Maia silenciou por segundos e olhou diretamente para a duquesa, chamando a atenção da soberana. 

— Ela lhe estima e eu também passei a ver você pelos olhos de minha mulher. Nós não podemos interferir ou lhe falar sobre o que deve ou não fazer. O que ocorre nos meandros da política está além do nosso entendimento, entretanto, nos preocupamos; você queira ou não.

Fira sentiu o coração aquecer em alegria e o rosto ruborizar, pelo carinho que recebia de forma simples e sincera.

— Obrigada, Maia. Saiba que o que falou me traz alento, mas se quer saber, eu mesma não consigo entender minha melancolia e, muitas vezes, não consigo entender a política também. – Riu sem muito ânimo.

— Acho que sempre se dedicou aos afazeres do governo e raramente se permitiu uma vida pessoal. Apenas experimente e desfrute, sem questionar. Uma hora tudo se ajeita dentro de você. – Sorriu.

— Maia!

Alguém chamou a anfitriã, levando a mulher a olhar em direção da voz. Ela acenou, sorrindo, para mais uma amiga que chegava. Fira olhou a cena e se sentiu bem, estando ali, ao lado de pessoas que viviam de maneira simples e nada pediam em troca.

— Vá. Eu me arranjo e você sabe disso.

— Está bem. Acendemos várias fogueiras e tem um menestrel em cada uma delas. Veja, – mostrou a mesa com vários farnéis montados – pode pegar um deles e se juntar a fogueira que mais lhe agradar.

— Farei isso. Obrigada mais uma vez, Maia.

Fira recebeu um aceno de cabeça e foi deixada só. Olhou os farnéis. Em um deles havia um odre com água, outro com sidra, castanhas assadas e um pouco de assado de javali.

— Esse parece atraente. 

Falou para si, distraída.

— Também concordo. Seria o que eu pegaria, se você não tivesse chegado antes.

Sem levantar a cabeça, Fira sorriu. Desde que houve o resgate, ela não encontrara mais com Divinay.

— Suponho que devo dividi-lo com você… – olhou para ela e se espantou. – Heloise?!

— Como vai, Lady Líberiz?

— Eu estou bem… – viu que Divinay abraçou a nobre, num gesto possessivo – … e pelo que percebi, você também!

Falou numa entonação jocosa, levando as mulheres ao riso frouxo. As duas se encararam com um olhar amoroso, que foi percebido, instantaneamente, pela duquesa. 

— Pelos Deuses! Me poupem e me digam como isso aconteceu!

Fira falou gargalhando e descontraída.

— Então pegue o seu farnel e nós pegaremos o nosso. Vamos procurar uma fogueira para nos acomodar. – Determinou, Divinay. – Devemos agradecer a você por isso, Fira…

Caminharam e se sentaram em uma fogueira, onde um menestrel já tocava seus acordes e sem muitas pessoas em volta. Fira escutava a história que envolveu as duas mulheres. Relaxou e esqueceu do mundo. Sorriu, interagiu e parecia que começava a se livrar de seus pesos.

A noite já ia alta e os casais começavam a dispersar pelo campo. Cada um, procurando um local melhor, diante das estrelas, para reverenciar a Deusa da fertilidade e saudar a nova estação. Divinay e Heloise se retiraram e Fira ficou sozinha naquela fogueira com o menestrel e mais alguns aldeões solitários. Um rapaz chamou sua atenção. Era esguio, de cabelos e olhos negros. Ele se aproximou, sentando-se ao seu lado.

— Você é muito bonita. Acho que as pessoas têm medo da beleza, pois ainda está aqui sozinha.

Ele falava arrastado. Certamente tinha bebido muito além do que devia. Era muito jovem e apesar de Fira ter apenas vinte e seis anos, se sentia uma anciã, tamanho o fardo que carregara durante toda uma vida. Ela riu da forma que o garoto a abordou. Gostou dele. Algo no menino chamava a sua atenção e ela não conseguia identificar.

— Quantos anos tem, rapaz?

— Eu tenho dezoito!

