– Porque você está morta! Você morreu há onze anos!
Rafael a olhava confuso e surpreso.
Camila que era, na maior parte do tempo, a calma em pessoa parecia ter enlouquecido e falava aos berros com aquela mulher misteriosa que era a responsável por ter recuperado sua liberdade. Sua fisionomia havia se transformado completamente, em nada se parecia com a mulher que o treinara e com a qual compartilhava uma amizade havia anos.
A moça estava transtornada e a culpada disso era aquela estranha que, ao mesmo tempo em que lhe causava admiração, também lhe causava desconfiança.
Usando seu bom senso, Rafael tentou fazer com que Camila se acalmasse para que pudessem partir, afinal ainda não estavam seguros.
– Você enlouqueceu, Camila? Vá se trocar, não temos tempo para histeria e…
Ela o empurrou para longe, a mão espalmada em seu peito.
– Não vou a lugar algum até saber a verdade!
– Do que está falando? – olhou-a aturdido.
Não tinham tempo para perder ali, não demoraria para que a fuga fosse descoberta, isso se já não a tinham descoberto. Ele tentou se aproximar dela novamente, mas ela o repeliu com um olhar colérico.
– Eu quero a verdade – exigiu.
Eva, que ainda se mantinha sentada no chão, retirou do bolso um lenço com o qual enxugou o sangue que escorria de seu nariz ao mesmo tempo em que dizia:
– Não sei do que está falando. Como pode perceber, estou bem viva e nunca a vi em minha vida antes de nosso encontro naquela cela.
Camila aproximou-se dela perigosamente e Eva aguardou pela agressão que não veio.
– Mentira! Pare de fingir!
Eva respirava pesadamente, tanto pelo sangue que ainda não conseguira estancar, quanto pela visão de Camila diante de si, zangada e terrivelmente linda.
– Não estou fingindo. Realmente, não sei do que está falando, apenas cumpri ordens.
Camila não havia recuado nenhum passo ou desviado o olhar do dela. Puxou a pistola que se encontrava presa à sua cintura e apontou para Eva.
– Só sairei daqui quando souber toda a verdade e você vai contá-la por bem ou por mal. Vai me contar ou você vai morrer de verdade.
Incrédula, Eva a mirava e não conseguiu evitar que um sorriso se desenhasse em seus lábios. Algo que raramente fazia, mas que sempre esteve presente quando Camila estava por perto.
A atitude da prima a tinha desnorteado, ela parecia mais uma criança descontrolada do que uma mulher adulta de inteligência e bom senso incomparáveis. Ergueu-se de um pulo e, com a agilidade da infância, aproximou-se rapidamente dela.
Olhos nos olhos e a mão com a qual Camila segurava a arma já não parecia tão firme quando Eva perguntou:
– É isso que realmente quer?
A voz de Camila estava trêmula quando respondeu.
– Não, só quero a verdade.
– A minha morte lhe deixaria feliz? Isso a faria se sentir melhor?
Não houve resposta dessa vez e Eva continuou.
– Se for este o caso, então atire, mas faça-o rápido e vá embora, pois não arrisquei minha vida junto com a de seus amigos para chegarmos até aqui e você se permitir ser pega novamente – segurou-lhe o braço com firmeza e se aproximou até que o cano frio da arma encostou em seu peito.
Camila estava tão surpresa que nem reagiu.
– Acho que desta distância não haverá a possibilidade de que eu sobreviva.
– Você é louca? – interveio Rafael, mas nenhuma das duas lhe deu atenção.
– Vamos, o que está esperando? – continuou a espiã.
Nesse instante, uma lágrima percorreu a face de Camila até a ponta de seu queixo, indo de encontro ao chão. Logo após, outra seguiu o mesmo caminho, e outra lágrima a acompanhou numa torrente constante até que ela soltou a arma e se jogou nos braços de Eva, escondendo seu rosto entre seus cabelos e perguntando entre soluços:
– Por que me abandonou? Por quê?
Diante de um Rafael confuso e abismado com toda aquela cena, Eva abraçou a pessoa mais importante de sua vida tão forte que temeu que lhe faltasse o ar.
As emoções fluindo em seu ser como o sangue em suas veias.
