Assim que entrou naquela cela minúscula, Eva havia sentido a presença de Camila e, quando o reconhecimento se deu, teve de se segurar para não correr e abraçá-la. Havia se arriscado demais ao ordenar ao Tenente Morales que lhe providenciasse tratamento médico, mas caso não o fizesse, poderia deixar a pessoa mais importante de sua vida morrer.

Ao contrário de Camila, Eva conhecia a aparência da prima. Trazia em seu pescoço um pingente com a foto dela, presente de seu tio. Aliás, o General Herrera era a sua única fonte de informações sobre a prima com a qual não conversava havia quase quatorze anos.

Era seu primeiro encontro com Camila desde que partira para morar com a mãe na Espanha, excluindo a vez em que se esbarraram, enquanto ela saía da cabana de seu tio no acampamento das FL. Na ocasião, Eva ocultava seu rosto com um boné e uma pintura militar utilizada pelos soldados para se camuflar melhor na mata. Uma rápida troca de olhares e ela foi-se embora com o coração aos pulos dentro do peito.

Agora, a vida de Camila estava em suas mãos e não sabia o que fazer para tirá-la daquela prisão sem revelar seu disfarce.

Passou longos minutos em sua sala, a cabeça apoiada sobre os braços cruzados na mesa. Na cabeça, milhares de ideias circulando; no peito, a angústia e o medo lhe corroendo. Decidiu ir para casa e tentar entrar em contato com o tio o mais rápido possível.

Duas quadras antes de chegar ao prédio onde morava, seu carro foi fechado por outro, de dentro dele dois homens saíram, um rosto conhecido. Aquele que lhe era familiar, curvou-se na janela de seu carro apontando-lhe uma pistola, enquanto o outro segurava uma metralhadora e apontava para ela em frente ao carro.

Antônio Hernandes era o melhor amigo e braço direito do General Silas Herrera. Ex oficial do exército e herdeiro de uma das famílias mais respeitáveis e influentes das Ilhas Negras, tinha um importante cargo no governo do General Cortez.

Quando ocorreu o golpe de estado maquinado pelo General Cortez treze anos antes, o Capitão Hernandes ainda servia ao exército e, ao lado do amigo Sargento Silas, seguiu fielmente seu juramento a pátria e as ordens de Cortez. Até que se depararem com acontecimentos que destruíram a boa imagem que tinham do governo. Herrera desertou e partiu para se juntar àqueles que faziam oposição ao governo autoritário e cruel de Cortez, enquanto isso, Hernandes saiu do exército e, graças à influência de sua família, conseguiu um cargo político de relativa importância e passou a auxiliar secretamente o amigo na luta pela libertação das Ilhas Negras.

Antônio espionava, coletava informações e, quando possível, usava de sua influência para libertar pessoas acusadas de serem rebeldes e, ou, encontrar cargos em agências governamentais para espiões rebeldes. Fora graças a ele, que Eva conseguira chegar até a agência de inteligência sem que para isso tivesse de servir ao exército.

– Não me parece uma maneira amigável de se abordar uma velha amiga – ela falou-lhe.

Ele deixou escapar um sorriso ao ouvir-lhe. Guardou sua arma e fez um gesto para que o homem com a metralhadora fizesse o mesmo.

– Desculpe. Fazia-se necessário, afinal, não sabíamos quem poderia estar lhe acompanhando.

Afastou-se do veículo e ordenou:

– Tire o carro do meio da rua e venha conosco, um velho amigo necessita lhe falar com certa urgência.

Ela obedeceu-lhe estacionando o carro um pouco mais a frente, em um local pouco iluminado, e adentrou no carro dele que foi posto em movimento pelo motorista quase imediatamente.

– Como ele está? – ela perguntou depois de alguns minutos de silêncio. Olhava para a escuridão das ruas sentindo em seu coração o mesmo medo que seu tio, com certeza, estava sentindo.

– Aterrorizado diante das notícias que recebeu.

Ela manteve-se em silêncio. Olhava para o retrovisor do carro e vislumbrava, na semi-escuridão do veículo, o olhar do motorista. Antônio percebeu sua inquietação e disse-lhe:

– Não se preocupe, ele é totalmente confiável.

– Como tem tanta certeza?

– Ele é meu filho – sorriu. – E, também, é afilhado do seu tio.

Ela não fez mais perguntas ou voltou a prestar atenção ao rapaz ao volante do carro. Estavam saindo da cidade, uma estrada de terra surgia logo à frente. Árvores, pastos, pontes passavam como um filme pela janela do veículo. Não demorou muito, entraram em uma estradinha esburacada e, evidentemente, pouco utilizada. Seguiram nela por quase uma hora até chegarem a uma cabana, aparentemente, abandonada no meio de lugar algum.

Pietro, assim se chamava o filho de Antônio, buzinou três vezes e apagou os faróis do carro duas vezes. No interior da cabana, um lampião foi aceso e balançado diante da janela por duas vezes.

