Eva olhou para o cano da arma apontado firmemente para seu peito.

Não pensou duas vezes ao utilizar o pedaço de madeira com o qual dormira ao seu lado. Foi rápida e impiedosa, atingiu primeiro a arma que foi lançada para longe indo parar em baixo de um armário velho e caindo aos pedaços que se encontrava a um canto de parede.

Usando as pernas, longas e musculosas, empurrou o soldado para longe. Se pôs de pé, sentindo todos os ossos do seu corpo reclamarem pelo movimento repentino. O homem avançou em sua direção tentando tirar do cinto a pistola, mas ela se jogou em cima dele e travaram uma disputa feroz pelo poder da arma.

Ele acertou uma cotovelada em seu nariz e ela sentiu o sangue morno jorrando. Meio tonta, deu um passo atrás e ele se aproveitou do seu recuo para puxar a arma, porém Eva deu um passo para o lado e o golpeou na altura do estômago. Ele se curvou rangendo os dentes de dor e ela usou o joelho para atingir seu rosto. Tonto e sem ar, o homem cambaleou um pouco, então Eva aproveitou o momento para apanhar a madeira no chão e o golpeou forte na cabeça. Segundos depois, o homem, que ela constatou não ser mais que um rapazote ainda com espinhas, jazia estirado no chão.

Eva enxugou o sangue que vertia de seu nariz com a manga da blusa e, apesar da dor, chegou à conclusão de que não estava quebrado.

Apanhou a metralhadora em baixo do armário e, posteriormente, a pistola. Da janela, observou por longo tempo, as árvores e a escuridão no lado de fora da cabana e concluiu que ninguém o acompanhava. A opção mais provável era a de que ele tinha se desgarrado do resto de seu grupo. Um grave erro que possibilitou a Eva se armar.

Ela o observou na escuridão por alguns instantes.

– Idiota! – resmungou e começou a se despir.

Alguns minutos depois, um soldado saía da cabana. Era alto e magro, mas nada mais sobre sua aparência poderia ser dito já que a pintura militar em sua face e a escuridão da noite tornava impossível o seu reconhecimento.

***

Antônio olhou, intrigado, para o soldado à sua frente.

O rapaz era alto, magro, as roupas lhe pareciam um tanto folgadas e usava uma pintura militar em seu rosto. Desde que havia se aposentado do exército, raras eram as vezes em que recebia militares em sua casa.

Alguns minutos antes, aquele rapaz batera à sua porta e dissera ao porteiro que tinha urgência em falar com ele. Por se tratar de um militar, o porteiro não pensou duas vezes em comunicar ao seu patrão a sua chegada e permitir-lhe a entrada. Antônio tinha certeza de que jamais havia visto aquele soldado, no entanto ele lhe parecia ser familiar. Deu de ombros, desistindo de tentar conectá-lo a alguma lembrança que desse uma pista de quem era.

Estavam no jardim da sua elegante mansão e ele tomava seu desjejum aproveitando o calor do sol após uma longa noite chuvosa.

– Em que posso ajudá-lo, soldado?

O rapaz puxou uma cadeira e sentou sem ser convidado. Se serviu de uma torrada e um copo de suco sob o olhar indignado de Antônio.

– Para começar, pode me chamar de Eva – disse retirando o boné e deixando a longa cabeleira castanha clara cair sobre seus ombros em uma perfeita cascata de fios.

Antônio quase se engasgou com o café que bebericava e perdeu a pose elegante por alguns instantes.

– Eva?!

– A própria – lhe dirigiu um sorriso divertido.

– Mas, como? Não a reconheci!

Ela mordiscou a torrada. Estava exausta, dolorida e faminta. Caminhou durante o resto da noite para conseguir chegar até ali e sentiu-se grata pela propriedade de Antônio ser em um dos bairros mais afastados do centro da cidade, pois não precisou se esquivar de patrulhas.

– Bem, a intenção era essa.

Ele sorriu passando a mão pelo rosto recém barbeado.

– Agora, entendo como conseguia entrar e sair do acampamento do seu tio sem ser reconhecida. Devo admitir que você me surpreende a cada novo encontro.

