– Você tem certeza?

Camila balançou a cabeça, assentindo.

– Não pode deixar que o que Eva fez a afete dessa maneira – reclamou Silas.

Seu tom de voz havia sido reprovador, mas seu olhar era solidário aos sentimentos da filha que não saía de sua cabana havia dias, desde que descobriu a traição da prima e então namorada.

Camila estava encolhida em um canto da cama. Tinha o olhar no vazio e seus dedos brincavam com o cordão que Eva havia lhe dado dias antes após terem feito amor naquela mesma cama. Encontrou o olhar do pai que brilhou de forma cúmplice por alguns instantes e voltou a fitar o vazio.

– Antônio disse que precisava me falar com urgência, provavelmente tem a ver com Eva.

Ela voltou a mirar o pai, deu de ombros como se nada lhe importasse e deitou-se agarrando-se ao travesseiro.

– Vá, se tem de ir – falou fracamente. – Mas, não volte a pronunciar esse nome outra vez para mim.

Encostado na porta entreaberta, Rafael ocultou, com uma falsa tosse, o sorriso que surgiu em seus lábios. Àquela altura, o que o aliado do General queria lhe falar, provavelmente, tinha a ver com a prisão e morte de Eva. Havia conseguido escapar do acampamento no meio da noite para ir até a fronteira e se comunicar com seu superior. Como estava chovendo muito, ninguém iria reparar em sua ausência.

Havia uma caverna próximo à um dos rios que delimitava a fronteira dos rebeldes com a das tropas do governo. Durante anos, manteve ali, um rádio que só era utilizado em situações extremas, pois quase nunca conseguia sair do acampamento desacompanhado ou tinha uma informação válida para seus superiores. Porém, naquela noite, ele tinha muito a falar sobre a sobrinha do General Herrera e o fato dela ter passado anos ajudando os rebeldes debaixo dos bigodes de Cortez.

– Espero que esteja morta – Camila deixou escapar antes que o pai saísse. Sua voz era um sussurro rouco e angustiado.

– Se não estiver, me encarregarei disso – informou o pai. – Família e honra acima de tudo, são duas coisas que sempre lhes ensinei e ela quebrou os nossos corações com sua traição.

Quando ouviu o ronco do motor do jipe em que seu pai e Rafael seguiriam viagem, Camila se colocou de pé enxugando as lágrimas. Caminhou resoluta até o baú aos pés da cama, vestiu um uniforme limpo, fez uma pintura militar, armou-se de pistolas e uma faca e saiu batendo a porta.

***

Antônio cumprimentou o amigo com um forte abraço demorando-se um pouco mais que o normal. Ambos estavam tensos e essa tensão foi transmitida através do cumprimento. Conheciam-se bem demais para que a um simples olhar pudessem perceber que algo não ia bem, mas nada disseram a respeito.

Antônio o convidou a sentar-se na mesma poltrona que Eva ocupara algumas horas antes e ofereceu um copo de uísque que, sabia, o amigo gostava.

– Me alegro em ver que está bem – Antônio sorriu.

– Também, velho amigo.

– Como está Camila?

– Ainda se recuperando do tiro que levou e toda a loucura da sua captura e fuga.

– Imagino.

Rafael surgiu à porta e cumprimentou Antônio com um leve inclinar de cabeça, colocando-se em posição de vigia. Antônio usou de muito sangue frio para devolver o cumprimento de forma gentil. Ainda não era o momento, precisava saber em que pé estava a situação e preferiu fazer o que havia combinado com Eva, mesmo não gostando do que estava prestes a fazer.

– Então, por que me chamou até aqui? – O General perguntou.

Antônio remexeu-se incomodamente em sua poltrona.

– Não sei bem como dizer isso – cofiou o bigode, enquanto procurava as palavras. Realmente, não gostava do que estava prestes a dizer e fazer ao amigo.

– Eva foi descoberta.

O General não se moveu ou demonstrou qualquer incômodo com a notícia.

– Descoberta? – perguntou com um sorriso irônico.

– Sim. De alguma forma o exército descobriu que Eva trabalhava com as Forças de Libertação. Há alguns dias, ela foi encontrada ferida e muito debilitada em uma estrada próxima a fronteira, estava sendo transportada em uma ambulância quando nocauteou o enfermeiro e fugiu entrando na floresta aos arredores da cidade. A partir daí se iniciou uma perseguição que durou quase toda a noite…

O General o interrompeu:

– Ela foi capturada?

