Líberiz

Capítulo 28 – As leis Superam o Desejo?

Capítulo 28 – As leis Superam o Desejo?

Fira estava amofinada. Apesar de saber, há algum tempo, o que Dinamark planejava, lhe doeu vê-lo pendurado na forca. Durante alguns anos, ele foi um bom amigo, mas quando o pai morreu, a atitude ostensiva dele, em relação à política e ao ducado, lhe chamara a atenção. 

Passou a investigá-lo e poucos meses antes de ser sequestrada, descobriu a interação que ele mantinha com o seu irmão. Tinha consciência das paixões humanas que levavam uma pessoa a se perder no desejo do poder e vaidade, entretanto dificilmente compreenderia. Aliás, nem queria compreender, principalmente depois de escutá-lo falar, antes de seu enforcamento. Lembrou das últimas palavras do conde, quando ele viu sua mulher e o filho no tablado real, presenciando a execução.

 — Não bastou ter livrado essa vaca e esse bastardo da morte? Tinha que trazê-los para que vissem a minha desgraça, não é, Fira? Você se faz de boa moça, mas gosta do sabor da vingança, tanto quanto seu irmão apreciava!

Ela o olhou impassível. Tudo ia mal dentro de si, contudo tinha que ser a governante que o povo precisava. Tinha que estar ali e ordenar a execução da sentença. 

Perguntou-se, muitas vezes, por que Mira quis acompanhar o enforcamento do marido. Ela podia declinar do protocolo, se assim o desejasse. Quando a questionou, disse que seu filho merecia ver e saber por que o pai foi condenado. Foi categórica e falou de forma simples, que não pouparia o filho da verdade. A duquesa não tinha certeza de que isto pudesse fazer bem a uma criança de apenas onze anos, mas não interferiu. Era um direito de Mira. 

— Tem algo mais a declarar?

Fira perguntou, continuando o protocolo e ignorando os insultos.

— Apenas que você queime no inferno e que os Deuses varram Líberiz com o açoite dos ventos, apagando estas terras amaldiçoadas do mundo. Você pode atender este meu pedido, grande Fira Líberiz?

Fira olhou para o carrasco ignorando, novamente, as palavras agressivas.

— Que a sentença seja cumprida. – Determinou.

O carrasco destravou o fundo falso da plataforma e Fira, apesar de olhar na direção da forca, deixou seus pensamentos vaguearem para minimizar em sua mente a imagem do corpo pendendo.  

Retornou dos pensamentos cruciantes e, antes de abrir a porta da sala da Assembleia, aprumou-se. Teria um debate difícil. 

Apesar de ter a maioria dos condados com ela, mudanças sempre traziam medo e desconfianças. O reino inteiro estava mudando e era sabido por todos, que Fira teve um papel fundamental, embora não soubessem dos meandros e nem do teor verdadeiro da sua participação. Ela, além de respeito e admiração da maioria, despertava medo nos seus condes. Entrou.

— Boa tarde, senhores!

Depois de todas as formalidades, as pautas foram apresentadas e as discussões aconteciam acaloradas. Em dado momento, o guarda da porta pediu para falar com a duquesa. Fira o autorizou a entrar e ele lhe estendeu uma mensagem com um selo real de Alcaméria.

— O mensageiro que entregou pediu urgência na resposta e está aguardando do lado de fora. – Comunicou o guarda.

— Abra, milady. Pode ser algo de suma importância.

Falou o conde de Verome, sendo acompanhado por todos em anuência. Fira rompeu o lacre e leu a mensagem.

Ao ler as palavras, a duquesa empalideceu. A mensagem era de Cécis. Não trazia nada sobre qual assunto a princesa queria deliberar e, ao mesmo tempo, conhecendo o temperamento da princesa, sentia que algo muito radical ocorreria a partir dali. 

— Então, qual é a mensagem, milady?