Ela lhe dirigiu um meio sorriso, antes de tomar todo o suco em seu copo de uma vez só.

– Parece faminta – ele observou, estranhando seu comportamento.

Eva, geralmente, rejeitava qualquer convite para refeições durante suas visitas. Nem mesmo água tomava.

– Estou faminta – admitiu. – Aliás, estou exausta também.

Ele havia reparado no inchaço do seu nariz e lábios, os nós dos dedos machucados.

– Mas, o que aconteceu? Por que está vestida assim?

Ela suspirou cansadamente, recostando-se na cadeira. De repente, não sentia mais fome.

– Longa história. Mas, para começo de conversa, você pode me ajudar me deixando tomar um bom banho, arranjando roupas limpas e alguns curativos.

Duas horas depois, Eva adentrou na biblioteca para se unir a Antônio e Pietro que já a aguardavam, cheios de curiosidade, fazia algum tempo. Trajava-se com um terninho preto que lhe dava um ar elegante e mais sério do que o normal. Os cabelos, ainda úmidos, lhe caíam sobre os ombros quase até a cintura e despertou olhares de admiração dos dois homens. Era, sem dúvida alguma, uma mulher muito atraente.

– Minha falecida esposa era uma mulher realmente bela, mas nunca ficou tão bem nessas roupas como você – Antônio revelou com um sorriso galanteador e buscou o apoio de Pietro. – Não concorda, filho?

O rapaz engoliu em seco e gaguejou ao responder.

– Sim, senhor.

Eva riu-se de todo o exagero por parte deles, principalmente, por estar consciente dos hematomas e cortes em seu rosto, mas agradeceu por suas palavras e sentou-se em uma poltrona a um canto de modo a ficar de frente para os dois homens. Fingiu não sentir as dores no corpo, não queria preocupa-los.

Pietro, ainda embalado pelo efeito de sua beleza, pediu:

– Conte-nos o que aconteceu – apontou para as várias marcas e arranhões que via em seu rosto e mãos.

Ela o mirou seriamente e ajeitou-se melhor na poltrona. Os músculos do seu corpo pediam descanso e ela estava tentada a deixar àquela conversa para outra hora, mas não tinha tempo a perder.

– Primeiro, contem-me o que sabem a respeito da nossa fuga? O que andam dizendo por aí? – pediu.

Pietro cruzou os braços sobre o peito com ar sério.

– Quase nada. Estão abafando qualquer notícia sobre a fuga. Se isso viesse a público, poderia ser um duro golpe para Cortez, ainda mais porque foi a filha do General Herrera que escapou de sua prisão. Somente alguns membros do Governo e poucos militares sabem do que realmente aconteceu. Morales e Castilho foram resgatados de forma bastante convincente, quanto a isso não precisa se preocupar. Ninguém desconfia que esteja envolvida nisso.

Eva sorriu debochada, o cinismo desenhando seus lábios.

– Não tenha tanta certeza disso.

– O que quer dizer?

– Quero dizer que as coisas mudaram. Assim como eu sou uma agente das FL infiltrada no Governo de Cortez, eles também têm seus agentes infiltrados nos acampamentos.

Antônio demorou algum tempo digerindo a informação, por fim, concluiu que Eva estava brincando.

– Isso é uma brincadeira sem graça – reclamou.

Ela o fitou seriamente, uma expressão colérica no rosto.

– Pareço alguém que está brincando? Meus lábios estão se curvando em um sorriso? Tenho um ar debochado estampado na face, por acaso?

– Mas…

– Mas, nada! Ontem à tarde, estava no acampamento de meu tio e à noite estava fugindo do exército para salvar minha vida e poder contar a vocês o que estava se passando.

Antônio deixou-se emudecer por alguns instantes. Em todos aqueles anos, era a primeira vez que via Eva perder a calma. Ainda em silêncio, acendeu um de seus charutos e ofereceu um a ela que recusou, mas aceitou um dos cigarros que Pietro lhe ofereceu.

– Conte-nos tudo que aconteceu – pediu em voz baixa.

