– Está bravo comigo, tio Silas?

Pés descalços, cabelos em desalinho, o rosto um pouco sujo, o nariz ainda sangrando um pouco pela briga recente com os meninos no campinho de futebol, olhar de desafio e um sorrisinho de satisfação por tê-los feito se arrependerem do que disseram, esta era a menina a qual o Sargento Silas Herrera trazia pela mão um pouco brutalmente.

Ele olhou de relance para ela, enquanto caminhavam apressados e o que viu foi o olhar de admiração e respeito que ela lhe dedicava. Apesar de tê-la pego brigando com os meninos do fim da rua, apoiada por Camila, ele não estava zangado.

O sargento Herrera era um homem severo e rígido que gostava de seguir as regras. Impunha respeito e admiração por onde passava, principalmente, para sua sobrinha e filha. Mesmo tendo de ralhar com as duas quando aprontavam ou não se deixavam ser insultadas e agredidas na rua partindo para a agressão física de seus agressores verbais, ele tinha orgulho delas. Admirava o modo como eram auto-suficientes e como encaravam a vida que tinham.

Assim como ele, elas nunca baixavam os olhos ou sentiam vergonha de suas ações, pois sempre julgavam e analisavam os riscos e as conseqüências de seus atos. Assim ele as ensinara. Mesmo quando tinha de castigá-las, sempre o fazia apenas para mostrar-lhes que ele era o adulto na sua casa.

Caminhando um pouco mais atrás deles avistou Camila, sua filha. Assim como a prima, sustentava na face um sorriso vitorioso. Herrera havia criado as duas como irmãs, uma era a sombra da outra e o que Eva fazia, Camila também fazia. Mas, ao contrário do que qualquer outra pessoa poderia pensar, ambas eram incapazes de se deixarem influenciar por terceiros, obstinadas e sinceras sempre faziam o que julgavam ser o correto. Infelizmente, para o Sargento Herrera, o que elas julgavam correto quase sempre acabava em briga com outras crianças.

Camila encontrava-se no mesmo estado lastimável em que a prima, roupas tão sujas e rasgadas que mais parecia ser uma menina de rua, nas mãos trazia uma bola de futebol, motivo pelo qual se deu a briga de minutos antes.

Caminhavam em silêncio, mas apressadamente. Quando se aproximavam do palacete, herança dos avós do Sargento, onde moravam, avistaram uma limusine preta estacionada.

Loira, de olhos azuis muito vivos e brilhantes, trajada elegantemente, com gestos suaves e medidos, sorriso cativante e meigo sempre bailando nos lábios, até mesmo quando algo não lhe agradava, assim como lhe fora ensinado na educação rígida que recebeu dos avós. Tinha em alguns momentos, o desejo de fazer as coisas diretamente, de falar tudo o que queria sem medir suas palavras para não quebrar a querida etiqueta da sociedade. Engolia muitas vezes o desejo de gritar o que pensava, mas sabia que a sua posição na sociedade não lhe permitia e, tal como lhe fora ensinado, deveria mostrar-se sempre superior. Esta era a mulher que se encontrava no interior do veículo e que fez questão de sair dele assim que avistou o Sargento Herrera se aproximar acompanhado pelas duas meninas.

Ela fixou o olhar naquela que ele trazia pela mão e sentiu seu coração bater mais forte, dominado pela emoção de revê-la depois de tantos anos. Era tão linda e ainda mais parecida com o pai do que se lembrava.

Adornada por jóias de família com valor incalculável, tanto financeiro quanto afetivo, trazia nas mãos algo de beleza e simplicidade incomparável. A rosa amarela, símbolo da amizade, para ela tinha outro significado, pois era a preferida da sua pequena Eva.

A menina olhou com certo desdém para a figura materna, um olhar que feriu a alma daquela que a gerara, mas que ela sabia ser merecido.

Após a morte de Elias Herrera, seu marido, de forma repentina e até onde se lembrava inexplicável, Maribel se viu envolvida nas garras da família. Havia cortado relações com os parentes ao fugir para se casar com o herdeiro mais velho da família Herrera, mas não conseguiu escapar deles após sua morte e a única opção que lhe foi apresentada foi a de deixar sua pequena Eva com o tio.