Estava tudo em ordem.

Antônio lhe entregou um capuz com abertura apenas para os olhos e ele e seu filho puseram, cada um, um capuz semelhante. Era uma evidente precaução para evitar o reconhecimento por algum dos soldados de Herrera que estavam escondidos na mata. O General pessoalmente abriu a porta e, tão logo todos entraram, ele a fechou e atirou-se nos braços da sobrinha. O lampião foi apagado e todos retiraram seus capuzes.

Apenas uma vela acesa sobre a lareira iluminava o ambiente.

Sentaram-se em volta da mesa, avaliando-se na semi-escuridão. Silas e Antônio serviram-se de um copo de uísque, enquanto Pietro brincava com seu canivete e Eva esfregava a têmpora com a ponta dos dedos na esperança de aliviar a dor de cabeça que estava sentindo.

– Você a viu? – o General quebrou o silêncio, a voz um tanto embargada pela emoção e pelo evidente consumo de álcool.

– Sim.

– Como ela está?

– Mal.

– Está ferida? Torturaram-na? O que aqueles desgraçados fizeram a ela? Juro que se a machucarem vou arrancar suas cabeças e…

– Tio, por favor, acalme-se! – Eva ergueu-se batendo a mão na mesa para chamar-lhe a atenção.

– Desculpe, eu… eu…

– Eu sei – ela voltou a sentar-se. – Também me sinto assim, mas perdermos a cabeça em nada ajudará.

Ele fez um gesto positivo com a cabeça e tomou mais um gole de uísque.

– Por favor, conte tudo que sabe – pediu.

Ela olhou para o relógio em seu pulso, no mostrador já passava da meia noite.

– Ontem pela manhã, o departamento do Coronel Castilho recebeu uma informação sobre um armazém onde estariam sendo estocados alimentos e medicamentos para os rebeldes. Um grupo de soldados foi enviado para investigar o local e prenderam dois homens que montavam guarda. Sob tortura, eles obtiveram a informação de que um grupo iria buscar os alimentos durante a noite e, também, conseguiram informações sobre a rota e meio de transporte que usariam. Uma operação de apreensão foi montada às pressas. O grupo de Camila foi capturado e imediatamente transportado para o prédio da agência de inteligência na Capital.

Ela fez uma pequena pausa para acender um cigarro e retomou seu relato.

– Em virtude da ausência do Coronel Castilho e do Capitão Gutierrez, serei responsável por dar seguimento aos interrogatórios desses prisioneiros e, consequentemente, suas vidas.

– Isso pode nos ajudar – Antônio disse sério.

– Mas, e quanto ao estado físico em que eles se encontram? – Silas perguntou ansioso por saber como estava sua filha.

– Estão todos bem fora alguns ferimentos causados por agressões dos soldados. Ordenei que fossem separados e postos em celas individuais. Mas, Camila levou um tiro e perdeu muito sangue, arrisquei-me muito ordenando que lhe fosse dado tratamento médico adequado.

Silas contorceu o rosto em uma careta que misturava medo e impotência.

– A minha menina…

– Ela ficará bem, tio. Não se preocupe.

Antônio suspirou pesadamente e disse com evidente preocupação na voz:

– Mas, você não poderá impedir que sejam interrogados e torturados por muito mais tempo.

Eva baixou a cabeça, essa era a questão que martelava em sua mente desde o momento em que saíra daquela cela. No momento, tinha o poder de decisão sobre o que aconteceria com Camila e seus companheiros, mas não demoraria muito para o Coronel Castilho retornar e, quando isso acontecesse, teria de se afastar e deixar que fizesse seu trabalho.

Com certeza, iria ter problemas com seus superiores pelo modo como agira e poderia vir a ser investigada, o que poria em risco seu disfarce e todos aqueles a quem protegia.

– Você tem de tirá-los de lá – Silas a tirou de seus devaneios.

Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça e disse:

– Eu sei. Mas, para isso precisarei de ajuda. Preciso de pessoas competentes e confiáveis ao meu lado e teremos que montar um plano de resgate e uma rota de fuga em, no máximo, dois dias. Depois disso, é provável que não tenha mais qualquer poder de decisão sobre eles.

– Mas, se você tiver ajuda irá expor seu disfarce – Pietro, que até então se mantivera calado e a parte da conversa, disse.

– Eu sei – ela respondeu olhando-o firmemente.

– Então por quê…

– Camila estará a salvo, é tudo que importa. A tirarei de lá e não voltarei mais para a agência – disse determinada, um brilho intenso no olhar.

– Mas, isso deixará muitas pessoas que trabalham conosco desprotegidas.

– Daremos um jeito – Silas disse, a firmeza retornando a sua voz. – Tiraremos Camila e os outros de lá e ninguém irá desconfiar de Eva.

O dia já estava raiando quando Eva entrou em seu apartamento. Carregava consigo duas certezas, iria resgatar Camila e daria sua vida para isso.



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