Ela começou a narrar os acontecimentos em meio à nuvem de fumaça que começava a tomar conta do ambiente, sentindo o peito contrair-se pela saudade de Camila, pelo ódio da traição, pelo medo por aqueles que amava e o desejo de vingança.

“Eva estava feliz.

Nunca se sentira tão completa como quando estava ao lado de Camila. O silêncio de seu tio apenas lhe dizia que ele havia se dado por vencido e, embora soubessem que isso em nada lhe agradava, elas não desistiriam do que sentiam.

Ela chegou ao acampamento do tio como prisioneira. Mãos atadas e um saco negro na cabeça. Mesmo na segurança daquele lugar, ainda tinham de manter alguns cuidados, afinal, Eva tinha um alto cargo no governo e alguém poderia reconhece-la transformando o acampamento num pandemônio antes que a situação viesse a ser esclarecida.

Foi só entrar na cabana de Camila que foi libertada pela prima que se atirou em seu pescoço para um beijo terno e apaixonado.

– Amo você – ouviu Camila dizer com os lábios ainda presos aos seus.

Riu, incapaz de acreditar no que estava lhe acontecendo. Nada do que imaginou jamais se aproximaria da realidade.

– Então, é aqui que você se esconde? – perguntou se afastando dela para analisar o local.

O espaço era pequeno, com poucos móveis. Uma estante com livros, uma escrivaninha, um baú, uma rede e a cama. Havia uma porta que levava a outro cômodo que ela veio a descobrir, mais tarde, se tratar de um banheiro.

– Não estou me escondendo – Camila riu, ainda pendurada no pescoço de Eva. – O que achou? Sei que não deve se comparar a sua casa…

– É perfeito! Meu apartamento pode ser mais confortável, mas jamais parecerá tão aconchegante, pois ele não tem vida, não tem você.

Camila a puxou para outro beijo.

– Você é tão fofa, nem parece aquela peste com quem cresci.

– Peste? Se bem me lembro, você não era uma santa também.

– Não, mas você era bem pior.

– Tive meus dias – riu.

Camila afastou uma mecha de cabelo que caía sobre os olhos dela e escorregou sua mão por seu pescoço, puxando-a em direção a cama.

– Para onde está me levando, baixinha? – perguntou Eva, percebendo as intenções dela, mas não resistindo a vontade de provoca-la.

Camila a empurrou, jogando-a na cama.

– Já disse para não me chamar assim – ia retirando a blusa sob um olhar apaixonado de Eva que tentou tocá-la quando ela subiu na cama e sentou em seu ventre, mas Camila afastou suas mãos delicadamente e brincou com o desejo dela repetindo o gesto em todas as suas tentativas.

– Vai ser assim? – perguntou vendo-a retirar o sutiã e escorregar a mão pelo zíper da calça.

– Agora, eu estou no comando, Dona Espiã!

Eva riu, achando divertido aquele jogo, sentindo a pele arder de desejo quando ela percorreu cada centímetro de seu corpo entre beijos e carícias. Porém, não aguentou muito mais daquela brincadeira, a queria e a puxou para si, prendendo seus lábios aos dela quase violentamente, explorando seu corpo com as mãos, deliciando-se com os seus sabores, devorando sua intimidade, deixando-se devorar por ela.

Eram primas, tinham o mesmo sangue como o General havia dito, mas, acima de tudo, eram mulheres. Amigas. Amantes. Nada no mundo seria capaz de destruir o sentimento em seus corações ou apagar o brilho do amor em seus olhos.

– Cami.

– Sim?

Eva repousava sua cabeça na barriga de Camila que nunca se cansava de brincar com seus cabelos.

– Você tem alguém?

– Como assim?

– Aqui. Você tem alguém?

Camila sorriu.

– Não.

– Por quê?

– Porque sou mulher de um amor só – riu. – Não sei, apenas nunca me prendi a ninguém. Acho que estava esperando você voltar à vida.

– O tio nunca desconfiou?

– Ele está sempre tão ocupado. Com toda essa guerra, nunca percebeu o que acontecia, mesmo eu não tendo me esforçado para esconder nada. E você, tenho uma rival?

Eva sorriu marota.

– Talvez.