Para quê fingir, se não havia mais como esconder a verdade dela? E, assim como Camila, se permitiu chorar como havia anos não fazia, e sentiu o sabor salgado de suas próprias lágrimas, enquanto as da mulher em seus braços molhavam seu ombro. E, naquele instante, o tempo pareceu parar para as duas, mas para Eva, aquele momento era ainda mais dolorido, pois tinha em seus braços não só sua prima, mas também, a mulher a quem amava desde a infância. No entanto, sabia que para Camila, ela era uma irmã.
O tempo em que ficaram unidas naquele abraço foi longo e único. Para Eva, não havia outro lugar em que desejasse estar além dos braços daquela mulher. Para Camila, era a concretização de um sonho, Eva estava viva e em seus braços.
Quando se afastaram, Camila se apossou das mãos de Eva. O olhar preso ao dela e sorriu ao reconhecer nos lábios dela o mesmo sorriso que sempre tinha quando estava feliz.
– Droga, baixinha, nunca consegui mentir para você, não é mesmo? – Eva falou com evidente emoção na voz.
– Não mesmo! E quem você pensa que está chamando de baixinha? Temos quase a mesma altura agora.
Eva riu e a puxou para outro abraço. Por ela, o mundo poderia se acabar naquele instante. Nada mais importava.
Rafael pigarreou e elas se separaram para lhe dar atenção.
– Olha, não sei o que está acontecendo aqui. Sinceramente, estou muito confuso e curioso, mas este não é o momento para as explicações. Será que poderíamos ir embora? A esta hora devem estar nos caçando até debaixo dos tapetes daquela Agência.
Camila corou violentamente e soltou a mão de Eva.
– Você tem razão. Me desculpe por isso, – pousou o olhar na prima com um sorriso tímido – me desculpem.
Eva, que ainda estava inebriada pelo abraço que tinham trocado, apenas lhe sorriu com o canto da boca, deixando que a realidade da situação em que estavam a arrastasse de volta para a antiga Eva, para a espiã, para a mulher de sangue frio e olhar duro.
Ela dirigiu aos dois um inclinar de cabeça e voltou a entregar a mochila, que estava jogada perto do pneu traseiro do carro, para Camila.
Enquanto a moça se trocava sob um olhar nada inocente de Eva, esta tentava, a todo custo, enxerga-la com outros olhos, repetindo mentalmente que ela era sua prima, quase sua irmã. Tentava sufocar a angústia que sentia por amá-la e saber que nunca seria correspondida da mesma maneira.
Enquanto isso, Rafael executava os últimos preparativos para sua viagem. Escondeu o melhor que pôde o caminhão militar entre algumas árvores e arbustos e se posicionou no banco do motorista do novo carro de fuga. Minutos depois, Eva e Camila juntaram-se a ele, sentando-se no banco traseiro do veículo.
Durante quase toda a viagem até bem próximo da fronteira que delimitava o controle do governo e o controle das FL, o silêncio reinou dentro do carro. Por vezes, Eva se pegou a observar Camila e, conseqüentemente, sendo observada por ela.
Eva tinha tanta coisa para falar, mas sabia que todas aquelas palavras vindas de seu coração nunca seriam sonorizadas e que seus sentimentos seriam, para sempre, apenas de conhecimento seu e de seu tio.
Enquanto observava a paisagem através das janelas escuras do carro, recordou-se do dia em que seu tio lhe dera o pingente, que usava no pescoço havia anos, com o retrato de Camila. Contrariando suas próprias decisões, ela deixou-se dominar pelas emoções e começou a chorar. O tio, em sua ignorância de seus reais sentimentos, a abraçou dizendo:
– Acalme-se, filha. Você escolheu esse caminho.
E ela, incapaz de continuar calada, contou-lhe, ainda abraçada a ele como quando era criança e confessava uma travessura, que amava sua prima como mulher e de nenhuma outra maneira possível.
Confessou que pensava ser apenas uma ilusão infantil, mas que em todos aqueles anos separadas, nunca deixou de pensar em Camila, mesmo quando experimentou o amor nos braços de uma mulher, ainda na Espanha. Mesmo assim, não esqueceu o que sentia por ela. E naquele momento, tendo em mãos o pingente com o retrato da mulher que Camila havia se tornado e constatando que a beleza de que sempre fora portadora havia aumentado, seu coração bateu forte dentro do peito provando para ela que o que sentia era verdadeiro e jamais iria mudar.
O General a olhava sério quando terminou sua confissão e deixou que um longo minuto se passasse até falar.
– Sabe, que para ela você é apenas sua prima. Sabe, que pensa que está morta e que nunca te verá com outros olhos que não os de irmã, não é mesmo?