Perguntou o conde de Avar, com um sorriso no rosto, vendo a expressão de espanto e abatimento de Fira. Ele estava odiando o comando da duquesa. Ela interferia de todas as formas na administração do condado e, cada vez mais, o conde perdia prestígio na Assembleia. Viu que ela se abateu e presumiu que algo aconteceu que a implicava diretamente. Para que aquela mulher segura estivesse sem palavras, certamente era grave.

— Chame o senescal, guarda Eriel. – Finalmente Fira falou.

— Sim, Senhora. – O Guarda perfilou e saiu da sala.

— O senescal? O que houve, Fira?

Perguntou o conde Verome, deixando todos em alerta. Fira jogou a mensagem na mesa e Avar logo a pegou. O sorriso que trazia no rosto se apagou de imediato, dando passagem a um semblante assustado. 

“Cara duquesa de Líberiz,

Peço audiência hoje na Assembleia de Líberiz, em caráter de urgência, para me pronunciar. Trago um decreto real assinado pela rainha Dólias de Alcaméria. Aguardo a resposta na sala de espera.

Princesa Cécis de Alcaméria”

O senescal entrou e Fira nem o deixou se aproximar.

— A princesa Cécis de Alcaméria está na sala de espera. Vá até lá, se inteire das conveniências e a anuncie com as devidas honras.

— Sim, milady.

A sala estava em silêncio e ninguém mais proferia qualquer palavra, diante da expectativa. Os questionamentos saltavam na mente de todos, inclusive, da própria Fira, que intuía a ação da princesa. A conversa da noite anterior e pela forma como Cécis ficara contrariada diante do que lhe contara sobre a Assembleia, dava a duquesa alguma ideia sobre a ação de Cécis.

Eu não acredito! Vou te matar, Cécis!

Era o que Fira pensava, sem saber realmente o que a princesa faria. A porta se abriu e o senescal se postou de lado, batendo o bastão três vezes no chão.

— A princesa Cécis de Alcaméria se apresenta nesta Assembleia oficial, portando uma mensagem do governo central para pronunciamento.

Todos se levantaram, enquanto Cécis entrava no recinto vestida com um traje oficial. O escândalo foi o traje de corte masculino e… de oficial real de mensagens! Isto parecia um absurdo para uma princesa de um reino.

Ela não podia ser menos debochada?

Embora Fira estivesse com raiva, a forma que Cécis se apresentou, fez com que ela se esforçasse para segurar o riso. A fisionomia espantada dos seus condes foi um espetáculo à parte que Fira não se privou em regozijar.

— Não venho como a princesa de Alcaméria e sim, como uma mensageira real. Hoje, logo cedo, foi liberado um decreto em Alcaméria pela nossa rainha Dólias e promulgado oficialmente pelo Conselho Real. O Conselho Real vem implementando mudanças para que atos tiranos e de injustiças, como aconteceu no reinado de Deomaz de Alcaméria, não voltem a ocorrer. Sendo deliberações tão importantes, eu, princesa Cécis de Alcaméria, me vi imbuída na responsabilidade de portadora das novas leis aprovadas e outras revogadas. Pedi à rainha que me enviasse a Líberiz, em consideração pelo apoio deste ducado ao governo central.

Cécis se dirigiu a Fira, lhe entregando os novos decretos reais. Fira os abriu, e após lê-los, deixou que eles passassem de mãos em mãos. Estava apreensiva. Não sabia a reação dos condes, porém sabia que, mais a frente, teria uma nova batalha. Na medida em que o documento foi passando pelos condes, o silêncio na sala ficava mais patente. Quando chegou a Avar, ele destemperou.

— Isto é uma piada? Como assim todos os acordos de sucessão, anteriores à nova lei, estão invalidados? Somos obrigados a nos adequar aos novos decretos imediatamente?

Cécis lançou um olhar ferino e acusador.

— Está questionando o Conselho Real, conde? Existem várias alterações pontuadas neste documento e é apenas o decreto de sucessão que lhe incomoda? 