Camila a beliscou.

– Ai! Por que fez isso?

– Porque você está brincando comigo!

– Como sabe? Posso ter um harém à minha espera na capital – sorriu ao ver a expressão enciumada dela.

– É bom você estar brincando, Eva Herrera! Não sou mulher que goste de compartilhar, serei sempre a única – ameaçou com a testa franzida.

Eva ainda se demorou alguns segundos observando-a carinhosamente, encantada por seus ciúmes.

– Estou mesmo brincando – admitiu. – A verdade é que, com o meu trabalho, nunca tive muito tempo para romance. Além disso, mencionar trabalhar na Central de Inteligência é uma ótima forma de afastar as mulheres.

Camila sorriu, se dando por satisfeita com a resposta dela e deslizou os dedos sobre o pingente que Eva trazia no pescoço. Era dourado, adornado com arabescos que formavam uma rosa.

– É muito bonito.

– Foi um presente.

– De uma namorada? – ergueu a sobrancelha. Não conseguia suportar a ideia de que Eva já tivesse beijado e se entregado a outra pessoa.

– De um tio amoroso – Eva informou, abrindo o pingente e deixando que Camila visse seu retrato dentro dele. – Você está sempre comigo, Cami.

Camila a presenteou com um sorriso e a puxou para um beijo carinhoso. Eva era muito melhor do que havia imaginado, sonhado.

Rindo, Eva se afastou e catou a calça jeans que estava jogada ao pé da cama. Do bolso, retirou uma caixinha e a abriu deixando que Camila visualiza-se o cordão de ouro com um pingente em forma de asas.

– O que é isso?

Eva retirou o pingente e o entregou a ela.

– Era para o seu aniversário. Ia dar ao tio Silas para que ele entregasse a você. Mas, como você me reconheceu e me presenteou com o melhor de todos os presentes, não vejo razão para não dá-lo agora.

– É lindo.

– Você sempre quis ser um pássaro, lembra? Já tem as suas asas – sorriu e Camila a puxou para um abraço carinhoso.

O som de música ao longe e vozes alegres quebrou o silêncio do abraço que compartilhavam.

– Não imaginava que já era tão tarde – Camila comentou se afastando.

– Que som é esse?

– Hoje é noite de fogueira.

– Noite de fogueira?

Camila riu com a expressão confusa dela.

– Vivemos no mato, mas também nos divertimos. Nem tudo é guerra, Eva – ergueu-se e começou a catar as roupas.

– Então, é tipo uma festa?

Camila riu novamente, pegando uma toalha dentro do baú próximo à cama e atirando para ela.

– Mais ou menos isso. Papai não se importa, até comparece algumas vezes. Temos muita gente jovem por aqui e, às vezes, precisamos relaxar um pouco. Tenho certeza de que você também faz isso, não?

– Às vezes saio para beber um pouco – comentou.

Camila notou que ela assumiu um olhar triste e lembrou-se da conversa que havia tido com o pai no dia anterior, logo após terem seu beijo interrompido pelo tiro de Rafael.

“– Eu sinto muito – dissera Rafael um pouco constrangido, enquanto esfregava o queixo no exato local em que Eva o atingiu.

Camila lhe dedicou um olhar quase mortal e ele saiu acompanhado por Marina que estava se divertindo às suas custas. Ela se voltou para o pai que havia sentado à mesa com um sorriso divertido na boca.

– Essa menina sempre foi uma pequena tempestade, sempre deixando sua marca por onde passa – observou.

Ele tomou um susto quando Camila esmurrou a mesa, perguntando:

– Por que você mentiu para mim?

– Do que está falando?

– Não se faça de desentendido, papai. Quero saber a razão de ter mentido sobre a morte de Eva.

Ele sorriu, recostando-se no encosto da cadeira.

– Ela está bem diferente da menina com quem cresceu, como a reconheceu?

– Isso não é importante. Quero que me explique a razão de ter mentido.

Ele deixou um longo suspiro escapar, ciente de que não havia como fugir das perguntas. Sabia que aquele dia chegaria, mas imaginava que seria em um país sem ditadura.