Ela baixou o olhar e enxugando os últimos vestígios das lágrimas com as mangas da blusa, sorriu-lhe timidamente, enquanto balançava a cabeça em aquiescência.
– Eu não tenho o direito de julgar o que se passa em seu coração, embora esteja chocado com sua revelação. Isso não muda, em nada, o amor e carinho que sinto por você, mas sinto muito por saber que nunca terá o amor de quem ama.
A verdade nua e crua, mesmo estando preparada para ouvi-la de seu tio, não pensou que pudesse ser tão dolorosa.
Desde aquele dia, o General passou a falar menos de Camila quando estavam juntos e, compreendendo o que ele tentava fazer, ela parou de perguntar pela prima. Doía-lhe, mas ele estava certo, não valia a pena alimentar um amor que nunca seria correspondido, então procurava aplacar um pouco a solidão com mulheres que conhecia em bares, quando se dispunha a sair para beber.
Não tinha amigos, mas sentia-se mais humana quando se via no meio de pessoas normais que queriam apenas se divertir e afastar um pouco o fantasma do medo e da opressão que os cercava. Raramente encontrava alguma mulher que lhe chamava a atenção e, por mais que tentasse negar e que repetisse para si mesma que era apenas coincidência, sabia que todas as mulheres com quem já havia se deitado, sem exceção, pareciam com Camila.
Uma lágrima solitária deslizou por sua face e antes que a enxugasse, Camila o fez carinhosamente, enquanto acariciava seu rosto, entrelaçando suas mãos em seguida.
– Como soube? – Eva ouviu-se perguntar baixinho, saindo de suas lembranças.
Camila ajeitou os cabelos nervosamente, enquanto Rafael não perdia um movimento do que faziam pelo espelho retrovisor ou palavra que trocavam.
– Achei que estivesse ficando louca quando entrou naquela cela e vislumbrei seu olhar em meio à escuridão. O mesmo brilho. Por um instante, quase pude ouvir seu riso. Depois, enquanto conversávamos, você sorriu e achei que aquelas grades já estavam realmente me enlouquecendo, pois era exatamente igual ao que me recordava.
Eva deixou um sorriso irônico vir aos seus lábios.
– Não foi só isso. Não é o suficiente para que você tenha descoberto a verdade. Ficamos anos sem nos vermos. Ainda éramos quase crianças quando parti com minha mãe.
Camila observou a estrada por um segundo, depois voltou a focalizá-la.
– Realmente – concordou. – Confesso que, quando a vi pela primeira vez, algo em você, que não soube definir, me chamou a atenção. Talvez o modo autoritário e a segurança com que falava, talvez seu jeito de olhar sempre nos olhos. Não sei explicar.
Ela deixou um meio sorriso vir até seus lábios por alguns instantes.
– Mas, não a reconheci. Na cela, apenas vislumbrei por alguns segundos a menina que fez parte de meus dias mais alegres na infância e início da adolescência. Contudo, descartei essa possibilidade. Seria incrível, para não dizer impossível, que você estivesse viva e aqui na ilha.
– Então, o que foi?
– A cicatriz em seu ombro.
Instintivamente, Eva levou a mão até o ombro, pousando-a sobre o exato local em que tinha uma cicatriz. Não imaginava que Camila ainda se recordasse dela, por isso, não tomou qualquer precaução para escondê-la.
Alguns meses antes de partir com sua mãe, Camila e Eva brincavam no alto de uma árvore quando Eva escorregou e caiu sobre um monte de entulho, perfurando seu ombro em um pedaço de metal. Lembrava-se de como Camila chorou naquele dia e da força que teve de fazer para não chorar diante dela e deixar que percebesse o quanto estava doendo. No hospital, levou dez pontos para fechar o ferimento, enquanto ouvia seu tio entre furioso e preocupado ralhar com ela.
Camila pousou sua mão sobre a de Eva que se encontrava no ombro e disse, com sorriso infantil:
– Uma cicatriz em forma de estrela. Nunca esqueci do dia em que você caiu e se cortou. Lembro que chorei muito, você sangrava tanto que achei que ia morrer.
Eva sorriu, retirou sua mão do ombro e apertou a de Camila entre as suas, enquanto virava o rosto para que ela não visse as lágrimas que começavam a brotar em seus olhos.
Amava-a e jamais a teria como queria.



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