– Está tudo bem! – Rafael disse assim que as viu e passou a mão pela barba por fazer, deixando que escorregasse pelo cabelo liso e grosso. Um sorriso sem graça surgiu em sua face junto com leve rubor.
Camila, afastando-se da janela em que estava e guardando a arma, perguntou:
– O que aconteceu?
O sorriso sem graça ainda não havia abandonado os lábios dele.
– Apenas, tomei um susto quando…
– Nos viu – o General Silas surgiu atrás dele acompanhado por Marina.
– Pai!
Camila correu ao encontro do pai e pendurou-se em seu pescoço com evidente alegria. O General a ergueu do chão em um abraço apertado, rindo como fazia quando elas eram crianças.
– Estou tão feliz em ver que está bem! – disse ele, puxando-a para outro abraço apertado. Quando se afastou, analisou, com cuidado, os hematomas no rosto dela, deixando uma expressão de ódio assumir seu rosto por alguns segundos.
– Estou bem – afirmou a filha com um sorriso.
Eva permaneceu ao lado da janela, com a arma em punho, observando-os. As mãos tremendo pelo susto ou, mais acertadamente, pelo beijo trocado antes disso.
Camila afastou-se do pai e olhou na direção em que Eva estava e seu sorriso se desfez ao encontrar seu olhar com um brilho confuso antes dela caminhar em direção a porta e socar um Rafael totalmente aturdido e surpreso, tanto quanto os outros três ocupantes daquela sala.
– Se fizer isso de novo, meto uma bala na sua testa! – falou entredentes, antes de sair em direção a chuva, batendo a porta com violência atrás de si.
Nunca se sentira tão assustada quanto naquele momento. Por alguns instantes, havia tido a mulher dos seus sonhos em seus braços e teve a certeza de que jamais se sentiu tão completa e cheia de vida como sentiu naquela breve troca de sabores.
Trazia na boca o gosto do beijo de Camila, no corpo a chama do desejo que ela havia acendido e nos braços o vazio que deixara ao se afastar repentinamente.
Sentada, em baixo de uma árvore, deixando que a chuva lavasse até o recanto mais escondido de sua alma, questionava-se o que teria acontecido se Rafael não tivesse feito aquele disparo. Camila dissera com seu gesto e poucas palavras que também a queria como mulher.
Seu coração batia descompassado, suas mãos tremiam e suas lágrimas se misturavam as gotas de chuva que banhavam seu rosto.
Todos os sentimentos em seu ser, misturados em um turbilhão interior, a fizeram permanecer na chuva por quase uma hora e, quando voltou a entrar na cabana, aparentemente mais calma, Camila encontrava-se a ponto de sair à sua procura.
– Onde estava? – perguntou a prima assim que viu a porta se abrir. A preocupação era evidente em sua voz.
Sem olhá-la, Eva retirou as botas enlameadas, enquanto montava um varal improvisado, no qual estendeu um lençol que funcionou como barreira para poder se trocar com um pouco mais de privacidade e respondeu secamente, deixando que a raiva voltasse a tomar conta de suas ações.
– Fui dar uma volta e ver se o disparo que esse idiota fez, não chamou a atenção de alguma patrulha que estivesse por aqui por perto.
De fato, depois de se acalmar, ela resolvera verificar as redondezas da cabana em busca de algum sinal de que o tiro tivesse sido ouvido por alguma patrulha, mas logo constatou que o som dos trovões e da chuva deviam ter abafado o som do disparo.
Camila a observou ir para trás da cortina e atirar as roupas molhadas no chão, imaginando como seria seu corpo sem todo aquele tecido. Eva saiu de lá minutos depois, vestindo roupas limpas e secas, pegou as molhadas e estendeu próximo a lareira. Os cabelos longos e castanhos, úmidos, se derramando em cascata sobre seu colo protegido por uma camiseta preta que deixava ver a curva de seus seios pequenos e rijos.
Camila, estava nervosa, era fato. Eva mexia com ela, sempre soube disso, mas depois daquele beijo e de ver o modo como ela havia saído, sentia-se confusa. Perguntava-se se havia ido longe demais, deixando que o desejo de fazer o que sempre sonhou toma-se à frente em suas atitudes.