Avar se sentiu acuado, recebendo olhares atravessados dos outros condes.

— Não, é que… serão muitas mudanças que…

— … Gostaria de colocar o teor de validade destas novas leis e porque foram deliberadas pelo Conselho de Alcaméria. Talvez assim, os senhores entendam. Muitos acordos anteriores foram pautados nas falhas das leis que vigoravam no reino. Estas alterações servem para que, daqui por diante, não haja contradições entre algumas destas leis. Os entendimentos legais devem estar harmonizados para que Alcaméria caminhe sem discrepâncias entre os regimentos dos ducados. Como podem ver no documento, os ducados terão um tempo para se adequar.

— Agradecemos a sua consideração, princesa. Talvez possamos deliberar algumas coisas ainda hoje.

Fira se pronunciou, tentando dispensar Cécis, educadamente e dispersar a tensão gerada. Procuraria apaziguar seus condes. Não podia negar que, apesar da loucura de Cécis, estava feliz. Cécis fez o que ela estava louca para fazer. Empalar alguns de seus nobres com a própria merda que eles defecavam.

— Só mais uma coisa, duquesa. 

— Sim, princesa. Pode falar.

— Gostaria de me pronunciar oficialmente, perante esta Assembleia, para que não haja intrigas ou desconfianças políticas futuras, a respeito de minhas intenções. É uma rogativa formal, pessoal e da mais pura sinceridade, sem dubiedades intrínsecas à política.

Todos se entreolharam, estranhando a forma como a princesa se colocava. Desta vez, Fira ficou no escuro completo. Não tinha a menor ideia do que Cécis pretendia e um sinal alarmou na mente, no entanto, manteve a imparcialidade. Consentiu o pronunciamento, meneando a cabeça afirmativamente.

— Declaro aqui, perante os nobres do ducado, meu apreço pela senhora. – Encarou a nobre, dirigindo-se unicamente a ela. – No tempo que convivi com a duquesa em Líberiz, minha estima nasceu. Há pouco tempo, quando me vi liberta dos grilhões que meu pai me imputou, percebi que meu apreço era um sentimento maior que amizade e gratidão. Peço a milady que considere me receber para que possa lhe mostrar minha estima.

Os condes estavam assombrados, assim como a própria Fira. 

O que essa mulher está fazendo!?

— Não quero impor minha presença e nem que me aceite pela minha posição no reino de Alcaméria. Apenas peço para que me conheça melhor e, se mais à frente se agradar de minha pessoa, eu possa lhe cortejar como merece uma dama. Não há necessidade de que me responda agora. Eu estarei na casa de campo do duque Kendara, aqui em Líberiz.

Cécis acentuou o local onde estaria, para pontuar a todos que era apoiada por um grande ducado. 

— Esperarei lá pela resposta de milady, para que não haja constrangimentos ou fofocas desrespeitosas em relação à minha presença. 

A princesa se virou de frente para os nobres, na intenção de afirmar sua postura.

— Peço licença à Assembleia. Milady… – Fez uma reverência para a duquesa. – Senhores… – Meneou a cabeça em direção a mesa e se encaminhou para a saída. 

Fira estava estarrecida. Nunca em sua vida imaginaria algo parecido. Estava paralisada. Deixou seu corpo cair na cadeira.

— Pelos Deuses! O que eu faço?

Ela perguntava a si e não aos seus nobres. Lógico que eles interpretaram errado a reação da duquesa. Pela petulância que possuíam, achavam que ela estava pedindo conselhos com relação à própria vida, como se dissesse respeito a eles. Viam como se Fira estivesse encarando o que acabara de ocorrer como uma ato político de extremo tato e não de cunho pessoal.

Mais uma vez o sorriso do conde Avar bordou os lábios.  Entendeu toda a ação como uma humilhação pública e resolveu tripudiar, dando opiniões para instigar os outros nobres e fazê-la baixar a cabeça.