Falou orgulhoso e altivo, mas a languidez da voz mostrava a sua embriaguez. Fira riu do brio com que proferia as palavras e da fala arrastada. Ela não queria nada naquela noite, apesar de sempre ter reverenciado a Deusa, após ter completado os dezesseis anos de idade. Esta era uma tradição que Líberiz sempre cultivou. Deu corda para o garoto. Ele parecia ingênuo, mas trazia nos trajes o uniforme da cavalaria de Alcaméria.

— Qual o seu nome?

— Alair de Vertrame.

— Muito prazer, Alair de Vertrame. Me chamo Dotcha.

Estendeu a mão e os olhos estreitaram, tentando entender o que aquele rapaz fazia ali. 

— Não está muito longe de suas terras?

— Tenho amigos aqui. Minha mãe veio se radicar em Líberiz depois que… Deixa para lá. Quero reverenciar a Deusa. Vem comigo? 

Se levantou e estendeu a mão para ela. 

— Você não está sóbrio. – Fira retrucou.

— Hoje eu exagerei, mas a Deusa sabe que vim no propósito de lhe dar graças. Não faço por estar bêbado. Sou devoto e Ela sabe.

****

Após a derrubada do rei, precisavam definir a situação em que o reino se encontrava. O trono estava vazio há mais de um mês e só havia mulheres na linha de sucessão. A pressão dos ducados fez com que o Conselho de Alcaméria modificasse a lei de descendência.  

Todos os convidados haviam chegado e a cerimônia transcorreu de forma breve e simples. Não havia o que comemorar, além do final de um ciclo de desmandos autoritários de um homem. O sarau se iniciou para que os convidados não sentissem que o coroamento era nada mais que uma pró-forma.

A duquesa Líberiz resolveu que não era dia para o vestido negro, que sempre utilizou em recepções de pompas da corte. Ela queria se despojar do que sempre acreditou ser o sensato, o elegante, o acertado para ocasiões próprias da realeza. Trajou um vestido bordô, drapeado em prata. 

Foi cercada por nobres dos ducados, que foram seus aliados e era observada pelos ducados que apoiavam o antigo rei. Sentiu que os olhares não eram de repulsa, mas de comedimento e respeito. A rainha Dólias se aproximou, sendo acompanhada por seu prometido, o nobre Ranaz de Kendara. Todos a reverenciaram.

— Ai. Parem com isso! Me sinto como se fosse uma vaca falante! – Os nobres riram, tentando se conter e ela reparou em Fira. – Gostei do modelo! – Apontou o vestido. – Eu amo vermelho e não me deixaram usar hoje. Vou falar com o senescal; se não pode vermelho, então vou usar dessa cor.

Afirmou apontando outra vez o vestido bordô da duquesa, arrancando mais sorrisos.

— Você está linda, Dólias.

Respondeu Fira, se referindo ao vestido creme drapeado de dourado. 

— De qualquer forma, acho que o vermelho combina com você. Agora que é a rainha, pode exigir a cor da roupa, não acha? 

— Vai achando, Lady Líberiz. Agora que sou rainha, essa gente vai ficar no meu pé, isso sim… – Bufou. – Bom mesmo foi para minha irmã, Cécis. Ela fez drama, cheia de vontades e disse que não queria o trono. Agora está lá, – Apontou para o canto, em direção a irmã – se veste como quer e não tem nada mais que pensar, senão a própria vida.

Fira se virou para onde Dólias tinha apontado. Tinha visto Cécis na cerimônia, declinando do trono e conduzindo a coroa para a irmã. Talvez tivesse escandalizado alguns com sua vestimenta, mas para Fira, ela estava perfeita. A jaqueta e calças negras, com apliques em metal e a camisa de seda preta por baixo da casaca, davam-lhe um ar selvagem, porém, jovial e despojado à nobre princesa.

A duquesa via que Cécis falava descontraída com uma garota que devia beirar os vinte anos. Bebeu um gole do vinho de sua taça, tentando apaziguar o incômodo que sentiu ao ver a princesa interagindo, tão desenvolta, com a convidada.

“Ela não gosta de nobres da corte… Afinal, quem é essa garota?” 

O olhar de Fira não passou despercebido pela rainha Dólias, que se adiantou em deixar a duquesa à par da situação.

