Em Qualquer Lugar

Capítulo II – Meu pequeno projeto

Mas enfim, onde eu estava? Ah, sim! No Cacá, no nosso sistema e no dia da visita do Secretário de Ciência e Tecnologia. Não sei se eu falei, mas nós podemos ter subsídios para projeto de diversas formas, até do setor privado, mas, normalmente, esse não acontece, pois o setor privado não acredita em investimentos em pesquisa e tecnologia no país. Os burros acabam sempre preferindo importar algo já pronto, mas que, no fundo, é uma enorme caixa preta, acabam sempre tendo que comprar aditivos para o que foi comprado e acabam gastando mais no final. Outra forma é quando o próprio governo investe, seja na esfera federal, estadual ou municipal. No caso de hoje, nosso chefe estava tentando vender o nosso peixe para o secretário municipal. Eu havia pensado que era o secretário estadual de ciência e tecnologia. Esse já tinha ido diversas vezes lá e nada.

Como eu disse, Cacá estava ao meu lado, tentando mostrar o que ele tinha evoluído do nosso brinquedinho quando nosso chefe entrou nervoso no laboratório, dizendo que a visita tinha sido adiantada para a parte da manhã. Nunca entendi por que eles ficam tão nervosos, basta eles mostrarem o que fazemos todos os dias. Todo mundo já sabe falar sobre cada projeto de cor e salteado; o cara olha, finge que está prestando atenção, depois cumprimenta e parabeniza a todos pelo belo trabalho, vai embora e o dinheiro para a pesquisa não vem. Sempre é o mesmo que acontece.

O chefe mandou o Gustavo abrir as apresentações dos projetos já realizados e as dos projetos que estavam sendo propostos. — Aliás, tenho que apresentar o meu chefe à vocês, O nome dele é Roberto. Mais tarde falo mais dele. – Mandou chamar todo mundo, disse para o Serqueira trazer o H9, que é um robô que conduz embarcações em locais com muitos recifes, de forma mais segura através de sonar; pediu para o Garrido trazer uma nova cadeira de rodas com sensores para condução através da boca e o acessório dela que é uma viseira com sensores para a percepção do olhar do condutor, facilitando o giro da cadeira para onde o condutor está olhando. Pediu para os outros se postarem próximo aos computadores em que havia apresentações de projetos mais antigos, olhou para mim e pro Cacá e disse:

— Vocês podem… continuar a fazer o que estavam fazendo. Não se preocupem que nós apresentamos o laboratório.

Eu e o Cacá nos olhamos e vislumbrei um sorrisinho sarcástico nos lábios do Gustavo. Demos de ombro e voltamos a nos sentar, lado a lado, de frente para os nossos computadores. Nossos postos de trabalho ficam no fundo do laboratório em diagonal, de modo que, dependendo de onde se esteja, dá para ver as telas. O Cacá abriu o sistema e me mostrou que já conseguia rastrear as marcas anatômicas. Ah! O sistema que estávamos tentando desenvolver, não é inovador. Na realidade já existe, mas é muito caro. Vocês viram o filme Avatar? Pois é, eles usaram um sistema para capturar os movimentos da face dos atores para poder inserir na face dos avatares que foram criados, a partir de computação gráfica. Para que nós queríamos fazer um sistema como esse? Bem, na realidade para nós, seria para estudar expressões faciais e, a partir daí, veríamos o que nós iríamos fazer. Estávamos sem projeto e um dia conversando com o Cacá lá em casa, eu disse que gostaria de ter uma fechadura dessas que abre por comando de voz para não precisar deixar ele sentado no chão do meu corredor bêbado, enquanto abria a porta. Ele disse que por voz não saberia se conseguiria fazer, pois precisaríamos de alguns equipamentos que não tínhamos, mas quem sabe por reconhecimento facial. Aí eu falei para ele que, apesar de fazer o reconhecimento facial, ainda precisaria dar comando e ele disse que talvez através das expressões faciais pudesse conseguir e aí tudo começou.

