Quando a porta da cela se abriu, os olhos de Camila cruzaram com as daquela mulher que exercia certo fascínio sobre ela. Algo neles lhe trouxe lembranças amargas de repente. Aquele olhar castanho era muito parecido com o de sua falecida prima e a dor de sua perda assomou-lhe o peito.

Os militares, liderados pelo General Cortez, deram um golpe de estado logo após a partida de Eva para a Espanha com a mãe, não demorou muito e seu pai se rebelou contra o exército e o governo.

Tiveram de fugir.

Se esconderam na mata junto com outros que também se revoltaram, logo, eram centenas e depois milhares. Nesse meio tempo, não recebeu qualquer noticia da prima devido as circunstâncias, com exceção de uma carta, entregue por velho amigo de seu pai. Então, três anos depois de sua partida, seu pai dera-lhe a pior notícia de sua vida: Eva estava morta. Havia falecido em um acidente aéreo junto com todos os membros de sua família.

Nunca sentiu tanta dor como quando soube que a perdera. Tinha na época, quinze anos e trazia sempre consigo a lembrança de Eva, como a menina forte e destemida que seguira em inúmeras aventuras e brigas, como a doce e carinhosa que a abraçava em noites de tempestade.

Não sabia, ao certo, o que havia no olhar daquela mulher para causar tal efeito em si, mas isso piorou quando ela lhe sorriu. E a odiou por isso, odiou por ela ter trazido à tona lembranças tão amargas.

Diante das revelações que lhe fizera, a incredulidade era quase inevitável. Se fosse verdade o que dizia, ela saberia, pois seu pai nunca lhe escondeu nada do que fazia para ganhar aquela guerra.

Assim como chegou, ela partiu. Um soldado adentrou na cela e, enquanto ele a algemava, outro soldado se aproximou. Em meio a semiescuridão do ambiente, Camila reconheceu Rafael. Foi nesse momento, que ela entendeu que a desconhecida lhe falara a verdade.

Foi escoltada pelos dois soldados até uma sala em que já se encontravam a mulher que, pelo que ouvira naquela tarde da boca do Tenente Morales, chamava-se Torres e outro homem que, pelo uniforme, tratava-se do tal Coronel Castilho. O tenente Morales chegou em seguida a ela e colocou-se ao lado do Coronel com um sorrisinho satisfeito.

O soldado e Rafael foram se posicionar junto à porta assim que a algemaram a uma cadeira.

O Coronel Castilho aproximou-se dela com um sorriso irônico estampado no rosto gordo, curvou-se um pouco na sua direção apertando firme, entre as mãos, a pasta que Eva lhe dera. Esta, por sua vez, recostara-se num canto de parede observando tudo que se passava e, sem que todos notassem, olhava para o relógio a cada minuto.

– Então, você é a filha daquele bastardo do Herrera? Muito bonita – acariciou a face dela. – Pena. Tenho quase certeza de que você é tão determinada quanto seu pai e não irá nos dar qualquer informação por vontade própria, sendo assim, teremos de usar força bruta.

Ele sorriu sardônico, cofiando o bigode espesso.

– Então, vamos poupar tempo e partir para o que interessa – sem que ninguém estivesse esperando, ele desferiu um soco violento em Camila, que só não caiu da cadeira porque estava algemada a ela.

Eva teve de se controlar ao máximo para não pegar sua arma e matá-lo naquele instante. Felizmente, seu sangue frio se sobressaiu ante seus sentimentos e o mesmo ocorreu com Rafael que chegou a dar um passo a frente com a mão na arma, mas a um olhar dela, retornou para seu lugar.

– Onde fica o acampamento de Herrera? – berrava o Coronel, mas a moça não havia se impressionado. Ela o mirava com a petulância que lhe era característica, enquanto um pequeno filete de sangue escorria de sua boca.

Um novo soco. Uma nova pergunta.

Várias perguntas. Vários socos.

Camila começava a respirar com um pouco de dificuldade, sangue vertia de seu nariz e lábios, mas ela não se deixou intimidar. Mirava o Coronel com um sorriso altivo e vermelho de sangue. Indignado e furioso ele voltou a agredi-la implacavelmente.

Eva não estava mais suportando assistir aquilo e já se preparava para abandonar seu sangue frio e pôr em risco o sucesso de seu plano quando se ouviram explosões, gritos e tiros que vinham da rua.

Respirou aliviada, estava na hora.

– Mas o que é isso? – perguntou o Coronel.