 — Gertrude de Gerola está desde cedo às voltas para conversar com Cécis. Minha irmã tentou correr dela como o inferno, mas pelo visto, a filha do Marquês de Gerola conseguiu pegá-la numa conversa. Até disporia salvar minha irmã, entretanto já tenho muita gente chata para aturar até o final da festa… Não estou falando dos senhores… 

A rainha Dólias apontou com a taça que trazia na mão para o grupo. 

— Contudo, hão de convir que até o sarau acabar, serei obrigada a dar atenção, inclusive, a quem me queria morta.

Fira não desviara o olhar das duas, mesmo prestando atenção ao que a rainha falava. Ouviu o grupo rir das insinuações de Dólias e se decidiu.

— Pode deixar comigo, majestade. Eu estava procurando Cécis para conversar um pouco. Não tivemos oportunidade de nos falar, desde que tudo ocorreu. Se é por falta de alguém para livrá-la, eu mesma o farei. 

Saiu em direção às duas, não esperando o que o grupo falaria, ou se alguém mais se prontificaria. Caminhou devagar e se colocou de frente para a princesa, permanecendo atrás da tal menina, esperando que Cécis a olhasse. 

Assim que a princesa elevou o olhar, Fira levantou a taça em cumprimento, recebendo um aceno igual da bela rebelde. A duquesa sorriu e o coração disparou, ruborizando, quando Cécis piscou para ela na frente de todos. Lady Líberiz baixou o olhar, vendo que seus companheiros de roda estavam acompanhando a movimentação das duas e, certamente, captaram o assédio da princesa. 

— Minha irmã não tem modos.

A rainha Dólias piscou para o grupo, sorrindo e os nobres a acompanharam rindo igualmente. 

— Ai! Não é lindo?! – Derek Kendara exclamou.

— Pai, por favor! – Repreendeu Ranaz.

— O que foi, filho? Por acaso é horroroso reparar no amor?

Respondeu o duque Kendara, repreendendo o filho, levando todos do grupo a rir novamente. Heloise Kendara estava acompanhada de Divinay. A ex-rebelde se sentia deslocada, mas recebia atenções esmeradas da namorada. Passaram a conversar trivialidades, esquecendo da situação que envolvia a princesa e a duquesa de Líberiz.

Fira se aproximou mais. Os olhos não se desviavam e a vontade de Lady Líberiz era que o mundo sumisse e apenas aquela mulher existisse no salão. 

— Vejo que não perdeu o toque em escandalizar.

Abordou, sem olhar para a garota que a acompanhava, ignorando-a.

— Depois que o rei caiu e da forma que foi, acredito que não escandalizaria muito mais com qualquer atitude minha. – Respondeu. – Esta é a senhorita Gertrude de Gerola, filha do…

— …Do Marquês de Gerola. – Virou-se para a garota. – Eu conheço seu pai. Dê meus cumprimentos a ele. Aliás, a conheço também. Creio que você tinha uns treze anos quando fomos apresentadas num dos saraus do rei Deomaz. Não sei há quanto tempo foi isto… bom, mas não tem muito tempo.

A garota fechou o semblante, vendo o que a duquesa insinuava diante da princesa. Ela sugeria que ainda fosse uma menina, além de também, aludir que seu pai era um aliado do antigo rei.

— Creio que já faz tempo sim, duquesa. Sua memória deve estar iludindo-a.

— É. Talvez você esteja certa. Estou hoje com vinte e seis anos e devia ter uns dezenove ou vinte na época. De qualquer forma, vim roubar a princesa Cécis por uns instantes. Temos alguns assuntos importantes a tratar e ainda não tivemos oportunidade. – Voltou-se para Cécis. – Me acompanha a um lugar mais reservado, princesa? 

Cécis se divertia com as chispas trocadas entre Fira e a garota, mas se manteve impassível. Agradecia mentalmente a duquesa por livrá-la do assédio, já que a conversa tinha um teor superficial e a garota não parava de tocá-la de forma irritante, enquanto conversavam. A princesa não esperou que Gertrude retrucasse e se prontificou. 

— Venha.