— Vejo que causou boa impressão na princesa, milady. Sinto muito que algo tão constrangedor tenha chegado à vossa porta, mas diante de um pedido tão formal e da parte de quem veio, sugiro que milady aceite. Seria de bom tom, pois é a representante deste ducado e, talvez, uma negativa pudesse constranger a corte de Alcaméria.

Fira o fitou, percebendo o cinismo em seu tom. Fechou os olhos, morrendo de vontade de falar que ele era um homem burro-estúpido e que não conseguia enxergar um palmo à frente do nariz. Não se conteve e sorriu. Ela tinha que admitir: Cécis era esperta e começou a tatear as regras do jogo. Os nobres a olharam como se a duquesa tivesse desequilibrado com o súbito pedido da princesa e estivesse chocada. 

— Sabe de uma coisa, conde Avar? Concordo com o milorde.   

— Concorda?!

Ele perguntou sem compreender muito bem a reação de Fira e os outros condes levavam confusão em seus rostos.

— Sim. Eu aceito conhecê-la melhor. Assim conseguirei saber o que passa pela cabeça da princesa. Consolidaremos laços maiores com Alcaméria e mesmo que mais à frente eu decline, conhecerei a forma dela pensar.

Fira falou como se estivesse aceitando o convite por puro interesse político. Alguns condes se intimidaram com o pragmatismo da duquesa e outros, não sabiam o que pensar. Avar se incomodou. Achava que Lady Fira esbravejaria, no entanto, simplesmente cedeu ao apelo político, não se importando com o que falassem sobre ela. Para Fira, aquela se transformou numa oportunidade única de estar com Cécis, livremente.

— Não se sintam mal por mim. – Completou Fira séria com uma ironia bem disfarçada. – Não estou indo para a forca e a princesa parece ser alguém inteligente. Sinto que terei boas conversas, e como ela mesma disse, a decisão estará em minhas mãos. Acredito que a Assembleia possa ser suspensa. Vocês devem compreender que todas as informações que chegaram até nós foram surpreendentes e, eu, ainda tenho que digerir as que cabem unicamente à minha pessoa. – Levantou-se, levando os nobres a se levantarem também.

— Claro, milady. Deverá ter seu tempo para pensar melhor sobre o que ocorreu. – Verome falou.

Fira o olhou. De longe era um dos melhores condes que existia no ducado. Cuidava de suas terras com desvelo. Tinha duas filhas e um filho, que era o caçula. Um dia, ele havia confessado a ela que estava aliviado com as novas leis de sucessão. Estava envelhecendo e confiava nas filhas. Esperar para educar o filho, ainda criança, não lhe parecia muito tentador e deixar o condado sob os mandos de um genro, não lhe agradava.

A sala se tornou um reboliço. Os condes se levantaram assim que a duquesa dispensou a Assembléia e conversavam aos pares. Lady Fira pegou seus documentos e ensejou sair. Lorde Verome a acompanhou. Ele estava sério e preocupado.

— Sabe que não precisa aceitar, milady. A própria princesa lhe deu a escolha.  

— Certamente, Verome, mas infelizmente seria grosseria minha declinar do pedido da princesa e, como o conde Avar falou, tenho minhas obrigações para com o ducado. Não se preocupe. Estarei bem.

Falou mais intimamente com o nobre, enquanto caminhavam para o corredor.

— Não vejo dessa forma. Milady não é obrigada a nada. Acredito que a princesa não retaliaria contra o ducado. Não me parece o feitio desse novo governo. O conde Avar… e me perdoe falar francamente, é um estupido e obtuso.

— Não precisa se desculpar por falar as “qualidades” do conde Avar. Ele não me pressiona mais. O fato é que, apesar de ficar chocada, vejo uma oportunidade de descansar um pouco, conde. A princesa Cécis parece que está mais calma e segura. Também é inteligente e nos entendemos bem quando esteve aqui. 

