Em Qualquer Lugar

Capítulo XII – O mundo gira… O tempo passa…

Paula

4 anos depois

— Você não vai mais voltar, não é, Paulinha?

— Está com saudades dos tapas que eu te dava, einh?!

Eu sorria, gostava quando o Cacá me ligava. Estava morando no exterior, em uma cidade pacata, mas que tinha uma universidade muito boa ligada à todas as áreas de saúde onde fiz meu doutorado e agora dava aulas, além de fazer um curso de literatura medieval. Esse era mais um hobby do que outra coisa. Quando cheguei, fui morar em alojamentos da universidade e trabalhava em um café para complementar a bolsa de estudos que eu tinha conseguido na própria universidade. Empenhei-me tanto para esquecer tudo que tinha deixado para trás — exceto o Cacá e meus pais –, que terminei meu doutorado antes do tempo, com honra ao mérito e fui convidada para dar aulas na própria universidade. Aceitei sem hesitar, muito feliz.

— Agora vai ficar difícil, Cacá. Estamos em período letivo e ainda estou fazendo um curso.

— Encontrei sua mãe e ela está morrendo de saudades!

— Eu também estou com saudades dos meus pais, Cacá, mas eles são teimosos. Já disse que enviaria as passagens, só que eles são bicho do mato e dizem que estão velhos demais para entrar em um avião!

— E você também não é teimosa? Você não quer vir mais aqui!

Toda vez que ele falava nisso, em meu peito batia uma tristeza e uma escuridão cobria meu coração.

— Você sabe que não dá.

Falei categórica.

— Meu Deus, Paulinha! Esquece isso, essa mulher nem foi vista mais por aqui. Ela nem assumiu a secretaria naquela época, você não corre o risco de encontra-la…

— Não importa, Cacá, eu não consigo mais ver esse lugar… Eu não consigo nem mais pensar em voltar para esse país. Olha! Eu gostaria de te ver, se você quiser; quando você entrar de férias eu te ajudo na passagem e você fica aqui em casa. Eu só não gostaria que você continuasse me forçando…

— Está bem. Você é teimosa mesmo, “tô” vendo que vou ter que fazer o sacrifício de viajar para o exterior às suas custas, mas se eu gostar, você vai ter que bancar.

Ri, novamente; o Cacá conseguia me dar leveza, mas conseguia também cutucar a minha ferida.

— E aí? Como é a mulherada aí? Tá pegando muito?

— Bom, se você gostar de branquela e loira que nem eu, você vai amar isso aqui. Se você gostar de frio e gelo quase o ano inteiro, você vai gostar também… Mas tem uns pubs super legais e o povo bebe até cair.

— Legal. Bebida, friozinho e mulher, nada mal. Mas falando sério, te liguei por dois motivos: um é que eu estava com saudades e sabia que não ia te convencer a vir; o outro é que o Roberto conseguiu que o instituto pagasse uma passagem para eu participar da conferência que você vai dar de gestão de projetos na área de tecnologias para o movimento humano. O que você acha disso?

— Ei, que legal, cara! Vou ver sua cara feia de novo! Eu tô super feliz! Quando você vai vir? A conferência é semana que vem, mas você podia agendar a passagem para uns quatro dias antes e a gente matava a saudade!

— Você acha que eu já não fiz isso, ô mané?! Saio daqui, na quarta-feira à noite, são onze horas de viagem, mas pelo fuso devo chegar aí ao meio dia. Vou mandar, por email, o voo e os horários. Vai ter que me tratar como um rei, einh garota! Vai ter que me levar nuns lugares legais para eu pegar muita mulher e ainda me ceder sua cama!

— Que nojo! Levar nuns lugares legais tudo bem, mas ceder minha cama para sacanagem sua, nunca! – Garlalhei.

— Tá bem! Eu suporto o seu desprezo pela minha pessoa. Eu te amo mesmo assim…

Combinamos tudo e desligamos. Na quinta-feira, fui pegá-lo no aeroporto. Abraçamo-nos e eu chorei muito ao reencontrar meu amigo. Além de minha família, ele foi o único com quem eu mantive contato. A única pessoa da minha velha vida em quem eu confiava. Levei-o em um restaurante fora da cidade que eu adorava. Era rústico, rústico só não, era bem diferente, também. O restaurante foi construído dentro de uma caverna. Isso mesmo, caverna. Os portões de madeira pesada e ferro fundido eram chumbados na entrada da caverna e bem em cima, uma placa com o nome do estabelecimento: “Caverna das Valquírias”.

— Que maneiro!

— Você vai gostar da comida também. Coisinhas bem leves como javali assado e ensopado de pato.

Eu ri quando ele colocou a mão na barriga. Sabia que ele adorava essas comidinhas pesadas e diferentes. Entramos e nos sentamos em uma mesa próxima à uma lareira escavada na pedra.

— Cara, que saudade de você!