Estendeu o braço para que Fira enlaçasse e a acompanhasse e, voltou-se para Gertrude.

— Obrigada pela companhia, milady. Com licença, pois realmente tenho assuntos a tratar com a duquesa. 

Recebeu da garota um aceno de cabeça, contrariado. Distanciaram-se e caminharam em direção a varanda do salão, afastando-se dos convivas que estavam conversando por ali. Quando a noite caísse, prometia um céu estrelado. A primavera chegara, deixando o ar agradável. 

— Você não me mandou nenhuma mensagem…

— Eu queria, Fira, mas tudo ficou confuso e de pernas para o ar. Soube que se empenhou numa caçada ao conde Dinamark, que fugiu assim que resgataram você. Acreditei que também estaria cheia de problemas, mas sempre me mantive informada. Ranaz foi um bom amigo e trazia notícias de Líberiz, constantemente.

— Me surpreendeu quando o convite chegou. Imaginava tudo, menos que você cedesse o trono para Dólias. – Fira falou, sorrindo. – Essa é uma das coisas que me atrai em você… às vezes é imprevisível.

— Então estou com moral. – Sorriu. – Acho que foi a decisão acertada. Sempre falei para você que não me achava competente para governar. Eu constatei, a duras penas, que não tenho perfil para isso. Saber tudo que Caterina fez contra mim, foi como se tivesse morrido um pouco.

Cécis se virou para Fira, admirando-a. A princesa passou o último mês ajeitando tudo na corte e, a cada dia, os pensamentos direcionados a duquesa ficavam mais fortes. Sempre que pensava em Fira, o coração descompassava.

— Já lhe mostraram o seu aposento no palácio?

Cécis perguntou sorrindo, insinuante, levando Fira a rir com gosto. A duquesa se apoiou no baluarte da varanda, olhando a cidadela de Alcaméria. A coroação fora realizada de dia e as comemorações começaram cedo. O entardecer estava morno, com uma leve brisa dançando no ar. Fira fechou os olhos, antes de responder. “Ah, Cécis, como eu gostaria de ficar…”

— Infelizmente, vou retornar para Líberiz, daqui a pouco. Não poderei ficar. A Assembleia remarcou a execução de Dinamark para amanhã cedo. 

— Amanhã?! Pensei que ficaria para a execução de Cárcera.

— Com sinceridade, Cécis, nunca tive atração pela morte, apesar de tudo que sempre esbravejei. Para mim, basta saber que a justiça seja feita. Só estarei presente na execução de Dinamark, porque não tenho alternativa. Ele foi condenado por crime político e era um nobre do meu ducado. Pela lei, sou obrigada a conduzir o cumprimento da sentença.

Fira suspirou com pesar. Embora soubesse há algum tempo das implicações de Dinamark, torcia para que ele caísse em si. Encarou Cécis, sem conseguir se conter, seus olhos brilharam admirando a princesa novamente. 

— Mas se quiser, já que não precisará fazer “às vezes de rainha”, poderá retornar comigo e passar uma temporada em Líberiz, o que acha?

Foi a vez de Cécis suspirar, desalentada. Planejava ver Fira e tirar uns tempos distante de Alcaméria, mas não poderia viajar tão rápido.

— Infelizmente, eu também não poderei sair daqui por agora. Eu fui parte envolvida e testemunha de todo o processo de condenação de Caterina e Cárcera, além do que, eu era a herdeira legítima, quando eles foram presos. Terei que ficar e acompanhar todo o processo até a execução. – Suspirou novamente.

— Seu pai não suportou a carga. Soube que ele não se rendeu, mesmo depois de mostrarem as provas contra ele. 

— Não soube o que aconteceu?

— Superficialmente. Quando fui resgatada do sequestro, eu mesma conduzi a busca por Dinamark. Foram semanas complicadas, pois não fiquei em Líberiz. Acompanhei em campo as diligências de busca, juntamente com meus soldados. Depois que retornei, parecia que o ducado estava de pernas para o ar, também. A Assembleia se reunia quase todos os dias. Devo dizer que me permiti não saber do que ocorria com Alcaméria, também. Minha cabeça estava muito ruim. 