— Se milady diz… Só não faça por obrigações e não se furte de negar o cortejo, caso lhe incomode. Avar não pode imputar algo desse tipo a você. O acordo de sucessão que assinou me incomodava na época, agora que está livre dele, seria indecoroso que nós a forçássemos nesse sentido.

— Obrigada pelo apoio, conde Verome. É bom saber que existem nobres como você; honrados. 

Chegaram ao corredor que levava para a ala dos quarto e Verome fez uma reverência para a duquesa. Ele tomou o caminho para fora do castelo e Fira o observou ligeiramente, antes de ir para o seu quarto. 

A ansiedade cresceu e assim que entrou em sua sala particular, pegou a pena de escrita e escolheu um papel de mensagem sem ranhuras, bem confeccionado. Escreveu uma mensagem dobrou e fechou com o selo do ducado.

“Cara princesa Cécis de Alcaméria,

Aceito o seu pedido e se não for muito abuso de minha parte, peço que me receba amanhã, para conversarmos melhor.

Cordialmente,

Duquesa Fira Líberiz”

Cécis sorriu, diante de uma mensagem tão formal, que chegou através de um mensageiro oficial do ducado de Líberiz. O mensageiro chegou à casa de campo de Kendara com a incumbência de esperar pela resposta. Cécis prontamente se sentou à mesa da biblioteca, pegou uma pena, escrevendo a resposta. Esquentou a cera de selo numa vela e gotejou sobre a dobra do papel para, logo em seguida, firmar seu anel com a insígnia real. Entregou ao mensageiro.

“Cara Duquesa Fira Líberiz,

Alegro-me com a sua resposta. Ficarei muito feliz em me brindar com a sua presença. Espero, ansiosamente, por milady amanhã.

Princesa Cécis de Alcaméria”

 ***

Fira chegou à casa de campo, acompanhada de alguns guardas. Foi recebida por um serviçal e acompanhada até o interior da propriedade. Pediu para que o rapaz arrumasse alojamento para os guardas descansarem.

Não era uma propriedade enorme, mas era cercada por um muro baixo de pedras, cobertas por trepadeiras que já exibiam as flores da estação. O jardim que antecedia a casa era grande e bem cuidado.  O verde se tornava mais vivo, sob o beijo dos raios de sol da manhã e as flores exalavam perfumes diversos, que se faziam suaves pela brisa que lambia o ar. 

Chegaram até uma porta, que foi aberta por outro serviçal e mostrava uma sala ampla, decorada com sofás, poltronas e mesas de jogos. A luz do sol invadia a sala através das grandes portas abertas e davam visão para outro jardim. A duquesa viu Cécis se aproximar, trazendo dois cálices de sidra nas mãos.

— Seja bem-vinda, Duquesa Líberiz!

Ofereceu-lhe um cálice, sorrindo e se voltou para o serviçal.

— Está dispensado, Percy. Temos aqui tudo que necessitamos. 

— Miladys…

O serviçal fez uma reverência e saiu, fechando a porta. Cécis olhou Fira e fez um cumprimento com o cálice, recebendo outro e um grande sorriso por parte de Fira.

— Milady gostaria de se sentar?

Perguntou Cécis, fazendo um gesto cerimonioso com a mão, não dispensando a ironia. Fira gargalhou do comportamento da princesa, sabendo que ela estava escarnecendo da pilhéria que pregou nos condes da Assembleia de Líberiz, no dia anterior.

— Acho que você é uma das poucas pessoas que consegue me surpreender, Cécis. Eu achava que seus atos eram pura impulsividade, mas agora, vejo o quanto me enganei. 

Fira falou sorrindo, enquanto caminhava. Sentou-se num sofá de frente para uma das portas do jardim. A princesa a acompanhou, observando os movimentos dos quadris de Fira e sentou-se ao seu lado. Reparava na calça de montaria ajustada ao corpo da duquesa e, na bata branca de algodão, solta por fora da calça, bordada com pequenos leões na lapela. Ela estava linda vestida daquele jeito despojado.