Talvez a prima não fosse como ela, talvez o que aconteceu quando ainda eram crianças tenha sido apenas um gesto de carinho inocente. Ante essa possibilidade, teria de lhe pedir desculpas que, com certeza, não seriam sinceras. Sufocaria os sentimentos que tinha por ela desde a infância. No entanto, não imaginou coisas, Eva a tinha correspondido com a mesma intensidade. Precisava descobrir logo o que se passava com a outra, precisava saber a verdade.
Eva desmontou o varal e sentou-se em uma cadeira, junto a uma janela, e se pôs a observar a chuva que caía ferozmente fora da cabana. Acendeu um cigarro para relaxar, coisa que estava sendo bem difícil nos últimos dias, principalmente, na última hora. Ainda não havia se atrevido a olhar para Camila, temia ler em seus olhos que o que se passou foi um erro e se apegou a felicidade de, pelo menos, ter realizado o sonho de provar o sabor de seus lábios.
– Você é um pouquinho temperamental, não é mesmo? – Marina perguntou com um tom sarcástico na voz.
A moça sequer desviou o olhar da janela ou respondeu sua pergunta. Todos se encontravam sentados à mesa. A mente da espiã parecia ter se retirado da sala, apenas seu corpo permanecia ali em meio à fumaça do cigarro.
O General falou, a trazendo de volta de seus devaneios:
– Pensei que tivesse parado de fumar.
Ela desviou o olhar da janela e o mirou, tragando o cigarro mais uma vez, deixando a fumaça escapar pelas narinas.
– Nunca tentei parar – respondeu gelada, mesmo que não fosse essa sua intenção.
– Isso ainda vai te matar – disse ele com um sorriso, enquanto colocava uma dose de uísque em um copo.
Ela lhe dirigiu um olhar atravessado.
– Acho que não viverei o suficiente para que ele comece a me fazer mal – disse seca.
Embora pudesse parecer uma resposta malcriada, era o que realmente pensava. Desde que se ofereceu para ajudar o tio e as FL, ela sabia que andava na corda bamba junto com a morte. Mas não temia a morte como temia os seus sentimentos.
– Fala como se esperasse cair morta daqui um minuto – Camila comentou, contrariada.
Ela apagou o que restou do seu cigarro no parapeito da janela e acendeu outro na sequência. Estava confusa, estava feliz, estava irritada, já não sabia mais.
– Espero isso há dez anos.
– Não diga bobagens – a repreendeu o tio.
Ela lhe enviou um sorriso irônico.
– Acha a verdade uma bobagem? Desde que voltei para esta ilha, vejo morte em todos os lugares. Minhas mãos têm tanto sangue quanto às do Cortez ou às suas. Morrer é o menor dos meus medos, mas é uma possibilidade que faz parte do meu cotidiano. De todos nós, aliás. A única diferença é que vocês fingem que essa possibilidade não existe.
Ela voltou a focalizar a chuva que castigava o teto da velha cabana. Havia algumas goteiras pelo lugar, mas nada que chegasse a incomodar. Houve muito tempo de silêncio após suas palavras e ela se sentiu grata por isso, pois precisava colocar os pensamentos em ordem e não se sentia muito no controle de suas ações no momento.
– Fez um bom trabalho – Silas falou, quebrando a pouca paz que começava a sentir.
– Ainda não está terminado – ela recordou, voltando a mira-lo.
– Sim, de fato.
– Mas não é sobre isso que você quer realmente falar, não é mesmo? – disse ela adivinhando as intenções do tio. Tinha visto seu olhar perseguindo-a por toda a cabana desde que entrara. – Então, faça como quando era criança e me passe logo o seu sermão, depois deixe que faça o que você me incumbiu.
Ele sorriu, enquanto alisava a barba negra e bem aparada.
– Esse seu temperamento ainda vai te matar – concluiu ele com um sorriso. – Você já fez o que lhe pedi para fazer.
– O que você me “ordenou” foi que resgatasse sua filha e que a levasse para o seu acampamento em segurança. Amanhã estará tudo acabado e poderemos fingir que nada aconteceu e eu voltarei para a Agência.
– Tudo bem, está correto, mas você não parece estar lidando muito bem com toda a pressão – observou ele.
– Eu estou bem, não se preocupe.