As lembranças do que aconteceu ainda estavam muito fortes na mente de Cécis. Mesmo tentando se distanciar e sabendo que seu pai nunca lhe teve o menor amor, ainda assim, lhe doía muito.

— Ranaz intercedeu para atraí-lo para fora do palácio, dizendo que queríamos negociar. Disse que não precisaria que ocorresse derramamento de sangue, se ele se dispusesse a dialogar. 

— E ele concordou tão fácil?

— Ele não tinha escolha e, muito menos, sabia das provas que os ducados tinham contra ele. Kendara, Gerot e os outros duques, investigaram ao longo dos anos as ações dele. Meu pai não tinha a menor ideia do que eles tinham na mão.

— E você tinha ideia disso?

— Também não. Fui pega de surpresa em várias coisas.

— Por isso que Ranaz quis negociar. Sabia que se invadissem, mesmo que matassem Deomaz, se livrariam das acusações de traição contra a coroa. Mesmo assim, era uma ação complexa. O derramamento de sangue seria inevitável. Certamente nenhum ducado gostaria disso.

Fira especulou, pensativa, ao escutar o relato de Cécis. Apesar da astúcia, que achava que tinha, ainda se impressionava com as articulações que surgiam, inesperadamente, vindas de qualquer canto do reino.

— Haveria muita morte sem sentido, embora os aliados soubessem que ganhariam. – Continuou Cécis. – Ele concordou, mas quando viu as provas contra ele, roubou uma espada de um soldado e transpassou-a no próprio abdômen, na frente de todos. – Cécis fechou os olhos. – Ele gritava que não seria pendurado numa forca. O rei Deomaz morreu em grande estilo. Arrogante na vida e na morte. – Suspirou, desalentada.

— Seu pai e sua irmã se esconderam muito bem, durante muito tempo. Acreditavam piamente que nada pudesse atingi-los.

— Você sabia de Caterina, não sabia? Às vezes ainda me ressinto com você por não me contar as coisas.

Fira fechou os olhos, assimilando a dor que sentia, ao escutar Cécis falando da própria dor. A princesa se magoava das decisões que a duquesa tomou.

— Desculpe-me, Cécis, mas não acreditaria em mim. Você amava muito sua irmã e eu não tinha provas. Tinha um bocado de palavras de espiões, mas nenhuma prova. Qual a reação que teria, se acaso eu revelasse estas desconfianças, sem ter algo concreto para mostrar? A única atitude que eu poderia tomar, foi a que fiz. Mostrar para Pátiz as mensagens de meus soldados e arrancar dela uma promessa de lhe proteger.

— Quando Ranaz me mostrou as cartas trocadas entre Caterina e Cárcera, foi como um punhal em meu coração. Aquilo me aniquilou. Foi a gota para tomar a decisão e declinar do trono. Não sirvo para isso.    

— Bom, creio que agora é tentar arrumar as coisas para que a paz retorne ao reino.

Fira falou, vendo que os olhos da princesa estavam distantes e tristes, ao relatar o fato. Tentava dar outro rumo à conversa.

— É, mas vai levar algum tempo. A economia está parada e estou ajudando Dólias a revisar as contas do reino. Meu pai fez muita bobagem e não sei como, mas Caterina conseguia tirar muito ouro dele. Ela tem uma fortuna em terras em outros reinos, compradas com as riquezas da coroa. Teremos que reaver tudo e tentar converter em melhorias para o povo e para as terras que pertencem diretamente à coroa de Alcaméria.

— Alcaméria tem muitas terras que pertencem a ela e não a um ducado específico. Outro desleixo de seu pai foi deixar estas terras improdutivas. 

Cécis virou de frente para a duquesa, se apoiando de costas no balaústre da varanda. Observava as expressões de Fira, mas não percebeu nenhuma mágoa nas palavras proferidas por ela. Era apenas uma constatação pesarosa.

— Precisamos conversar, realmente, Fira. Digo, a nível político e econômico. Essas terras pertenciam ao reino de Dotcha, assim como as do ducado de Cárcera e tenho certeza de que sabe disso. 

— É, eu sempre soube. Meu pai nunca me escondeu nada.