Antônio captou, com o canto do olho, Rafael dar um passo à frente ansioso por sua resposta. Desempenhando bem o seu papel, Antônio mudou completamente sua fisionomia e a expressão em seu rosto demonstrava profundo pesar.

– Não há confirmações por parte dos meus informantes. As informações são muito desencontradas, mas todas dizem exatamente o mesmo: Eva está morta.

O rosto do General permaneceu impassível, não demonstrava qualquer emoção significativa e Antônio percebeu o quanto as mentiras de Rafael haviam afetado os sentimentos de Silas pela sobrinha. No entanto, notou um leve tremor nas mãos do amigo. Ainda olhou de relance para Rafael, que havia voltado a se encostar à parede próxima à porta, e conseguiu vislumbrar o vestígio de um sorriso que desapareceu quase imediatamente do rosto do rapaz.

Esperou alguns instantes por uma reação do amigo ante aquela trágica notícia, mas tudo que ouviu dele foi:

– Então, um de meus problemas está resolvido – informou tomando, em seguida, um longo gole da sua bebida.

Antônio o fitou interrogativamente, mal podendo acreditar no que havia acabado de ouvir.

– Do que está falando? Acabei de dizer que Eva está morta!

– É melhor assim. Há alguns dias descobri que estava nos traindo.

Antônio fez menção de falar algo, mas Silas o interrompeu com um gesto.

– Ela sumiu inesperadamente do acampamento. Fiquei preocupado e enviei alguns soldados para procurá-la. Ela estava prestes e informar a nossa localização exata a um militar do exército de Cortez quando Rafael e Marina os encontraram. Uma luta se seguiu e terminou com Eva escapando com o companheiro, enquanto Marina agonizava e morria em seguida.

Antônio estava horrorizado e indignado. Como um homem tão sensato como o amigo fora capaz de acreditar em uma mentira tão estúpida?

– Não pode acreditar nisso! – queixou-se, enquanto se punha de pé.

Silas o mirou friamente.

– Senhor, se me permite – Rafael se adiantou, deixando seu posto ao lado da porta. – Eu também não pude acreditar, mas a vi e ouvi. Ela nos traiu. Tramava a morte do próprio tio.

Antônio o mirou em fúria.

– Prove! – gritou.

Surpreso, o rapaz deu um passo atrás.

– Senhor?

– Se o que diz é a verdade, quero que me prove.

Antônio percebeu o seu recuo e sorriu com malícia.

– Não é tão fácil mentir quando se está diante de alguém que não o conhece e confia cegamente, não é mesmo?

– Não estou mentindo, senhor – afirmou Rafael.

– Sendo assim, quero provas.

– Não as tenho, tudo aconteceu tão depressa…

– Sendo assim…

– Já chega, Antônio! – Silas o interrompeu e Antônio o mirou colérico. – Uma mulher morreu. Não tenho razão para duvidar da palavra de Rafael, afinal sempre foi um bom soldado, leal e sincero e está comigo há anos.

– Mas ela é sua sobrinha, é seu sangue. Acabo de dizer que está morta e você não dá a mínima – Antônio cuspiu as palavras controlando-se para não esmurrar o amigo.

Estava chocado e furioso. Eva tinha razão, Rafael havia envenenado o tio, cegando-o com suas mentiras.

– Uma sobrinha que me traiu e a nossa causa, portanto, os laços de sangue que nos uniam não significam mais nada e, se por ventura, ela tiver sobrevivido eu mesmo me encarregarei de matá-la!

As palavras do General eram duras e carregadas de ódio e Antônio teve ímpetos de esbofeteá-lo por dizer tamanha barbaridade.

Do outro lado da sala, Eva enxugou uma lágrima insistente que percorreu seu rosto até a altura da boca. Escutava toda a conversa por trás da porta que levava a um corredor lateral que dava para uma longa escadaria que levava até os quartos no andar superior da casa. A porta estava entreaberta e permitia que ela visse seu tio e Antônio claramente, mas não podia ver a localização exata de Rafael.

Ele conseguira destruir a única coisa que tinha na vida, o amor de sua família. Um ódio mortal apossou-se de seu coração com tamanha intensidade que quase esqueceu seu plano pegando sua arma com o intento de entrar na sala e encher o corpo daquele traidor de balas. Felizmente, recuperou seu sangue frio antes mesmo de tocar a maçaneta da porta e voltou a guardar a arma na cintura.