— Também morri de saudade, Cacá! No início, eu praticamente chorava todo dia…

— Você chorava todo dia porque quis se isolar. Acho que foi bom, a nível profissional. Hoje seu nome é falado até lá, mas você não permitiu que a gente compartilhasse isso com você.

— Você sabe que eu não podia voltar. Nem consigo pensar em voltar, que dirá naquela época! Foi uma facada nas costas e tanto!

— Mas eu não te esfaqueei, nem o Roberto ou qualquer outro do laboratório, a não ser aquele canalha do Gustavo!

— Você não, mas todo mundo via que ele era o maior baba ovo e não fazia nada. No entanto, todo mundo adorava a bajulação dele, e ainda por cima, dava crédito às fofocas que ele fazia…

— Cara, apesar do que eu via naquela época, eu acho que o Roberto não se tocava para isso. Ele apenas era vaidoso e acabava ouvindo o canalha. Ele levou um puxão de tapete e tanto, quase que perdeu a chefia por conta daquilo. Depois, ele passou mal e esteve até internado.

— Eu não sabia disso.

— Você se isolou e não quis nem me ouvir durante um tempo. Todo mundo ficou mal, mas ele ficou tão abalado que, na semana seguinte, ao que aconteceu, quando você pediu exoneração, ele sentiu um negócio qualquer e parou no hospital.

— Meu deus! Eu não queria causar isso tudo!

— Você não causou nada. Todo mundo comentou que o Gustavo foi um cretino inescrupuloso e isso que levou o Roberto a enfartar. Depois, ele se afastou para se recuperar, mas quis voltar a trabalhar. Ele disse que não valia a pena ficar remoendo em casa.

— Não foi só o Gustavo que foi cretino, não. O André e a vagabunda da Aghata!

Eu estava alterada e quase gritei.

— Não fale dessa forma, você não é assim.

— E como eu devo chamar a mulher que foi comigo para a cama e depois me passou a rasteira?

— Sabe, Paula. Na época, eu estava com muita raiva e pensava assim também. Mas eu soube tempos depois, por fontes seguras, que ela nem chegou a assumir a secretaria. Não deixou nem que os papeis que havia assinado para assumir fossem despachados para o prefeito assinar. Falaram que ela rasgou na frente do André e cortou relações com ele. Ela o considerava como um pai.

— Eu não quero mais ouvir, Cacá. Não me importa o que ela fez depois, me importa que ela consentiu com tudo naquela entrevista. Naquele momento, ela estava de acordo.  Se depois ela se arrependeu eu não sei, mas não vou conseguir mais dar meu coração, inteiramente, à uma mulher, por culpa dela.

— Está bem, está bem… Não vamos mais falar nisso, porque eu quero é saber se você vai me apresentar umas gatas, amigas suas.

Cacá mudou de assunto rapidamente e eu consegui relaxar. Depois do almoço, fomos para casa e eu preparei o quarto de hospedes para o Cacá dormir. Ele estava realmente cansado da viagem e eu voltei para a faculdade, pois tinha alguns alunos de mestrado para orientar.

Apesar de estar feliz com meu reencontro com o Cacá, constatei tristemente que aquele assunto ainda mexia comigo. Nesses quatro anos, cheguei a ficar com umas três garotas, mas só por uma noite. No dia seguinte, eu me sentia vazia, seca e acabava inventando uma desculpa para não encontra-las, novamente. No ultimo ano, minha solidão e meu vazio foram tanto que cheguei a sonhar com as noites de amor que tive com Aghata. Acordava suada e literalmente molhada entre as pernas. No entanto, minha raiva, por ainda sentir essa emoção, mesmo em sonho, era tanta, que chorava horas a fio até adormecer, novamente. Eu queria sentir-me livre disso, mas nunca encontrei essa paz. E agora o Cacá me dizia coisas que poderiam mexer com o casulo confortável que eu criei para mim.

Esses assuntos não permearam mais as nossas conversas e os dias foram passando agradáveis e eu não estava mais tão sombria na alma como nos últimos anos. O Cacá era, realmente, um amigo especial.

O congresso começou e eu dei minha primeira palestra e, logo após, participei de uma mesa redonda. Havia uma mulher sentada no extremo da sala que me olhava com atenção e muito intensamente. Comecei a me incomodar, pois seu olhar era de escrutínio, mas ela nada perguntava. Quando passamos ao coffee break me aproximei dela, pois estava intrigada com a mulher. Ela parecia ser mais velha do que eu apenas uns três anos e eu comecei a pegar um café ao lado dela, tentando ver o nome em seu crachá. Ana Maria Fragoso. Não me lembrava de ninguém com esse nome.

— Está gostando do círculo de palestras?

Perguntei para tentar me aproximar. Ela olhou para mim e sorriu um sorriso franco e estendeu sua mão para se apresentar.

— Muito interessante, embora não seja a minha área. Meu nome é Ana Maria Fragoso. — Segurou o seu crachá. — E sua palestra, realmente, foi muito interessante.

— Você disse que não é a sua área. Qual a sua área?