— Eu sou mesmo. – Afirmou com convicção. – Lembro bem do primeiro beijo que roubei de você, te deixando furiosa. Vi a surpresa em seus olhos. – Riu.  

— Por que se lembra deste episódio? Foi por roubar o beijo ou por que gostou dele? 

— Na verdade, pelos dois. Eu não lhe conhecia, e não sabia se podia confiar em você. Quando entrou na tenda, pude reparar direito seu olhar, sua forma de falar e o jeito seguro. Me chamou atenção. Eu não a beijaria, mas quando me provocou, fazendo piada de como me encontrou na noite anterior, tive vontade de lhe dar uma lição.

— Você é louca, isso sim. – Fira respondeu, rindo. – Só para constar, saiba que eu deixei que você me escutasse naquela noite que lhe encontrei na estalagem.

— Você? E por que faria isso, Fira?

 — Eu não sei. Eu queria que você me visse. Estávamos nos comunicando por bilhetes e achava aquilo perigoso. Eu queria que me conhecesse pessoalmente. Só não imaginava que você pudesse me encontrar em uma campanha nos limites de meu ducado.

— Você falou que me conhecia dos saraus da corte. Que já tinha me encontrado por lá. Eu nunca reparei nos nobres, porque aquilo me entediava até a alma. Confesso que me arrependo disso. – Cécis sorriu. 

— Não foi bem dos saraus. Conhecia você superficialmente nos saraus, mas depois encontrei você em outros lugares… tabernas, feiras livres de festas em algumas cidades. Nunca me apresentei, porque não estava segura se poderia expor o plano que tinha do sequestro.

— Você me vigiava há muito tempo?

— Desde antes da morte de meu pai. – Fira riu sem muito gosto. – Ele estava doente há mais de um ano e meio, quando faleceu. Seis meses antes da morte, já o substituía nas Assembleias, levando as suas resoluções para os condados. Vimos que não seria tão fácil fazer com que os condes aceitassem a minha ascensão à frente do ducado.

— E o que isso teria a ver comigo?

— Simples. Eu tinha visto você em alguns festejos em cidades longe da corte, como se fosse uma pessoa comum, assim como eu fazia. Cárcera já se aproximava de Deomaz e meu pai e eu, nunca tiramos os olhos dele. 

— Como disse na outra noite, soube superficialmente da história de Cárcera…

A duquesa silenciou, inspirando aos poucos e cerrando os olhos, como se sugasse forças do ar para continuar a falar.

— Apesar de tudo que ele fez à minha mãe, ainda era um filho e meu pai se responsabilizou pelo deslize de caráter de Damian. Mesmo assim, ele não confiava. Foi quando eu contei a meu pai sobre a minha ideia de lhe abordar, mas papai temia que eu me enrolasse numa teia da qual só saísse morta.

— Vocês precisavam saber quem eu era e como me comportaria diante de uma proposta como a que me fez.

— Exatamente. Foi quando comecei a seguir você. 

— E viu que eu não frequentava somente as festas de lugarejos…

— E que surpresa a minha! 

A duquesa não se conteve, rindo com gosto. Ajeitou-se no sofá, pousando a taça de sidra na mesa de centro. Fez um carinho no rosto amuado da princesa.

— Não me leve a mal, Cécis. Eu sempre lhe falei que não a condenava por isso e não julgo mesmo. Você me intrigou desde o início. Pensava que se eu tinha sobre meus ombros tamanha carga, mesmo com apoio de meu pai, você deveria ter o dobro ou mais sendo a filha primogênita do rei.

— Minha vida inteira foi uma tortura, Fira.

— Sei disso.

— Você mandou pessoas me vigiarem? Fira, foi perigoso o que fez.