– Eva estava morta. Não menti quando lhe contei isso, pelo menos, achei que era verdade na época. Meu amigo, Antônio, me deu a notícia. Sua falecida esposa, Tereza, morava em Portugal com o filho na ocasião. Ela conhecia Eva e Maribel, e a família Guillén Y Ruiz é muito conhecida na Europa, o acidente que vitimou sua matriarca e descendentes foi amplamente explorado pela imprensa. Tereza retornou as Ilhas Negras logo em seguida e não soube que Eva havia sobrevivido. Um ano depois, Antônio marcou um encontro comigo, dizendo que tinha urgência em me falar. Imagine a minha surpresa ao ver Eva viva e bem!

Camila puxou uma cadeira e sentou ao lado dele, os olhos marejados.

– Por que não me contou?

– Você sofreu tanto com a notícia da morte dela…

– Sim, mas ficaria imensamente feliz, assim como fiquei hoje, ao saber que estava viva.

– Eva queria ajudar. Passou meses a nossa procura e, nesse meio tempo, viu os absurdos e a violência de Cortez. Ela estava tão decidida. Dezessete anos, tanto para viver, tão pouca experiência, mas disposta a lutar.

Ele pegou a mão da filha entre as suas, acariciando os nós de seus dedos e percorrendo com o olhar a tipoia que prendia seu braço machucado.

– Quando contei como você ficou quando soube da sua suposta morte, Eva quis te ver imediatamente. Contudo, a ideia de que ela queria ajudar e estava disposta a morrer fazendo isso ficou martelando em minha cabeça. O que aconteceria com você se depois de vê-la bem e viva, acabasse descobrindo que ela morreu outra vez?

Camila engoliu em seco e enxugou as lágrimas. Ela entendia, não concordava com a mentira, mas entendia o que o pai havia feito. O abraçou e chorou em seu ombro por um longo tempo, cheia de raiva, medo e felicidade.

– Ela está linda, não está? – comentou Camila após um tempo.

Estava de pé diante da janela, observando a chuva cair incessante, enquanto Rafael e Marina conversavam em baixo do alpendre. A moça ria, com certeza amolando ele pelo soco que Eva lhe dera.

– O que disse? – perguntou o pai, que não havia entendido a pergunta graças a um trovão.

– Eva. Está linda, não é mesmo?

O General sorriu, o olhar sempre severo assumindo um brilho carinhoso.

– Sim, assim como você, se tornou uma bela mulher. Só gostaria que ela fosse mais feliz.

Camila desviou o olhar da chuva para ele.

– O que quer dizer?

– Eva vive para esse trabalho, filha. Você a viu há pouco, ela é selvagem, arisca, solitária, fria.

Camila riu. Eva havia parecido distante e fria quando a encontrou na Central, mas seu beijo era quente como uma chama.

– Ela escolheu a solidão para nos ajudar e a muitos outros. Às vezes, me arrependo de ter permitido que fizesse isso.

– Ela está apenas desempenhando seu papel. Ainda é a mesma Eva que conhecemos…

– Não se iluda. Uma mentira contada por tanto tempo acaba se tornando uma triste verdade. A Eva de antes ainda pode estar lá, mas a de hoje é a verdadeira.”

– Vem – chamou com carinho.

A expressão triste de Eva desapareceu para dar lugar a um sorriso meigo.

– Para onde, baixinha?

– Você quer outro beliscão? – ameaçou com um sorriso.

– Quero muitas coisas de você, muitas – disse séria.

Camila se aproximou dela, que estava sentada na cama. O corpo nu refletindo a luz dourada do lampião. Eva era linda, perfeita, apesar das cicatrizes que maculavam a pele de suas costas e barriga. Camila não precisava perguntar, eram marcas de queimadura e perfuração, uma lembrança que sempre carregaria consigo do dia em que perdera toda sua família e morreu um pouco também.

Camila lhe sorriu com carinho e curvou-se para lhe dar um beijo rápido.

– Venha. Preciso de um banho e você também.

Eva lhe dirigiu um olhar safado.