— Sou ginecologista-obstetra.

— Realmente, não está muito perto de sua área. Mas a gestão de projetos em si, pode ser aplicada a qualquer área. Espero que esteja aproveitando algumas coisas, mas por que se inscreveu nesse congresso?

— Na realidade, eu estava aqui na universidade para visitar umas áreas relacionadas à pesquisa em genomas, foi quando eu vi o mural anunciando este congresso e bem… Uma amiga minha é médica de fronteiras, médica comunitária em países pobres e como ela já havia falado seu nome e havia falado de sua competência, resolvi assistir, já que vou ficar mais dois dias esperando ela chegar… Quando disse que viria para cá, ela resolveu me encontrar, pois há muito tempo que não nos vemos, mas ela só poderá vir depois de amanhã, então… Aqui estou!

Ela sorriu e seu sorriso era aberto e sereno. O staff anunciou que as palestras iriam recomeçar e eu me despedi dela com um aperto de mão. Foi agradável. Não pensem que senti nada a nível sexual, aliás eu estava começando a pensar que nunca mais sentiria tesão por ninguém na minha vida. Como se eu estivesse marcada em meu corpo a ferro com o calor do corpo de Aghata. Os meus sonhos com ela me mostravam isso. Como se não bastasse ela ter quase estragado minha vida profissional outrora, continuava estragando a minha vida sentimental.

Terminei de assistir as palestras ao lado de Cacá. Quando terminou, levantamos e fomos caminhando para próximo da parede que dava para a porta. Todos pareciam estar com pressa e paramos para que o tumulto diminuísse. Perguntei se ele queria sair. Que pergunta idiota, ele sempre queria sair.

— Aonde você vai me levar?

— Estava pensando num pub aqui perto, a gente nem precisa de carro.

— Eu topo. Depois a gente volta de metrô assim como viemos.

— Foi isso que pensei até porque, a gente não pode chegar tarde, pois amanhã tem uns caras legais que eu quero assistir no congresso.

— “Caxias”!

— “Malandro”!

Rimos ao mesmo tempo. As brincadeiras voltaram a acontecer entre nós muito rapidamente e a convivência era tranquila e agradável. Chegamos ao pub. Apesar de ser verão, as noites eram frias. O Cacá chegou esfregando as mãos.

— Nossa! Essa cidade não esquenta nunca não?

— Não. No inverno, as temperaturas vão abaixo de zero.

— Que aconchegante. Só por isso tenho que pedir algo para esquentar.

— Que tal chocolate quente?

Abri um sorriso fingindo, como quem falava sério. Ele riu dizendo que não caia mais nessa.

— Eu vou pedir uma vodka.

— Pois eu vou pedir um Bourbon.

— Que chique! Mudou muito, einh, garota! Você não tomava mais que duas cervejas e só gostava de vinho.

Eu baixei a cabeça, porque nunca mais tomei vinho. Essa era minha bebida preferida, mas era a bebida preferida da Aghata também. Lembrava-me muito ela…

— É… Acho que aqui a gente precisa de coisa mais pesada.

Ele me abraçou. Acho que percebeu o que eu sentia.

— Não fica assim. Não vamos estragar a noite, tá bom?

— Falou. Então, vamos beber.

Pedi meu Bourbon e ele a sua Vodka. Sentamo-nos em uma mesa nos fundos e ficamos conversando até que ele olhou para a porta e viu alguém entrar.

— Não olha agora, mas acabou de entrar aquela mulher lá da palestra que você disse que era ginecologista. Eu acho que ela tá atrás de você.

— Deixa de ser bobo! Todo mundo da faculdade indica esse pub para os visitantes. Na certa, ela pediu uma informação de um lugar para ir e falaram desse aqui.

— Ela se sentou no bar e está de costas para a gente. Vê se não é ela mesmo?

Eu me virei para reparar e, realmente, era ela. Estava sozinha e tomava sua bebida com a cabeça baixa.

— É ela mesma. Deve estar querendo tomar só alguma coisa. Pelo jeito, não quer dar papo para nenhum estranho.

— Vai lá chama-la para cá!

— Por quê?

— Ora, porque… Porque você conversou com ela e ela não deve conhecer ninguém. Cadê sua hospitalidade?

— Esqueci-me dela do outro lado do planeta.

— Ah! Para! Você não consegue ser assim nem que você morresse e reencarnasse.

Eu sorri e olhei novamente para a tal da Ana Maria.

— Tá bom! Eu vou lá.

Levantei da mesa e fui ao encontro dela. Toquei seu braço de leve para não assustá-la e dei um sorriso, quando ela me olhou.

— Oi!

— Oi!

— Eu vi que você chegou sozinha e, eu e meu amigo, estamos com uma mesa ali. — Falei apontando para a mesa. — Você quer se sentar conosco?

— Claro! Eu estou cansada e sentar nesses banquinhos altos não é muito confortável. Mas não vou atrapalhar vocês?



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