— Por isso o admira tanto… sempre foi um pai carinhoso e companheiro seu.

A duquesa não queria sentir pena da princesa, Cécis não merecia isso dela. Todavia, Fira percebia o grau de sensibilidade do assunto. Se aproximou mais e depositou um leve beijo em seu rosto. 

— Não faça isso, senão posso lhe agarrar na frente de todos e será um escândalo na corte. 

Riram juntas da pilhéria da princesa, sabedoras que naquela altura, o escândalo não seria mais tão grande na corte, em vista de tudo que aconteceu.

— Você me distrai muito, Fira. Deixe-me continuar meu raciocínio.

— Pode continuar.

Fira respondeu simplesmente e a princesa assumiu uma postura mais séria.

— O reino de Dotcha não poderá ser reintegrado, pois os cidadãos que restaram da guerra feita pelo meu avô, não tem mais este laço. Quem não morreu na guerra, morreu de velhice, ou de fome. Eu nunca soube de tudo que aconteceu. Sabia de coisas que o povo comentava, mas não tinha acesso à biblioteca de meu pai para ter conhecimento dos fatos verdadeiros. Hoje, de posse da documentação, vejo a atrocidade que foi feita.  

Fira a encarou, reparando no constrangimento com que Cécis falava sobre o ocorrido com Dotcha. A duquesa sempre teve conhecimento, porque seu pai não lhe furtou de contar a história e sempre alimentou nela, um sentimento de profundo apreço pelo antigo reino da mãe. O pai também nunca alimentou a vingança. Ele dizia que “o que estava feito não poderia ser modificado”. Contudo, Alcaméria deveria, um dia, reparar o erro. Deveria fazer com que os cidadãos de Dotcha que sobraram, tivessem uma vida digna.

— Já lhe falei, Cécis, não culpo a sua linhagem pelo que seu pai e avô fizeram. Não se preocupe com isso. Uma pessoa não pode ser responsabilizada pelo ato de outra pessoa. Se assim fosse, você poderia me responsabilizar pelo que meu irmão fez. Querendo ou não, Damian, ou melhor, Cárcera tinha o sangue de meu pai nas veias. Acredito que já saiba de toda a história.

— Sei o que me contaram, mas não sei se o que falaram é verdade.

 Fira deu um gole no vinho e olhou ao longe. Ela deveria manter a princesa e a rainha Dólias a par do que aconteceu, entretanto não tinha disposição para aquela conversa, naquele momento.

— Eu vou contar a você e a rainha, mas não hoje. É um assunto que precisa ser conversado com calma. – Suspirou.

— Sim, eu concordo. Temos muita coisa para resolver juntas. Uma delas é o destino do ducado de Cárcera. Eu e Dólias já conversamos um pouco sobre isso. Por enquanto, nós tomamos a frente do governo do ducado, mas não deverá ficar assim por muito tempo.

— Convocarão os duques para discutirem o destino do ducado de Cárcera?

— Certamente. Temos algumas ideias e teremos que passar por aprovação.

Fira suspirou, outra vez. Eram tantas coisas a resolver e ela se sentia cansada. O perfume da colônia que Cécis usava, era levada ao olfato de Fira pela brisa. A sensação gerava um conforto prazeroso. Algo incrivelmente acolhedor e, estranhamente, lhe tranquilizava. Sentiu os dedos de Cécis passarem em sua fronte, retirando delicadamente os fios de cabelo que lhe caíam nos olhos, soltos do penteado que fizera. Cerrou as pálpebras para apreciar o toque morno das mãos da princesa.

— Senti sua falta.

Cécis declarou, temerosa da reação de Fira, contudo não suportava a vontade de falar e tocá-la outra vez. As semanas que passou afastada, dentro do turbilhão que a vida se tornou, não arrefeceu o sentimento que cresceu, ao longo dos meses que passou com Fira. Não houve um dia sequer em que a princesa não pensasse na duquesa e na vontade de revê-la. Fira a encarou e seu olhar era brilhante, contendo felicidade.

— Também senti muito a sua falta, Cécis. Tiveram dias em que me sufocava. Quando pensava em você, conseguia me acalmar e minhas esperanças retornavam.

