CAPÍTULO 1

Eva olhou para o relógio e, durante alguns segundos, manteve o olhar fixo no movimento dos ponteiros que marcavam o ritmo dos seus dias. O tempo, para ela nada significava, mas para as pessoas para as quais trabalhava ele era tudo.

Voltou a se concentrar na pilha de papéis que jazia sobre sua mesa. Pegou algumas pastas e começou a folhear seu interior. Fotos, nomes, sobrenomes, datas, locais, um sem número de informações ali contidas sobre cada pessoa que o atual governo considerava uma ameaça ou suspeita de pertencer às forças revolucionárias para a libertação da ilha.

Suspirou cansada, enquanto levava as mãos ao rosto e esfregava os olhos como uma criança sonolenta. Uma nova pasta entre as mãos, um novo rosto. Para ela, não tão novo assim, pois já o havia visto em duas ou três ocasiões durante reuniões do conselho. Analisou todos os dados recolhidos e relatórios dos agentes encarregados da vigília, então pôs essa pasta em uma pilha separada das demais. Mais tarde se encarregaria daquela pasta e de modificar algumas informações.

Sentiu o cansaço tomar conta de si e o torpor causado pelo sono lhe dominar. Recostou-se na cadeira e fechou os olhos permitindo-se andar por caminhos imaginários e outros que faziam parte de suas lembranças mais queridas, todos a levavam até o sorriso de uma menina cujo olhar negro ainda iluminava os seus dias.

Batidas insistentes na porta a tiraram dos braços de Morfeu e a trouxeram de volta a sua sala. Pigarreou um pouco e ajeitou-se na cadeira antes de ordenar que entrassem com voz firme e autoritária.

– Entre.

No prédio central da inteligência do governo, apenas os guardas usavam uniforme, todos os outros funcionários vestiam-se comumente. Ali trabalhavam centenas de pessoas fiéis ao atual governo, a maioria disposta a dar suas vidas por essa fidelidade cega e outros apenas porque não tinham outra opção a não ser obedecer cegamente às ordens que lhe eram dadas.

No entanto, era de conhecimento de todos que havia um pequeno grupo fiel aos ideais da Força de Libertação infiltrado em diversas repartições do governo, incluindo a Central de Inteligência. Cabia a Eva Torres a função de descobrir os traidores e recolher o máximo de informações possíveis sobre os membros desse grupo e tudo que se relacionasse as FL, principalmente, a localização do General Silas Herrera seu principal comandante. O cargo que exercia ali era da mais alta confiança, exatamente por isso, ninguém poderia imaginar que a agente responsável pelo departamento de investigação interno fosse uma agente dupla.

A porta abriu-se para dar passagem a um rapaz baixinho e de olhar inquieto. Estava nervoso por estar diante da mulher que detinha o poder sobre a vida de todos que ali trabalhavam e o pelotão de fuzilamento. Fazendo bem o seu papel e cumprindo suas funções da maneira mais correta possível, Eva era implacável, admirada por poucos e temida por muitos. Solitária e reservada, não permitia que se aproximassem dela além do necessário e isso se aplicava somente ao trabalho, pois sua vida social era inexistente.

Com mãos trêmulas, ele se aproximou da mesa e lhe entregou uma pasta, dizendo:

– O tenente Morales pediu que isto lhe fosse entregue imediatamente e, também, exige sua presença no subsolo o mais rapidamente possível.

Ela pegou a pasta e, enquanto a abria, fez um gesto para que se retirasse o que ele fez com evidente alívio em sua face. Ela concentrou-se na leitura das informações e à medida que lia sentia-se cada vez mais angustiada.

Atravessou os corredores, desceu escadas, abriu portas quase correndo. Era a primeira vez que algo do tipo acontecia e, por isso, ela tinha de se apressar para evitar que o pior acontecesse caso fosse verdade o que imaginava devido às informações que lera.

Chegou ao subsolo quase sem fôlego e teve de parar e recostar-se a parede por alguns instantes para recuperá-lo e evitar que isso a denunciasse de alguma forma já que, para todos, aparentava ser uma pedra de gelo. Quando se sentiu capaz, pôs mais uma vez sua mascara de frieza e adentrou no local. Seguiu por um corredor mal iluminado e ligeiramente fétido, tudo obviamente preparado para intimidar qualquer prisioneiro que fosse levado até aquele nível.

Era no subsolo do prédio da Central de Inteligência que os interrogatórios a todos os suspeitos de serem membros das FL eram feitos. Dividia-se em duas alas. Na ala direita encontravam-se os cárceres e salas de interrogatório. Os escritórios e demais ambientes para os agentes ficavam na ala esquerda, e foi para lá que ela se dirigiu.

***

Camila despertou com o som de tiros e gritos. Havia cochilado por alguns minutos e parecia que o juízo final havia chegado nesse meio tempo. Pegou a metralhadora, que jazia em seu colo, e iniciou uma sucessão de disparos na direção que julgou que vinham os tiros. Na escuridão em que se encontravam era quase impossível enxergar seus inimigos exceto pela rápida luz emitida pelos disparos.