— Não! Sempre fui eu quem te seguiu. Não seria tola de conferir essa tarefa a outra pessoa. Você não tem noção de quão extenuante foi para mim. Nessa época, quase não dormia. Às vezes duas ou três horas por noite. Quando meu pai morreu, tomei a decisão. Não aguentaria por muito mais tempo e já intuía o que faria. Enfim… Um dia te segui e a vi negociando com um homem, mal-encarado, uma casa no reino de Madeleine. É um reino bem distante. Foi aí que entendi que você fugiria.

— Você me escutou negociar? Como?

— Não se espante tanto. – Gargalhou. – Admita que andava numa fase em que bebia muito. Eu entrei naquela taberna e me sentei  a uma mesa de costas para você e seu acompanhante.

— Eu estava desesperada, não sabia mais o que fazer.

A princesa falou de cabeça baixa e ligeiramente envergonhada. 

— Também estaria desesperada se estivesse na mesma situação. Contatei você diretamente, à primeira vez, disfarçada de mercenária, porque a escutei nessa negociação. Tenha certeza de que hoje me arrependo disso.

— Pois saiba que não me arrependo de nada do que passamos, Fira.

Se entreolharam cúmplices e carinhosas.

— Mas o que te deu para fazer o que fez ontem?

— O que me deu? Ora, Fira, estes cornos nunca vão aprender. Parece que uma coisa tão simples, se torna um grande barril de merda, porque eles acham que tem que impor o grande “caralho” que tem entre as pernas. Então, que engulam a própria!

— Ei, calma! Pensei que andava mais polida. Cheguei a acreditar que a vida na corte, por estes tempos, tivesse feito de você uma mulher de boa família! – Fira falou, gargalhando da própria piada. – Eu gostei do que fez. Avar e Remis estavam fazendo da reunião um circo tão grande, que estava a ponto de me levantar e dizer para me destituírem.

— Faria isto? – Cécis perguntou alarmada.

— Aceitar a destituição eu não faria, no entanto, colocaria em pauta como último recurso e acredito que não teriam coragem. Eles podem tentar impor os grandes “caralhos” deles, como você falou, mas não tem “colhões” para isto. Não enfrentariam a população, que está satisfeita com a minha gestão e, muito menos, os outros ducados e a repercussão na corte. Só ladram. O que eu faço é tentar mediar, e aí, eles se veem no direito de se impor.

— E por que você não se impõe? 

— E criar inimizades? É isso que Avar e Remis querem. Tentam fazer com que eu vacile e me estranhe com o restante dos condados. Eu perderia apoio e governar se tornaria um inferno. 

Cécis olhou para sua taça, para logo depois se deixar relaxar no sofá. Fechou os olhos, suspirando. Estes jogos ainda a irritava, no entanto, tinha consciência que não poderia se opor enfaticamente. Fira a observou, sabendo que desagradava a princesa. No fundo, foi por isso que passou a confiar nela. 

“Confiar? Eu a amo. Esta é a verdade.”  

Constatou e admitiu.

Passou a mão pelos cabelos negros e curtos. Cécis havia cortado, de novo, deixando pequenas mechas desalinhadas. Fira sorriu, apreciando a textura e o jeito rebelde.

— Gostei, de verdade, do que fez ontem. – Reafirmou.

A voz da duquesa saia rouca, embargada por uma emoção que começava a se tornar companheira dela, toda vez que via a princesa. Cécis abriu os olhos devagar, apreciando o leve carinho feito pelas mãos macias de Fira. Fitou-a.

— Eu fiz porque tenho um objetivo. O que falei ontem, foi para chocar, mas também para que eles ficassem em uma posição difícil de intervir negativamente.

Cécis se aprumou no sofá, elevou sua mão e acariciou o rosto de Fira, como se estivesse reconhecendo-o através de seu toque. Tocou os lábios da duquesa com as pontas dos dedos, delineando-os com o olhar.

— Eu não estava brincando ontem, Fira. Meu objetivo é que você me conheça melhor e se, mais a frente, achar que sente algo a mais por mim, além do desejo sexual, permita que eu a corteje. A coisa cresceu dentro de mim, não sei como… 

Cécis calou, tentando se afastar e Fira a segurou.