Sentimos um burburinho em direção à porta e me virei para observar. Nosso chefe estava estendendo a sua mão para um sujeito bem alinhado e atrás dele tinham mais algumas pessoas que estavam na porta, só que eu ainda não podia divisar. Voltei a olhar para tela e o nosso sisteminha e o Cacá me disse que ele não conseguira fazer com que o sistema rastreasse todas as marcas que usamos para o experimento. No entanto, eu já conseguia identificar algumas de minhas próprias expressões nas marquinhas que foram capturadas. Pois é, eu tinha sido a cobaia e eu mesma coloquei as marcas anatômicas no meu rosto de frente para um espelho e depois o Cacá capturou meu movimento facial com três câmeras. Foi quando eu vi o Cacá olhando para a porta e o escutei falando baixinho.

— Que gata!

Olhei para a porta também e acho que, se Cacá não tivesse me cutucado eu morreria sem ar, porque nesse exato momento eu parei de respirar.

— Meu Deus! Que gata!

O Cacá me olhou como se eu fosse um fantasma, pois nunca tinha me expressado assim na frente dele e depois se voltou para o nosso computador, começando a rir.

— Para, Cacá! O Roberto vai trucidar a gente. — Sussurrei para ele e ele colocou a mão na boca para abafar o riso.

— Desculpa, mas não aguentei. É a primeira vez que te vejo com o queixo caído por causa de mulher. Já estava achando que aquela história de gay era só para eu não dar em cima de você.

Ele voltou a rir, tentado segurar o som com a mão na boca.

— Para, Cacá. Fica quieto. — Ele virou para ver novamente a mulher e eu congelei os olhos em um bonequinho redondo com a minha cara que saltava no canto da tela do computador. Esse avatarzinho minúsculo o Cacá havia feito para me sacanear e pulava toda vez que o sistema dava um erro.

— Pode me chamar de medroso ou boiola, mas essa mulher eu não encarava, não. — Ele sussurrou e eu olhei para ele, sem entender. — Além de ela ser maior que eu, ela é muita carne para o meu churrasco.

Continuei olhando para ele, desacreditada. Cacá era o tipo do cara que não tinha medo de chegar junto. Na noitada, quando ele via uma mulher que gostasse, ele chegava. Dizia que não tinha nada a perder e, se levasse um toco, ele saía fora e partia para outra.

— Já viu a mulher toda direito?! Já viu o jeito dela?! É aquele jeito de “se te pego te destruo em quinze minutos”. Não dá para arriscar a reputação de anos assim. 

Dessa vez, quem riu fui eu. Não dava para acreditar naquele garoto falando uma bobagem dessas.

— Shiiii! Tá maluca! Fica quieta que o Roberto mata a gen…

Quando eu vi o olhar do Cacá subindo acima dos meus ombros, eu gelei.

— É um sistema de captura de movimento? Interessante…

A voz era um pouco grave e ligeiramente rouca. Um perfume floral-amadeirado atingiu meu olfato e eu quase perdi meus sentidos. Levantei devagar para dar passagem ao olhar perscrutador da mulher, que tentava ver direito o nosso sistema ainda capenga e com um avatarzinho redondo ridículo, pulando na tela com a minha face estilizada. Acho que eu fiquei da cor de um catchup de tão vermelha. Depois que esse povo todo fosse embora, eu ia cometer um assassinato naquele laboratório. O Cacá ia me pagar! Ah se ia…

Minha garganta estava seca, meus olhos não conseguiam parar quietos e minha timidez não permitia que eu olhasse de perto aquela mulher linda. Podem falar! Sou uma boba, idiota e um bicho do mato.

— Quem está desenvolvendo esse sistema? — Ela perguntou e o Cacá se adiantou, estendendo sua mão para cumprimenta-la sabendo que eu tinha travado.

— Nós dois, meu nome é Carlos Eduardo e essa aqui é a Paula. — Ele apontou para mim e ela estendeu a mão em minha direção.

Eu só consegui dizer um ridículo “oi” abafado e segurei sua mão. Meu coração acelerou tanto que eu achei que, ou eu teria um enfarto, ou meus pés começariam, involuntariamente, a sambar por meu coração parecer bateria de uma escola de samba. A mão dela queimava na minha e eu sentia um frio correr pela minha coluna. Que mão linda! Alongada, macia, mas o aperto firme.  O Cacá estava certo. Essa mulher era capaz de acabar com quem quer que fosse, em apenas quinze minutos. Na realidade, ao contrário dele, eu não me importaria nem um pouco que ela acabasse comigo em quinze minutos. Não tinha nenhuma reputação a perder e estava já sem transar há um tempão. Por sinal ela poderia acabar comigo no tempo que quisesse, eu não faria nenhuma objeção.