Sentiu algo morno em seu ombro e, logo depois, ardência e dor se espalhando pelo local. Levou a mão até o ombro e sentiu seu sangue escorrer por entre os dedos, curvou-se mais dentro do barco e olhou para o lado. José ainda se mantinha firme no leme e tentava ligar o motor para escaparem daquela emboscada.

Haviam optado por viajarem com o motor desligado, deixando que a correnteza do rio os levasse para evitar que o barulho atraísse algum pelotão do exército que pudesse estar fazendo alguma incursão na selva, no entanto estava obvio que seus planos haviam falhado. Contudo, para Camila, esse encontro com o exército não era apenas uma coincidência, já que não era comum que os soldados viessem tão longe na selva.

Arrependeu-se de ter escolhido um grupo pequeno para essa viagem, mas não via necessidade de um grupo maior que poderia chamar a atenção e, além disso, os homens que escolhera para tal missão eram os melhores soldados do grupo que tinha a sua disposição.

Depois da quinta tentativa, José conseguiu que o motor funcionasse e tomando conta do leme afastou o barco o mais longe possível do alcance das armas dos soldados, só então todos puderam respirar um pouco mais aliviados e Camila passou a avaliar a profundidade de seu ferimento. A bala havia atravessado o ombro, mas aparentemente, o ferimento não era muito grave.

– Como foi que esses cretinos nos encontraram?! – Pablo, um homenzarrão de olhar selvagem e bom caráter perguntou entredentes. Outrora, trouxera nas mãos calos provocados pela lida com a enxada no pequeno sítio que herdara dos pais e que cuidava com a ajuda do irmão. Havia três anos tinha se juntado as FL, não fosse o desejo de vingança e a esperança de reencontrar o irmão caçula que fora arrancado de casa por soldados apenas por ter ousado se manifestar contra o governo em uma conversa um pouco mais calorosa na mesa de um bar, teria preferido viver tranquilamente em seu sítio e mantendo-se a parte de toda essa guerra.

Além de Camila e Pablo, no barco havia mais cinco pessoas, todos de sua total confiança e respeito. Todos tinham, de alguma forma, tido experiências ruins com o governo, portanto, de histórias dolorosas e com finais infelizes aquele barco estava cheio. Os abusos, mandos e desmandos do governo e seu exército levaram muita gente a se voltar contra ele, se unir e compactuar com as FL.

Apenas uma minoria se unia ao exército revolucionário de fato, a maior parte contribuía com o seu silêncio, ajudando com o transporte ou armazenamento de alimentos e, às vezes, oferecendo o lugar para o pernoite a algum soldado que estivesse em missão ou fuga. Pequenas coisas que faziam a diferença nessa batalha. Era graças a essas pessoas, simpatizantes da causa pela qual lutavam, que as FL haviam conseguido se manter firme na guerra por tanto tempo e, com o passar dos anos, mais e mais pessoas se juntavam a eles. No momento, Camila pressentia que o desfecho dessa luta se aproximava, pois nunca foram tão fortes quanto eram no momento.

– Também gostaria de saber como aqueles cães do governo nos encontraram. Não costumam vir tão longe dentro da selva – disse Mariane, uma negra de sorriso cristalino e sempre bem-humorada. Dentre todos ali, era em quem Camila mais depositava sua confiança.

– Alguém deve ter falado – José comentou, aparentemente, só para si, mas alto o suficiente para os outros ouvirem.

– Mas quem?

Camila, que até aquele momento se mantivera em silêncio e pressionando o ferimento para conter o sangramento, disse:

– Não importa agora. Nesse momento, tudo o que importa é que temos que sair daqui, pois se sabiam que estaríamos passando nesse local a esta hora, com certeza, quem nos entregou contou qual o nosso destino e objetivo.

Todos ficaram em silêncio por alguns instantes, apenas o som do motor do barco cortando as águas do rio no seu ritmo constante e nervoso.

– Então, que faremos? Precisamos dos mantimentos e dos remédios – Mariane perguntou.

Camila emitiu um som rouco e cheio de ódio antes de falar:

– Não podemos ir até o ponto de encontro. Com certeza, há soldados nos esperando lá. Ainda temos mantimentos e remédios no acampamento para alguns dias, enquanto não arranjamos um novo local de encontro e alguém que nos forneça os víveres. Até lá, o melhor que temos a fazer é sair logo desse rio e encontrarmos uma maneira de voltar ao acampamento. José, encontre um local para escondermos o barco e…

Ela calou-se, no meio da escuridão sombras começavam a tomar formas logo a frente do barco. Sentiu um frio percorrer-lhe a espinha e o coração batendo freneticamente dentro do peito. Apertou a metralhadora em seu colo, mas sabia que de nada adiantaria, estavam cercados.



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