Enquanto o General e Antônio discutiam e eram observados por Eva e Rafael, fora da casa um vulto se esgueirava pela escuridão. Havia alguns minutos, dois jipes estacionaram próximos a entrada lateral da fazenda e seus ocupantes se dividiram em dois grupos que esgueiravam entre as sombras da noite. Sabiam que havia mais alguém ali. Estavam escondidos à espera da ordem para invadir o casarão.

Camila caminhou tranquilamente pelo cafezal, tão silenciosamente quanto um felino a espreita de sua caça.

Em espaços regulares, entre uma fileira e outra de café, divisou outros vultos. Estavam fortemente armados e, apesar da escuridão que os envolvia, o brilho da lua solitária no céu tornava possível reconhecer os trajes do exército de Cortez.

Era um grupo pequeno, cerca de meia dúzia de homens. Com certeza, deveria haver mais do outro lado do cafezal que cercava o casarão. Ela ergueu a mão, dando uma ordem silenciosa, enquanto tirava a faca da cintura. Quando o primeiro homem caiu sem vida, os olhos de Camila brilharam intensamente refletindo o luar.

Seus comandados eram rápidos e precisos, um após o outro os inimigos caíram. O último soldado soltou um suspiro dolorido antes de cair aos pés dela que limpou a lâmina da faca na roupa dele e caminhou em direção ao casarão, ordenando que os companheiros tomassem o lugar dos derrotados no cafezal.

Não foi difícil escalar a lateral da casa e arrombar a janela de um dos quartos do andar superior. Desceu a escada que levava até a sala onde se encontravam seu pai e Antônio a tempo de ver Eva enxugar suas lágrimas e depois de uma reação agressiva voltar a guardar a arma na cintura.

Caminhou sorrateira até ela e Eva sentiu o cano frio da arma dela em sua nuca, enquanto sua própria arma era arrancada de sua cintura. Voltou-se lentamente para mirar o inimigo e deparou-se com o olhar frio e cheio de ódio de Camila que, com um gesto quase imperceptível, indicou que ela deveria andar.

Com a arma sempre em sua nuca, Camila a levou para um dos quartos no andar superior. Tão logo a porta se fechou, Eva se voltou para ela que não havia baixado a arma.

– Cami, eu posso explicar…

Camila a estapeou violentamente e Eva sentiu o gosto do seu sangue em seus lábios, junto com a dor que invadiu seu coração. Deu um passo atrás, o ódio pelas mentiras de Rafael a cegando.

Nunca sentiu tanta dor como naquele momento. Era mais que físico, era espiritual. Havia perdido o amor de sua vida para uma mentira e jurou, enquanto uma lágrima deslizava por sua face alva, que Rafael iria chorar lágrimas de sangue.

Camila guardou a arma e se aproximou dela. Os olhos negros em fúria prenderam os castanhos de Eva por um longo instante em que baixou sua guarda. Camila a jogou contra a parede pressionando o corpo de Eva com o seu, tomando-lhe os lábios ávida e sofregamente.

Eva recebeu os lábios da amada com tanta sede que nem percebeu que o sabor da saudade se misturou com o sabor salgado das lágrimas de ambas. Camila se afastou e desferiu uma nova tapa em Eva, puxando-a para novamente beijá-la violentamente.

Ao se afastarem, ela tentou dar-lhe outro tapa, mas Eva foi mais rápida e segurou sua mão, perguntando confusa e sem ar:

– Por quê?

Ao que Camila respondeu:

– Para você aprender a nunca mais me deixar assim! Quase morri de saudades – e tomou os lábios dela outra vez em um beijo insano e apaixonado.

Sem ar, Eva repousou a cabeça no ombro de Camila e chorou como não fazia havia dez longos anos, se entregou a dor da saudade e do medo que sentiu de perde-la e ao tio.

– Pensei que ele tinha conseguido – falou entre as lágrimas, a voz abafada pelos cabelos de Camila que a afastou delicadamente.

– Ele jamais me faria acreditar que você nos traiu.

Camila a fitava nos olhos.

– Antes de tudo, nós temos o mesmo sangue, crescemos juntas e nos conhecemos melhor do que qualquer outra pessoa possa chegar a conhecer, mesmo estando afastadas por tanto tempo e, principalmente, você e eu nos amamos. Jamais acreditaria naquelas mentiras. Você pode não ser mais a menina com quem cresci, mas sei que jamais trairia a sua família.