— Meu nome é Aghata e sou a Subsecretária de ciência e tecnologia. Na realidade, sou mesmo é médica neurologista.

“Ai, meu deus”! Foi a única coisa que eu consegui pensar naquele momento.

Meu chefe se aproximou com o secretário de ciência e tecnologia e ele se dirigiu a Subsecretária.

— Aghata! O que você pescou por aqui? Te conheço e, normalmente, tem um bom faro.

— Esses dois pesquisadores estão desenvolvendo um sistema de captura de movimentos faciais. É bem interessante para diversas áreas, por exemplo; área de reconhecimento facial e gestual na segurança pública, interações sociais, aprendizagem para pacientes neurológicos. Já estava mais que na hora de termos um nacionalizado.

Ela se voltou para nós, nos perguntando.

— Qual a formação de vocês?

Eu pensei de novo. “Ai meu deus!” O Cacá se adiantou, novamente.

— Eu sou analista de sistemas e design gráfico.

— Eu sou professora de educação física. — Antes de explicar qual a razão de eu estar ali, ela se adiantou.

— Então, foi você?

— Ããã?

— Ah! Desculpe. Deixe-me explicar. Quando saiu o concurso para cá, eu quase me inscrevi. Só não o fiz porque o André, na época, tinha sido escolhido para a secretaria de ciência e tecnologia e nós já trabalhávamos juntos. Ele me convenceu a aceitar ser sua Subsecretária. Não entendi como uma professora de educação física conseguiu passar nesse concurso, sem ofensas…

— Claro! Sem ofensas. — Agora ela estava começando a me irritar e ainda por cima, vi o sorrisinho jocoso nos lábios do Gustavo, novamente. Quem ela pensa que é? Consegue um cargo por indicação e ainda vem me ofender, menosprezando minha formação!

— Vamos nos adiantar, Sr. André? — Meu chefe falou.

— André, você se importaria de terminar a visita sem mim? É que tenho um almoço importante hoje e não quero me atrasar.

“Eu tenho um almoço importante hoje! Que mulherzinha fútil!” — Minha consciência falava com uma voz estridente e irritada.

— Claro que não, Aghata. Pode ir.

— Sr. Roberto…

 Ela estendeu a mão formalmente para cumprimenta-lo. Ele a cumprimentou e ela se virou, para se dirigir a nós. Eu juro que se ela falasse mais alguma coisa da minha formação, eu quebrava a cara dela. Bem… Isso não é realmente verdade, afinal de contas ela tinha 20 cm a mais do que eu e eu odeio violência. Principalmente, com relação a minha pessoa. Imagina se eu me machucasse? Nem pensar!

O puxa saco do Gustavo estendeu a mão para ela e foi aí que eu fiquei… Mmmm… Confusa. Essa é a palavra. Ela era insuportável sim, mas dessa vez eu adorei. Ela ignorou a mão estendida do Gustavo, solenemente. O Cacá chegou a dar uma risadinha e eu dei uma cotovelada nas costelas dele para ele parar. Ela veio até nós e perguntou se poderia voltar outro dia para ver a evolução do sistema. O Cacá prontamente disse que sim e eu quase… Capotei com o sorriso que ela deu. Ela não tinha sorrido um só instante e quando fez, foi luminoso. Ela saiu, deixando aquele rastro floral-amadeirado e eu, o que fiz? Desabei na minha cadeira, me odiando por estar tendo pensamentos libidinosos com uma mulher grosseira e mal educada.

Bom, pelo menos nos pensamentos eu podia abafar a parte “do grosseira e mal-educada” e dar um rosto para as minhas noites e minhas satisfações solitárias, se é que vocês me entendem. Por que dar um rosto só? Eu podia dar rosto, corpo, mãos… Afinal de contas, as fantasias eram minhas.

— Paula… Paula…

— Ããh?

— Paula, o secretário quer se despedir de vocês.

— Senhor. — Levantei e estendi a mão para cumprimenta-lo. Ele segurou a minha mão com as suas duas mãos e falou.

— Muito bem. Você e esse moço são as pessoas que causaram boa impressão à minha Subsecretária.

