Camila caminhava de um lado para outro da cela como uma fera que acabara de ser aprisionada. As grades a estavam enlouquecendo. Para qualquer direção que olhasse deparava-se com paredes e grades e sentia toda a sua força e amor pela liberdade se esvaírem.

Mal o médico que estava responsável por ela havia entrado em seu quarto àquela tarde, o homenzinho baixinho e de simpatia irritante, o tenentes Morales, que vira na noite anterior, entrou no quarto e ordenou sua transferência imediata para o confinamento naquela cela minúscula na qual passara o resto da tarde sendo interrogada e ameaçada por ele.

No fim, o tenente Morales saíra batendo o pé furiosamente. Não havia conseguido obter qualquer informação que o levasse ao paradeiro do General Herrera e suas tropas ou algo sobre os próximos passos dos rebeldes. Tudo que ele conseguiu extrair de Camila foram insultos, praticamente, cuspidos um atrás do outro. A moça estranhou o fato de ter sido apenas interrogada e não ter sofrido qualquer tipo de agressão física, já que a fama dos interrogatórios feitos pelos membros da Inteligência do Exército não era das melhores.

Muitas interrogações circulavam em sua cabeça ao ser deixada sozinha na cela. As “questões” eram diversas e confusas, mas algumas delas foram respondidas pelo próprio tenente e seu assistente que, ao saírem da cela, não se afastaram muito para discutir sobre o malsucedido interrogatório.

– Fedelha desgraçada! Como ela ousa?!

– Senhor, acalme-se.

– Me acalmar? Como posso me acalmar se aquela maldita mulher não me deixa fazer o meu trabalho? Em outra situação, já teria feito essa rebeldizinha insignificante cantar como um passarinho tudo o que aqueles bastardos planejam e…

– Mas, senhor, temos ordens para não tocá-la, muito menos aos seus companheiros. O senhor sabe que “ela” não quer que interroguemos ninguém sem a sua presença, ainda mais, que torturemos. Nem deveríamos estar aqui agora.

– Aquela filha de uma puta está se achando a toda poderosa deste departamento, mas ela não teria qualquer poder se não fosse por mim!

– Desculpe, senhor, mas se a despreza tanto, por qual razão deu a ela a responsabilidade sobre este departamento?

– Porque essas eram as minhas ordens! Infelizmente, a maldita da Torres é a superior mais qualificada para assumir essa função na ausência do Coronel Castilho e do Capitão Gutierrez. Mesmo não sendo militar é extremamente competente e, por isso, tem um cargo da mais alta confiança aqui na Agência. Infelizmente, há algo em seu jeito de fazer as coisas que me deixa fora de mim… Felizmente, o Coronel retornará amanhã e estaremos livres para executarmos nosso trabalho e o mais longe possível daquela mulher!

Afastaram-se conversando sobre essa tal mulher, deixando Camila intrigada a respeito dela. Ainda se questionava sobre aquela que tanto afetava o tenente Morales e suas ações e se ela era a mesma mulher que havia visto na noite em que ali chegara e no quarto da enfermaria. Quando deu por si, já era quase madrugada e a porta da sua cela estava sendo novamente aberta.

Seus olhos se cruzaram na penumbra. Por longos segundos permaneceram a se encarar até que um pequeno “estalo” trouxe a mente de Camila uma terrível lembrança.

***

Eva ergueu-se, mais uma vez, da cadeira onde estava sentada. Abandonou os mapas sobre a mesa e caminhou até Rafael lentamente. Quanto mais ela se aproximava, mais forte ele segurava a arma e mantinha sua mira firme. Ficaram imóveis por alguns segundos, a se encarar. Ela avaliando-o; ele tentando imaginar quais sentimentos transpareciam nos olhos dela por trás dos óculos.

A tensão tomou conta do ambiente e Eva sentia a adrenalina correndo por suas veias diante da possibilidade de morrer ali sem que pudesse devolver a Camila sua liberdade.