O Tenente saiu da sala em busca de informações e, nem bem fechou a porta, sentiu o cano de uma pistola em sua nuca e foi forçado a voltar para o interior da sala. Diante do olhar surpreso de todos, o soldado que estava ao lado da porta com Rafael tentou reagir, mas foi impedido por este que o nocauteou com a coronha de sua arma.

Dois homens e uma mulher, vestidos com trajes militares, juntaram-se a Rafael e renderam a todos na sala. Libertaram Camila que não hesitou em retribuir alguns socos ao Coronel Castilho.

Todos foram revistados e algemados, incluindo Eva que fingia tamanha surpresa e ódio que seria impossível imaginar que ela fazia parte daquilo.

Rafael liderava o grupo, dando-lhes ordens a cada instante. Ordens que eram prontamente obedecidas.

– Bastardos! – berrava o Coronel. – Não pensem que conseguirão se sair bem dessa. Vocês estão dentro de um dos prédios mais seguros do governo, temos soldados armados até os dentes e que não hesitarão em fazer de vocês peneiras.

Rafael riu alto e foi seguido pelos companheiros.

– Este prédio é tão seguro que conseguimos invadi-lo facilmente sem sermos notados. Neste momento, seus soldadinhos de chumbo, armados até os dentes, estão lá fora tentando conter uma manifestação contra o governo daquele porco do Cortez. E por que eles iriam atirar em um grupo de soldados que estão acompanhando uma prisioneira que está sendo transferida?

Riu mais alto diante do olhar colérico do Coronel.

– Pensando bem… – Rafael pôs uma mão no queixo e sorriu vitorioso. – Isso não fazia parte dos nossos planos, mas levar uma garantia de segurança não é uma má ideia. Vamos, venham!

Diante da confusão que se instalara do lado de fora do prédio, havia poucos soldados em seu interior e os que encontraram durante o trajeto que fizeram até o estacionamento não fizeram qualquer questionamento. Marina e Gabriela já os aguardavam com o restante do grupo de Camila que fora libertado. Subiram todos na carroceria do caminhão, as lonas foram abaixadas para que ninguém pudesse enxergar o seu interior e o veículo foi posto em movimento.

Como a manifestação estava ocorrendo diante do portão principal, eles seguiram para o portão lateral que dava acesso a uma ruela deserta. Em momento algum, levantaram suspeitas e seguiram seu caminho com sorrisos nos rostos.

Alguns quilômetros fora da cidade, o caminhão entrou numa estrada de terra e parou em uma encruzilhada. Todos desceram do veículo e foram se dividindo em grupos, enquanto no horizonte surgiam as primeiras luzes do dia.

– É aqui que nos separamos, amigos. Boa sorte! Nos veremos em breve – Rafael comunicou com um sorriso satisfeito.

Quatro carros saíram cantando pneus, entre seus ocupantes estavam o Coronel Castilho e o Tenente Morales. Quando já não era mais possível ver a poeira deixada por eles, Rafael soltou as algemas que prendiam Eva.

– Obrigada – ela disse em um sussurro.

Encaminhou-se para trás de alguns arbustos, seguida por Camila e Rafael. Havia um quinto carro estacionado ali. Ela pegou uma mochila no porta malas e trocou-se despudoradamente na frente de Rafael e Camila.

Estavam tão surpresos que não conseguiram desviar seus olhares. Rafael teve de usar de muita força de vontade para virar o rosto, no entanto, Camila percorria o corpo da outra com olhar atento. Ao terminar, Eva retirou outra mochila do porta malas e entregou a Camila dizendo para que também se trocasse, mas esta mal se mexeu.

– O que foi? Que está esperando? Vá se trocar e você também, Rafael.

Ele começou a tirar a camisa, mas Camila ainda estava imóvel olhando-a com uma expressão colérica. Sem que Eva esperasse, ela se aproximou e socou-lhe o rosto violentamente jogando-a, em seguida, ao chão.

A moça sentou sobre seu ventre, enquanto desferia vários tapas e socos nela. Estava descontrolada.

Com muito esforço, Rafael conseguiu segurá-la e a arrastou para junto do carro, enquanto Eva se sentava no chão arenoso e recompunha-se. Sangue escorria farto de seu nariz e a camiseta branca que acabara de vestir adquiria um tom escarlate onde as gotas tocavam o tecido.

Olhou fixamente a prima por um longo segundo, incapaz de acreditar naquele ataque de fúria, então perguntou:

– Por que fez isso? – seu tom de voz baixo e controlado, mas o coração aos pulos.

Camila, aparentemente mais calma, deixou o contrário surgir em sua voz ao responder gritando:

– Porque você está morta!



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