– Não me olhe assim, não iremos fazer nada além de tomar um banho e preciso da sua ajuda com isso aqui – apontou para a atadura em seu ombro, uma macha de sangue maculava o branco do curativo.

Eva se sentiu um pouco culpada, Camila ainda não se encontrava bem e mesmo tendo cuidado, o esforço do amor a machucava.

– Tudo bem, que seja apenas um banho – disse se deixando guiar por ela até o pequeno banheiro. Com certeza, um luxo que nem todas as cabanas ali deviam ter.

***

– Tem certeza? – Eva questionou.

Usava um boné e o uniforme verde escuro das FL, havia feito uma pintura militar para evitar qualquer reconhecimento. Questionava Camila sobre isso.

– Está perfeito. Ninguém irá questionar, pois muita gente aparece na fogueira vinda de missões na floresta ou treinamento. Relaxe.

– Estou relaxada, só não sei se o tio vai estar quando me vir – riu.

– Vamos tentar ficar longe do caminho dele, certo?

Eva bateu continência.

– Sim, Senhora!

Camila riu e a puxou em direção a fogueira. Havia muita gente ali, muitas famílias, muitos jovens e, mesmo se escondendo naquele disfarce, ela se divertiu como havia muito tempo não fazia. 

***

Batidas leves na porta e uma voz quase que sussurrada avisou-as que o General desejava que sua filha levasse a prisioneira até sua cabana.

Após à noite à beira da fogueira, elas passaram o dia seguinte entre períodos de sono e momentos de amor que iam muito além de sexo. Já era quase noite quando o General mandou chama-las, mas as estrelas já brilhavam no céu quando se dirigiram para a cabana dele.

Rafael as escoltava pelo acampamento. Eva tinha as mãos atadas, mas não usava mais o capuz ou a pintura militar da noite anterior. Sentia todos os olhares voltados para ela, mas não prestava atenção a eles até que um homem parou à sua frente e ela sentiu o sabor do sangue em seus lábios quando ele a socou. O golpe foi tão forte que ela caiu no chão duro e poeirento.

Camila fez menção de partir para cima dele, mas Rafael a segurou.

– O que pensa que está fazendo, Elias?

O homem tinha um olhar agressivo e uma pistola na cintura. Ao seu lado, uma moça segurava seu braço tentando afastá-lo do caminho.

– Eu conheço essa daí! É a chefe do departamento de investigação interno da Central de Inteligência. Por causa dela, tivemos de fugir da capital. Se não fosse um soldado aliado ter batido à nossa porta no meio da noite, provavelmente estaríamos todos mortos.

Ele puxou a pistola e Camila fez o mesmo.

– Abaixe a arma, Elias!

– Está tudo bem – Eva falou se erguendo e cuspindo um pouco de sangue.

Ela se recordava dele. Não teve tempo de maquiar as informações em sua pasta, pois ela nunca chegou até suas mãos. As provas contra Elias eram tão concretas que não pediram sua permissão para agir. Quando soube da operação para prendê-lo, disfarçou-se de soldado, colocou uma pintura negra no rosto e foi avisá-lo. Felizmente, havia conseguido chegar antes dos agentes.

Uma garotinha loira surgiu de detrás da mulher que tentava, em vão, afastá-lo do caminho deles. A menina olhou para Eva durante alguns segundos antes de correr e enroscar sua cintura com os braços pequenos e gorduchos. Surpreso, Elias tentou afastá-la, mas Camila o impediu.

Sorrindo, Eva se ajoelhou diante da criança e a menina pegou o pingente em seu pescoço deixando um sorriso surgir em seus pequenos lábios.

– Também é bom revê-la, princesa! – disse a espiã pousando o dedo na ponta do nariz dela e fazendo um carinho.

A menina riu gostosamente.

– Agora, volte para junto da sua mamãe, está bem?

A menina enlaçou seu pescoço e lhe sapecou um beijo antes de voltar para junto dos pais saltitante. Então, Eva ficou de pé sorrindo para Elias, lhe dando uma piscadela, enquanto dizia:

– Também é bom revê-lo. Cuide bem de sua família, amigo – e continuou seu caminho seguida por Camila e Rafael.