Deu mais um passo à frente, enquanto respondia a pergunta que ele havia feito sobre quem era ela.

– Não é de sua conta.

Rafael a observava surpreso e ao mesmo tempo furioso com sua resposta. Diante dos olhares surpresos de seus companheiros, ela o desarmou com tal rapidez e precisão que ele sequer teve tempo de pensar em uma reação.

Eva o observou seriamente por alguns segundos, a espera de alguma reação por sua parte. Como esta não veio, pôs a arma na cintura ao lado da sua própria e voltou para a mesa.

– Vocês têm o direito de desconfiarem de mim. Na verdade, ficaria profundamente decepcionada se não o fizessem, mas revelar minha identidade aqui expõe minha vida ao perigo como, também, meu trabalho junto as FL. Se estou aqui, neste exato momento, compartilhando estas informações e planejando esse resgate é porque sou merecedora da confiança do General Herrera, assim como vocês. Ele foi muito categórico em afirmar que vocês são o melhor de que dispõe e que foram treinados por sua filha. Por isso, são de sua mais alta estima e confiança. Portanto, peço a vocês um voto de confiança. Caso se achem incapazes disso, peço que se retirem e reportem sua decisão ao General.

Os rostos exibiram olhares e expressões confusas. Eva observou uma conversa silenciosa entre esses olhares e, como ninguém houvesse expressado em voz alta sua decisão, ela continuou sua explicação sobre as plantas, trocas de guarda, locais de acesso, possíveis rotas de fuga e tantas outras coisas que havia discutido horas antes, naquele mesmo local, com seu tio e os dois membros da família Hernandes que estavam presentes.

Dessa vez, não houve interrupções ou perguntas que não se destinassem a saber os pormenores do plano e a função que cada um desempenharia.

Passava um pouco das três da tarde quando Eva retornou para a cidade. Consigo, trazia uma ansiedade e medo crescentes, mas estava confiante de que seu plano era perfeito e daria tudo certo.

Não retornou para a central de Inteligência de imediato, pois ainda tinha um segundo encontro àquele dia e já se encontrava atrasada. Guiou seu carro entre as avenidas e ruelas que levavam até o centro da cidade onde estacionou em uma garagem mal iluminada de um edifício antigo. Trocou de roupa ali mesmo e, ainda com o boné enterrado na cabeça e os ósculos ocultando parte de seu rosto, ela saiu para a rua. Duas quadras à frente, entrou e se acomodou no banco traseiro de um carro preto e de vidros escuros que se dirigiu para um dos bairros mais nobres da cidade. Somente quando ultrapassaram os muros da mansão, que se apresentava diante dos seus olhos, é que ela relaxou e retirou o boné e os óculos.

Pietro já a aguardava e fez questão de abrir a porta do veículo para ela. Ela o avaliou, indisfarçadamente, e pareceu aprovar o que viu.

Ele sorriu-lhe ao perceber que estava sendo avaliado e perguntou, abrindo o paletó que usava para que ela visualizasse melhor a gravata negra e a camisa branca. Seus sapatos estavam tão limpos e engraxados que ela quase viu seu reflexo neles.

– Gostou?

Eva simpatizava com ele, talvez por parecer estar sempre à parte do que acontecia. Pelo contrário, ele estava sempre concentrado no mundo à sua volta. Essa maneira de agir despreocupadamente, lembrava-a de seu pai e de seu tio em outra época de sua vida.

– Agora sim, você parece ser filho de um político e herdeiro de uma importante família da alta sociedade. Todo engomadinho… – ele pôde vislumbrar algo que raramente ela deixava transparecer, seu sorriso.

 Ainda rindo da resposta dela, ele a guiou para o interior da residência da família Hernandes. Móveis antigos e de gosto requintado, quadros, esculturas, a arquitetura, nada disso causou curiosidade nela que se limitou a acompanhar o rapaz até o escritório de seu pai, onde ele já os aguardava com um copo de uísque nas mãos e um charuto na outra, lembrando a Eva os vilões dos filmes que assistia quando adolescente.