— Olha para mim, Cécis. Termine de falar, olhando para mim.

Fira pediu súplice e a princesa se voltou para ela, prendendo o ar de leve, para depois soltá-lo. Ela precisava de coragem. Tinha medo de que a duquesa se afastasse dela pelo que falaria.

— Eu não sei explicar. Não sei o que houve, apenas que… você não é somente uma mulher que me traz prazer na cama. Eu te admiro, te respeito e…  sinto que me apaixonei por você. Eu… eu não consigo ficar longe de você e…

— …Aceito.

— Hã?!

— Eu disse que aceito.

Fira sorriu ao interrompê-la, respondendo ao pedido mudo. Achou gostosa a sensação de ver a expressão de espanto e a felicidade no rosto e olhar da princesa.

— Eu aceito que me conheça, assim como quero conhecê-la melhor. O que tem sentido por mim, tenho nutrido por você também, princesa.

 Fira mexeu com o título de Cécis e sorria. O coração batia num ritmo acelerado. Sentia ansiedade e alegria. Medo e satisfação por tentar algo novo, do qual não tinha a menor vivência. 

Cécis paralisou alguns segundos, diante da resposta. Retomou a consciência, abrindo um grande sorriso, jogando-se sobre a duquesa, beijando-a. Fira riu entre os lábios e retribuiu feliz ao beijo. Sentia a boca morna e a língua macia da princesa afagar a dela com paixão. Ficara contente com a decisão que tomou. Declarar que também sentia algo mais por Cécis, aliviou a opressão que se cercava dela toda vez que pensava sobre o assunto.

— Ei! Você não falou que queria me cortejar como uma dama merece?

A duquesa indagou, afastando-se dos abraços insinuantes de Cécis.

— Sim. E não a estou cortejando como uma dama merece? Ou acaso as damas têm que ser torturadas diante do desejo que sentem? – Riu. 

Fira meneou a cabeça negativamente, sorrindo diante dos modos de Cécis. A princesa se levantou, estendendo a mão para que a duquesa a acompanhasse.

— Vem. Vamos dar uma volta.

Fira aceitou o convite e saíram pela porta, caminhando lado-a-lado, através das passarelas de pedras que conduziam ao jardim. Elas conversaram algumas horas sobre suas vidas e almoçaram. Fira voltou para o castelo de Líberiz, sentindo-se mais leve, mesmo sabendo que a repercussão de um possível relacionamento dela com a princesa de Alcaméria poderia causar certo rebuliço entre a população e a nobreza.



Notas:



O que achou deste história?

7 Respostas para Capítulo 28 – As leis Superam o Desejo?

  1. Cécis é maravilhosa! Surpreendeu até Fira. rs
    Finalmente elas admitindo o que sentem.
    Capítulo lindo e que deixou meu coração quentinho, Carol.
    Obrigada
    Beijo

    • Oi, Fabi!
      Saudades, menina. Semana passada não consegui responder, mas essa semana estou respondendo a todo mundo. rs
      As duas não só estão admitindo como estão curtindo o sentimento. 😉
      Valeu, Fabi!
      Beijão

  2. Bah, finalmente elas confessaram o seu amor. Que delícia de história! Beijos, Carol.😉😘

    • Oi, Simone!
      Desculpa por não responder semana passada. Essa semana ficou mais tranquilo.
      Sim, elas se confessaram e estão nas nuvens com isso. rs
      Brigadão pelo carinho e um beijão pra ti!

  3. Acho que por hora nossas lindas e amadas damas podem usufruir de um pouco de paz e amor.

    Bjs Carol!
    Boa semana pra ti e a família
    😢

    • Oi, Blackrose!
      Pois é, menina, finalmente podem curtir um amorzinho sem medo. rs
      Já, já, vou responder o próximo comentário. Essa semana tá mais tranquilo.
      Brigadão Blackrose e um beijão!!

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