Ele tomou a bebida que havia colocado de um único gole. Colocou outra dose e foi até ela, lhe entregando o copo. Ela bebericou o líquido com uma leve careta. Preferia a bebida com um pouco de gelo, mas se sentiu grata por algo que poderia entorpecer aquela tempestade de sentimentos que tinha dentro de si.
– Não vou te passar o sermão ao qual se referiu, apenas quero que durma um pouco e descanse. Está horrível.
– Não durmo há dois dias – comentou como se fosse insignificante, mas ela sentia o cansaço que a falta de sono lhe causava, deixando o seu mau humor pior do que geralmente era.
– Conversaremos amanhã – disse ele, pegando o copo vazio que ela lhe estendeu, dando de ombros.
– Certo – concordou ela, se erguendo e pegando um cobertor, enquanto se encaminhava para a porta. – Mas, você não deveria estar aqui, não foi o que combinamos.
– Não pude me controlar – respondeu ele, sério.
Ela parou, a porta entreaberta, e lhe dirigiu um olhar reprovador.
– Se nos pegarem, essa guerra chegará ao fim e tudo pelo que lutamos todos esses anos terá sido em vão. Está sendo desleixado, velho.
Marina a olhou com desprezo, claramente ofendida com a forma com que ela se dirigiu ao tio.
– Você não pode falar com o General assim. Não tem o direito sua…
– Marina! – Camila a interrompeu, tomando partido na conversa – Já chega! Eva, onde está indo?
– Vou dormir no carro. Não quero ser acordada no meio da noite porque seu amiguinho aí se assustou com um coelho na escuridão.
Camila observou a porta se fechar com certa violência e voltou-se para o pai que dizia:
– O que será que deu nessa garota? Ela costumava ser tão alegre e gentil.
– Pai!
– Sim, eu sei – ele sorriu, mais uma vez. – Eva está certa por me repreender e ao Rafael também.
Ele olhou para o rapaz no canto da mesa, que havia passado todo o tempo que estiveram ali sentados, lustrando a pistola.
– Você deveria ser um pouco mais cauteloso, nem parece ser o soldado que conheço e trabalhou comigo por tanto tempo.
Rafael baixou o olhar e manteve-se em silêncio. Ninguém imaginava que, o que realmente o fizera se distrair e perder a cautela, foi a cena que visualizara pela janela da cabana e que o deixara completamente desnorteado.
Havia sentado em um banco próximo ao carro e em baixo de uma janela para fumar um cigarro, enquanto observava a chuva cair. O alpendre o protegia da água que caía incessantemente e ele lustrava, enquanto fumava, a arma com uma flanela velha. Foi nesse instante, que começou a ouvir a conversa das duas mulheres no interior da cabana.
O barulho da chuva e dos trovões dificultava a compreensão das palavras e ele ergueu-se de forma a ficar ao lado da janela para tentar escutar melhor. Sua curiosidade sobre Eva era crescente e tentava, a cada nova palavra que ouvia, conhecê-la melhor. Foi exatamente no momento em que se ergueu que viu Camila beijar Eva e esta corresponder com tanta paixão, que ele chegou a sentir inveja de Camila.
Estava tão concentrado na cena que presenciava que não notou a aproximação de duas pessoas, quando se deu conta disso, efetuou um disparo de sobreaviso para que parassem.
– Isso não irá acontecer novamente – sussurrou ele e foi se recolher em um dos colchonetes.
Já era madrugada.
Todos dormiam e a chuva não dava trégua, os céus pareciam estar chorando pelas vidas que haviam se perdido desde que a ditadura do General Fernando Cortez se iniciara. Eva estava sentada no banco traseiro do carro, as costas apoiadas em uma das portas, as pernas esticadas sobre o banco, ela fumava o quinto cigarro seguido. Mesmo o corpo pedindo por descanso, não conseguia dormir.
No pensamento, Camila. Nenhuma outra coisa ou pessoa estava presente em sua mente naquele momento a não ser ela e a lembrança de seu beijo. O momento mais perfeito e feliz de sua vida, o mais confuso também.
De repente, viu a porta oposta a que estava recostada ser aberta e dar passagem a silhueta de sua prima. Encolheu as pernas para que ela pudesse se sentar e prendeu a respiração, enquanto sentia seu coração bater forte dentro do peito, apenas por senti-la tão perto.
– Precisamos conversar! – Camila falou quase em um sussurro.



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