Não precisava ver o rosto de Elias para saber que ele havia reconhecido a frase, pois era a mesma que o soldado usou para se despedir dele quando o colocou em uma balsa no meio da noite, meses antes. Riu da percepção infantil, havia segurado a garotinha por alguns minutos e ela passou o tempo todo com o seu pingente na mão.

– O que foi isso? – perguntou Rafael.

Eva riu, estava feliz por Elias e sua família se encontrarem bem. Estava feliz por saber que havia ajudado muitos outros como ele e que, provavelmente, jamais saberiam o quanto sacrificou e ainda estava disposta a sacrificar para salvá-los.

– Apenas um feliz encontro – respondeu entrando na barraca do tio.

O General as aguardava sentado à mesa.

– O que aconteceu com seu rosto? – questionou ele.

– Nada de mais, tio. Esbarrei em uma árvore – sorriu.

Ele a olhou desconfiado.

– Essa árvore tinha punhos?

– Milagres da natureza. Fantástico, não?

Camila lhe dirigiu um olhar zangado, enquanto Rafael desatava as cordas em seus pulsos.

– Elias quase atirou nela agora há pouco. Ele a reconheceu – soltou com voz grave, não achando nenhuma graça nas palavras da namorada.

– Devia estar usando o capuz – reclamou Silas.

Eva deu de ombros, assumindo seu lugar à mesa sendo seguida por Camila e Rafael.

– A noite está muito linda para que eu me abstenha de olhar as estrelas – disse com um sorriso, consciente de que estava sendo meio boba, mas era exatamente como estava se sentindo. Descobrir que Camila a correspondia a fez se sentir leve, boba, completamente mergulhada em alegria e amor. Era uma mulher totalmente diferente da que via todos os dias no espelho antes de sair para trabalhar.

O General soltou um suspiro inconformado.

– Às vezes, acho que você é suicida. Prefere sempre fazer as coisas da maneira mais difícil.

Ela lhe dedicou um sorriso e passou a se servir de um copo de água, percebendo que mal tinha se alimentado àquele dia e no anterior também.

– Acho que a família Herrera gosta de viver a vida com emoção – provocou.

– Na minha opinião, você gosta de emoções demais.

Ela riu alto e Camila lhe deu um beliscão.

– Ai! Você tem que parar com isso, vai acabar arrancando um pedaço de mim. O que foi agora?

– Papai tem razão, às vezes você age como se fosse invencível – disse recordando a situação tensa que haviam acabado de passar e outras tantas quando eram crianças.

– Talvez eu seja – deu uma piscadela jogando seu charme para ela e Camila lhe deu outro beliscão.

Sentado ao lado de Silas, Rafael observava aquela interação com curiosidade. O rapaz não conseguia disfarçar sua evidente admiração por Eva. Achava-a atraente, misteriosa e terrivelmente perigosa. Durante todo o jantar, a observou intensamente.

Tal atitude fez com que Camila que, geralmente, era uma pessoa controlada, lhe desse um chute por baixo da mesa, arrancando gemidos dele, risos de Eva e um olhar de reprovação de seu pai. 

A moça sussurrou-lhe entredentes:

– Se continuar olhando para ela assim, esqueço que somos amigos e te parto a cara!

Ele sorriu, envergonhado, e parou de encarar Eva que se divertia com os ciúmes de Camila. Havia quatorze anos que não compartilhavam a mesa do jantar como uma família e Eva não poderia estar mais feliz. Era por outros momentos assim que se obrigava a levantar da cama todas as manhãs.

– Seu trabalho está acabado. Quando irá retornar a capital? – Silas perguntou a Eva, quebrando o clima familiar.

Ela assumiu uma expressão séria, o garfo a meio caminho da boca.

– Em dois dias, no máximo – respondeu.

– Tem certeza disso?

– Sim.

Camila não podia acreditar no que estava ouvindo. Haviam discutido sobre isso naquela tarde, mas Eva conseguiu calar seus protestos com beijos. Mesmo assim, não havia desistido de convencê-la a ficar.

– Seu plano deu certo até agora, mas que garantia tem de que quando voltar não será presa? Você não pode voltar!