Cécis sorriu e seu peito se aqueceu ao escutar as palavras de Fira. Aproximou-se mais, quase colando seus corpos e continuou a fazer o carinho no rosto da nobre, com a ponta dos dedos. Tinha uma vontade atroz de beijá-la, no entanto sabia que não deveria expor a duquesa diante de todos. Apesar de nunca ter ligado para o que os outros pensassem, não queria que a corte falasse mal dela. Entendia como as línguas dos nobres, e suas famílias, poderiam ser ferinas. 

Não precisou tomar nenhuma decisão. Fira segurou o rosto da princesa e a beijou. A princípio, delicadamente, porém as duas mulheres deixaram-se abandonar nos braços uma da outra, encobertas pela penumbra que o céu, anoitecendo, começava a sombrear. Terminaram o beijo e olharam em volta. Os poucos convidados que estavam na varanda, encontravam-se entretidos e afastados delas. Sorriram.

— Tenho que ir. – Fira declarou. – Amanhã não será um dia muito bom para mim.

— Tentarei me desvencilhar das coisas que ainda preciso fazer, e lhe farei uma visita em breve. – Sorriu.

— Certo. Amanhã, além da execução de Dinamark, estarei ocupada com a Assembleia. Estou negociando os termos de minha gestão e tentando fazer com que os condes desistam da forma com que me impuseram a linha de sucessão.

— Pelos Deuses! Ainda insistem nesse absurdo? – Cécis perguntou chocada. – Não receberam os decretos estabelecidos pelo Conselho de Alcaméria?

— Eu assinei o acordo antes da lei que vocês sancionaram. Vou precisar bem mais que os decretos para reverter isso.

— Mmm. – Cécis resmungou mostrando seu desagrado.

— Não confia no meu poder de negociação?

Fira perguntou com um sorriso cínico, levando a princesa a gargalhar e logo depois, tapar a boca, pois chamou a atenção de alguns convidados que estavam tomando uma brisa na grande varanda.

— Eu confio no seu poder de negociação, mas aprendi nos últimos meses que, às vezes, é preciso uma pequena pressão. 

— Nisso você está certa. – Riu. – Mesmo assim, hoje tenho muitos condados a meu favor. Bom, tenho que ir.

Fira falou, deixando a taça que trazia na mão sobre um pequeno aparador no canto da varanda. 

— É uma longa viagem e a noite chegou. 

Cécis beijou Fira, levemente, e fitou seus olhos antes de se despedir.

— O que precisar, conta comigo. Vou participar mais no reinado de minha irmã e estamos fazendo com que as coisas melhorem para o povo e para Alcaméria prosperar.

— Despeça-se de sua irmã e dos nobres por mim. Não vou retornar ao salão.  

Cécis anuiu com a cabeça. A duquesa fez um breve carinho no rosto da princesa, antes de se virar e seguir para a saída.



Notas:



O que achou deste história?

6 Respostas para Capítulo 27 – A Coroação

  1. Oie, Carol!! Tudo bem?
    estória maravilhosa, como sempre!!!
    chegando ao fim… tentei ler com calma pra terminar logo, mas, claro, que estava longe por outras coisas TB, mas voltando aos poucos!!
    beijo pra vc e sua esposa!!

  2. Ficando triste com o fim que está chegando.

    História maravilhosa e encantadora, e sempre vindo dessa mente brilhante da Carol.
    👏👏👏
    Bjs Carol, uma ótima semana pra ti

    • Oi, Blackrose!
      Muito obrigada, pelo elogio e pelo carinho de sempre, Blackrose!
      As pessoas não imaginam o quanto os comentários nos incentivam.
      Bom, vou contar um segredo. Tem pelo menos mais uns 3 caps. rs Mas… A Fira e a Cécis merecem ter um descanso, né? rsrsrs
      Uma boa semana para você, Blackrose!
      Beijus!

    • Olá, Maria Vitória!
      Então, te entendo completamente. Mas Fira e Cécis terão que curtir um pouquinho a vida. rsrsrs
      Obrigadão, Maria Vitória, pelo carinho com as meninas. 😉
      Um beijão para você e boa semana!

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