Agora, quatro anos depois de sua partida daquela ilha e temendo a recepção que teria por parte de Eva, ela havia decidido voltar, principalmente, após ouvir rumores sobre um possível golpe de estado. Temendo pela integridade e bem-estar de Eva, apressou-se com os preparativos para seu retorno diante dos protestos de sua avó e marido que renegavam a existência do fruto de seu primeiro casamento.

E alí estava, diante daquela que era o seu mundo e por muito tempo não passou de uma lembrança e da sensação de vazio em seus braços e coração.

A menina fez um muxoxo ao receber o abraço apertado e um tanto perfumado da mãe. Não deixou que a alegria em revê-la transparecesse em seu semblante, embora a amasse muito, queria que ela visse o quanto a havia magoado quando a abandonou. Para ela, não foi um ato tão ruim assim, pois amava seu tio e, principalmente, sua prima. Esta última de uma forma um pouco diferente dos demais seres que habitavam seu coração e mente.

Após o reencontro ansiado e nervoso, Maribel expôs os motivos de seu retorno o que provocou em Eva e Camila uma verdadeira tempestade de sentimentos conflituosos e, dentre todos, o que mais se destacava era o medo da separação. Combinaram uma fuga apenas com os olhares, enquanto seus pais conversavam sobre a situação do atual governo e os rumores que traziam aos rostos de todos os adultos um olhar pesaroso e cheio de temor. De mãos dadas, subiram sorrateiramente as escadas que levavam até o quarto que compartilhavam.

Para surpresa de Eva, suas malas já estavam prontas e, tão logo constatou isso, seu tio surgiu à porta. Olhar severo, braços cruzados sobre o peito, ele as observava. Em seu rosto um sorriso divertido desenhou-se antes que ele se permitisse emitir qualquer som.

– Conheço vocês bem demais para saber que uma fuga seria planejada assim que soubessem o motivo do regresso de Maribel. Por isso, preparei suas malas antes de ir buscá-las.

– Tio, não quero ir!

– Terá de ir. Ela é sua mãe e está certa ao querer tirá-la daqui antes que esses rumores deixem de ser apenas isso e tornem-se reais.

– Mas, não quero me separar de Camila e de você.

O olhar dele suavizou-se.

– Gostaria que as coisas fossem diferentes e que isso não tivesse de acontecer, mas com todos esses rumores, todo esse clima tenso que nos rodeia no momento, entendo perfeitamente o que se passa na mente e coração de sua mãe. Se pudesse mandaria Camila com vocês, mas me separar de você já está partindo meu coração, não suportaria ficar longe das minhas duas meninas.

Fez uma leve carícia em seu rosto.

– Mas…

– Sem “mas”. Você vai e já está decidido, não há nada que possa fazer quanto a isso. Então, por que não aproveita o tempo que ainda lhe resta para se despedir da sua prima?

Beijou-lhe a face e saiu levando as malas dela consigo.

Eva sentou na cama, os olhos fixos no chão enquanto mantinha entre as suas a mão de Camila que havia recostado a cabeça em seu ombro e o molhava com suas lágrimas carregadas de sentimentos. Antes mesmo de poder compreender o que se passava, Camila sentiu os lábios da prima pousarem sobre os seus em um beijo suave, apenas um pequeno roçar de lábios, e ouviu-lhe sussurrar baixinho um “eu voltarei” antes de se afastar e sair fechando a porta apressadamente para esconder as lágrimas que lhe vinham aos olhos.



Notas:



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2 Respostas para 1. Prólogo

  1. Que aventura! Muito bacana! Parabéns, Tattah!
    Vc foi fantástica nesta história!
    Já estou com saudades das “meninas”, Eva e Camila. rsrsrsrsrs
    Sucesso p vc, Tattah!

    • Luciene, perdão pelos anos sem resposta. Acho que não recebi a notificação do seu comentário. Perdão mesmo! Muito obrigada por suas palavras! Um beijo carinhoso!

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