 Eva fixou seu olhar nela, percebendo que suas palavras estavam carregadas dos mais diversos sentimentos, principalmente, o medo de perdê-la.

– Você está certa, nada me dá essa garantia. Mas é preciso tentar e arriscar. Ainda há muito que ser feito.

Sabia o quão devastadoras suas palavras estavam sendo para Camila, pois seus sentimentos eram os mesmos. No entanto, ela tinha de pensar além dela, além do desejo de estar ao lado de Camila. Muitas vidas de homens e mulheres bons e que só desejavam a paz e a liberdade para seu pais dependiam do trabalho dela e isso Camila teria de compreender.

– Não acha que já fez demais? Não acha que já fez sacrifícios suficientes?

– Todos nós fizemos sacrifícios, Cami…

– Mas, você fez mais que a maioria, não? Você não tem vida, não tem amigos. As pessoas que salvou nem sabem quem é você! Nem seu sobrenome é de verdade.

Eva a olhou com tristeza. Reconhecia a verdade em suas palavras, mas já havia tomado sua decisão. Mesmo lhe doendo, iria fazer o que achava ser o certo.

– Não busco a glória ou o reconhecimento, Camila. Busco a paz para a nossa gente. Quero poder acordar de manhã sem pensar que verei morte e tortura ao longo do dia, que outra mãe perderá seu filho para a intolerância e o ódio. Quero poder acordar sem o medo de que meu tio ou você possam ser capturados, massacrados, atirados ao esquecimento. Quero viver! E se preciso morrer um pouco antes, então o farei por mim, pelo meu tio e por você!

Incapaz de ouvir mais, Camila ergueu-se da mesa furiosa, as lágrimas aflorando em seus olhos profundamente negros. Atirou o garfo que segurava com violência sobre a mesa e saiu da cabana deixando o rastro de seu perfume no ar.

Eva observou, com profunda tristeza, sua figura desaparecer pela soleira da porta em direção a escuridão da noite. Ela compreendia, sabia que Camila entendia seus motivos, mas seu amor negava-se a permitir que ela partisse.

Terminou seu jantar em silêncio e, enquanto Rafael atava novamente suas mãos, disse ao tio:

– Acho que é melhor partir amanhã, mas antes preciso conversar com Camila.

– Deixe que ela se acalme um pouco – recomendou.

Ela riu.

– Camila sempre foi uma pequena tempestade, tio.

Silas, que bebericava um pouco de café, inclinou a cabeça em assentimento e acompanhou seu riso.

– Venha me ver antes de partir – pediu.

– Virei.

Já era muito tarde. Havia poucas luzes acesas no acampamento, tudo o mais se encontrava coberto pela escuridão. Rafael a guiava entre as árvores, com arma em punho para enganar a qualquer um que cruzasse seu caminho. A cabana de Camila era um pouco mais afastada, pois segundo lhe dissera, gostava de ter privacidade.

Na ocasião, Eva imaginou, com uma pontada de ciúmes, a razão dela desejar tanta privacidade e ficou indignada quando Camila riu ao ouvi-la expor seus pensamentos.

– Então é isso que você faz?

– Isso o quê? – ela abaixou-se para passar por um galho que ele desviou de seu caminho.

– Você dá cobertura para os espiões rebeldes, enquanto finge ser um membro respeitável da Agência de Inteligência?

– Me poupe das suas perguntas idiotas. Você viu toda a discussão, ouviu minha conversa com meu tio. Sim, é isso que faço.

Ele começou a rir alto e estranhamente.

– Qual a graça?

– Sempre quis saber quem era o safado que fazia esse trabalho sujo para o General. Sempre desconfiei que havia alguém acobertando toda essa gente que, do nada, aparece aqui.

– Não é um trabalho sujo. Faço o que é necessário para evitar mais mortes.

– Eu compreendo. Mesmo assim, é uma pena que seja você!

Eva parou de andar e, mesmo na escuridão em que se encontravam, pôde ver a fisionomia de Rafael mudar completamente, assim como seu tom de voz. Antes mesmo de compreender o que aquilo significava, ela caiu ao chão, desmaiada.



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