— Como? Não entendi! — Eu acho que eu estava meio lesa. “O homem falou que eu e o Cacá causamos boa impressão à “mulher maravilha”, à “Xena, a princesa guerreira”, à Tomb Rider” e eu só conseguia balbuciar palavras. Que patético!

— Ela disse que voltaria, não é? Então, ela vai voltar e aí poderemos ver o que vamos articular de projetos junto com vocês.

O Cacá abriu um sorriso de orelha a orelha, o meu chefe abriu um sorriso de orelha a orelha, o Gustavo fechou a cara, eu fiquei parada e o homem foi embora. O Gustavo foi para a oficina, o meu chefe não parava de tagarelar coisas que eu não estava ouvindo e o Cacá me sacudiu.

— Você ouviu o que ele disse, Paulinha? Eles gostaram do nosso sistema!

— Ouvi. — Foi somente o que eu disse.

— Por que vocês não me falaram que estavam trabalhando em algo tão interessante? Eu poderia tentar subsídios em outros lugares, também.

Que cara de pau! Só dava ouvidos ao Gustavo, que não fazia nada além de lamber o saco dele o dia todo e coçar o seu próprio e ainda queria tirar satisfações de não termos falado o que fazíamos!

— Estávamos só no esboço de uma ideia. — Foi o que eu consegui falar.

— Depois do almoço, me mostrem esse sistema e poderemos escrever um projeto em cima dele.

Pronto, acabou a diversão de, eu e o Cacá, fazermos porque queríamos fazer e agora virou oficial. Vão dar milhões de opiniões, vão querer muda-lo para um grande sistema super multiuso com a cara de projeto NASA e vai precisar de milhões para terminar. A prefeitura vai desistir e voltaremos para a estaca zero.

*****

Quinze dias tinham se passado, briguei com todo mundo, meu chefe me deu uma advertência, mas no final, ele retirou essa advertência e concordou comigo em, inicialmente, fazermos apenas o sistema de captura. A morena gostosa, alta de olhos azuis não apareceu nesse meio tempo e eu ainda tinha as fantasias de noites solitárias, mas nem passava pela minha cabeça, durante o dia. O pessoal esfriou e, finalmente, só eu e o Cacá trabalhávamos no sistema, enquanto a maioria tinha retornado ao H9.

Era sexta-feira; eu e o Cacá estávamos discutindo a melhor forma de visualização do software, pois ele tinha a visão do design e eu do usuário. Queria algo simples em que você olhasse e soubesse logo o que a aba, assim que fosse aberta no sistema, queria mostrar. Foi quando aquele avatarzinho começou a pular no canto inferior da tela, o Cacá começou a rir e a me gozar falando: “ui, meu Deus! Que gata”!

— Eu não falei “ui” e você tá parecendo um viadinho.

Comecei a dar tapas em seu braço e ele se defendia rindo. A porta havia sido aberta e como em todos os lugares onde se deve ter segurança, ela tinha falhado, pois quando percebemos lá estava a Subsecretária de ciência e tecnologia nos vendo de brincadeira e eu nem sabia quanto tempo ela estava ali ou se havia escutado o que nós falávamos. Dei um pulo da cadeira e o Cacá quase caiu.

— Éééé…Secretária! Nós estávamos na nossa hora de lazer.

Droga! Essa desculpa foi horrível!

— Não sou secretária ainda, embora o André esteja pensando em passar o cargo, pois ele vai tentar a eleição. Disse que passaria aqui para ver a evolução do sistema. Como está indo?

Ela falou, já se aproximando de nós em passos suaves. Minha boca secou, pois ela tinha um andar sexy de felina. Não queria perguntar como ela entrou porque pareceria que éramos uns displicentes e desorganizados.

— Está bem, está legal! Você quer ver?

“Está bem, está legal! Que raio de resposta é essa, Paula? Sua falta de alguém está te deixando retardada, é”? – Pensei.

— Eu posso?

A Subsecretária apontou a cadeira em que eu estava sentada.

— Claro! À vontade! O Cacá mostra para você o sistema.

“Você pode até sentar no meu colo se você quiser”. Eu pensei.

Ela me olhou dentro dos olhos e esboçou um leve sorriso. Minhas pernas pareciam geleia, mas eu não sabia dizer se o olhar dela era bom ou ruim, só sabia que aqueles olhos me faziam esquentar toda.



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