Eva sorriu deixando toda a angústia que a atormentara àqueles dias partir de seu peito.

– Te amo, Cami!

– Acho que te amo mais! – a puxou para um beijo rápido.

Eva deu um passo atrás, voltando a exibir um olhar confuso.

– Ouvi claramente meu tio dizer que me odiava e que se voltarmos a nos encontrar, se encarregará pessoalmente de me matar.

Camila sorriu.

– O velho é um ótimo ator, não acha?

Lentamente, Eva sorriu compreendendo o que ela disse.

– Logo após seu desaparecimento, enviamos um grupo para te procurar e Rafael voltou com o corpo de Marina dizendo que você a matou e fugiu em seguida.

– Bem que eu quis, – confessou – provavelmente a teria matado se não tivessem me atrapalhado. Mas ela estava bem viva quando fugi. Destruída, é verdade, mas viva.

– Você fez aquele estrago nela?

– Era ela ou eu, não foi uma decisão difícil – sorriu maliciosa.

Camila deu de ombros, concordando.

– Meu pai é um homem cauteloso, amor. Nós duas sabemos bem disso, mas antes de confiar em qualquer outra pessoa, ele confia em sua família, confia em você!

Eva a puxou para um abraço apertado, todo o medo que sentiu de perde-la sendo substituído pela alegria de sentir o seu calor junto ao seu corpo.

– Rafael sempre foi um bom soldado e se tivesse dito que outra pessoa matou Marina e o feriu, talvez nós tivéssemos acreditado, mas ele acusou você. Isso foi o pior de seus erros – Camila explicou, o rosto entre seus cabelos, os lábios próximos ao seu ouvido.

Eva a libertou do seu abraço, sorrindo.

– Pensou mesmo que acreditamos no que aquele safado nos disse?

– E por que não? Afinal, não estava lá para me defender.

– Você nos dá muito pouco crédito – lhe dirigiu um olhar magoado. – Mas, isso, discutiremos depois.

– Certo. Agora me conte o que está acontecendo.

– Ficamos de sobreaviso quando Rafael nos trouxe o corpo de Marina com aquela história absurda. Meu pai pediu que vigiasse sua cabana e o vi sair de madrugada, debaixo de um temporal. Tive dificuldade em segui-lo por causa da chuva e até perdi seu rastro algumas vezes, mas ele estava confiante e foi descuidado. O vi entrar em uma caverna próxima da fronteira. A chuva atrapalhou bastante e o som dos trovões não ajudaram também. Me arrisquei muito entrando na caverna, mas descobri que ele escondia um rádio lá e pude ouvir toda a sua conversa. Foi quando descobri que você estava viva, não sabe o medo que senti de perde-la outra vez.

Eva a puxou para outro abraço apertado, mas a soltou quando Camila voltou a falar.

– Ele informou sua real identidade e recebeu ordens de voltar para o nosso acampamento, o que ele fez rapidinho. Tive que ter muito autocontrole para não o matar com minhas próprias mãos, mas tive de ser mais controlada ainda para evitar que papai o fizesse quando lhe contei o que descobri. Quando recebemos o recado de Antônio, marcando um encontro com urgência, soubemos que você estava bem e salva. Fingi estar profundamente consternada pela sua traição. Recusei-me a acompanhar meu pai e Rafael até aqui. No entanto, em segredo, combinei com meu pai que viria às escondidas com um pequeno grupo de elite que, neste momento, deve estar terminando de dar cabo dos soldados do exército que estão escondidos no cafezal.

Eva deu um meio sorriso.

– Muito bom. Avise-os de que há um grupo de guerrilheiros no pomar a quinhentos metros daqui e que são aliados – instruiu.

Camila a obedeceu e usando o rádio que trazia preso a cintura deu o aviso ao grupo. Eva seguiu seu exemplo fazendo o mesmo, avisando os guerrilheiros no pomar.

– Pronto. Agora, acho que temos de voltar lá para baixo – Eva falou.

– Papai pode dar contar disso – Camila informou.

– Sei que pode, ainda mais agora que não restam mais inimigos lá fora. Mas eu tenho contas a acertar com aquele traidor.

– E o que você pretende fazer?

Eva sorriu em resposta a pergunta, um sorriso que prometia muito desconforto a Rafael.



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