Antônio depositou o copo, despreocupadamente, sobre alguns livros na mesa e foi cumprimentá-la.

– Minha bela, que bom revê-la – apontou para um sofá no canto da sala e ela sentou-se acompanhada por Pietro.

Antônio sentou-se em uma poltrona à sua frente, tragando a fumaça de seu charuto com evidente prazer.

– A fumaça a incomoda? – perguntou preocupado, já quase apagando o charuto no cinzeiro sobre mezinha de centro à sua frente.

– De modo algum – ela respondeu. – Se não se importar que eu também fume um pouco…

Ele sorriu, satisfeito. Havia esquecido brevemente que ela também apreciava o fumo.

– Fique à vontade.

Ela pegou um cigarro e acendeu-o imediatamente. Odiava aquele vício, sabia que tudo que fazia era prejudicar seu corpo, mas o cigarro foi a única droga que encontrou capaz de fazê-la relaxar diante de toda a pressão sob a qual vivia sem que isso a levasse a destruição imediata. Planejava largá-lo assim que toda aquela loucura acabasse, até lá, seguiria em meio à fumaça.

Ela sorriu, achando ridículo tais pensamentos em tal momento.

Antônio, assim como seu filho, admirou seu sorriso com certa surpresa, pois desde que conhecera Eva, nunca a tinha visto sorrir e desejou que ela pudesse fazer isso mais vezes.

– Você parece bem relaxada para quem vai arriscar a vida em uma missão de resgate quase suicida.

Ela pôs o cigarro na boca, enquanto sentia o efeito da nicotina se espalhar pelo cérebro.

– Suicida. De fato, esta é uma missão quase suicida, mas há muito tempo que estou preparada para morrer por esta causa e o farei com orgulho se é para salvar alguém a quem amo e que fez parte dos melhores dias de minha vida.

Cada vez que se encontrava com Eva, a admiração de Antônio por ela só aumentava. Olhando para aquela mulher jovem e decidida, lembrou-se da adolescente que um dia batera à sua porta pedindo-lhe que a levasse até seu tio e que, quando se inteirou de tudo que se passava naquele país, não hesitou em dizer que ajudaria os rebeldes em sua causa.

Para ele, foi uma surpresa ouvi-la dizer tudo aquilo de forma tão decidida e, quando revelou a Silas as intenções de sua sobrinha, surpreendeu-se ainda mais ao vê-lo concordar em tê-la como espiã.

– Ela é só uma criança! Você não pode permitir essa loucura! – dissera ao amigo.

Em resposta, o General Herrera lhe perguntou:

– O que você realmente pensa de minha filha Camila?

– Por que está perguntando isso? O assunto aqui é a sua sobrinha.

– Apenas responda à pergunta, Antônio.

Ele reconheceu o tom sério que exigia uma resposta rápida e precisa na voz do amigo e, sem hesitar, respondeu:

– Acho Camila uma garota admirável, embora não concorde com a presença dela no seu acampamento. Sei que ela é muito capaz. Possui, apesar de tão jovem, habilidades militares surpreendentes. É uma líder nata. E tem um espírito indomável e em busca da liberdade igual ao do pai. Sinceramente, acredito que ninguém é capaz de dominar seu espírito e a fazer abandonar esta causa.

Silas sorriu e Antônio pareceu compreender, de imediato, o que ele queria ao fazer-lhe aquela pergunta, mas o General deixou isso ainda mais claro ao dizer:

– Você acabou de descrever a Eva.

E foi assim que Antônio nunca mais questionou a capacidade de Eva, nem seu desejo de participar daquela luta. Trabalhou na surdina para fazê-la chegar até aquele cargo, se bem que, não teve muito que fazer, já que ela mereceu tudo que aconteceu. Eva era muito capaz.

Passaram o resto da tarde discutindo as próximas etapas de seu plano e já era quase noite quando Eva, finalmente, seguiu rumo à central de Inteligência.



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