Em Qualquer Lugar

Capítulo XX – Estranhas atitudes

Paula

Durante essas semanas, eu cheguei a pensar que nunca mais veria Aghata. Eu não podia ficar perguntando, pois o líder do acampamento, pelo que eu soube, tinha verdadeiro horror dela. Soube, por comentários, que ela já havia estado nesse acampamento e que houve uma discussão feia entre ela e o Fingal, nosso líder. Quando entrei para o programa, pelas perguntas que fizeram, eu sabia que não podia expor a verdadeira intenção de estar ali. Tomei cuidado para não me expor e fiquei observando mais do que falando. Na realidade, não conseguia falar com muita gente mesmo, apesar de saber três línguas, definitivamente, nenhuma que eu sabia se parecia com a língua nativa. Minha sorte era que, com os trabalhadores das forças de paz, eu conseguia me comunicar. Já começava e me acostumar com o ritmo das palavras e alguns nativos também já haviam aprendido uma ou outra língua dos enviados. O que achei mais graça e me encheu de alegria é que os nativos lembravam com muito carinho de uma médica chamada Gata. Isso mesmo, eles só a chamavam de Gata, foi quando eu descobri através de uma auxiliar que eles só pronunciavam o nome da Aghata assim. Eu fiquei contente, pois era uma feliz analogia em minha língua natal do nome da mulher que eu mais amei em minha vida.

Comecei a desconfiar de algumas atitudes do líder do acampamento e, um dia, quando ele saiu, eu entrei na cabana dele e contatei a Astrid. Falei das minhas desconfianças e apesar das preocupações dela, eu disse que ficaria, pois começava a me envolver com o trabalho. Mais alguns dias e minha vida se encheria de felicidade, novamente. O Fingal recebeu um recado que chegariam mantimentos e também uma médica. Ele enlouqueceu e eu quase morri de tanta alegria: a médica era a Aghata. Continuei na minha, não ia me expor e pôr tudo a perder, até porque eu achava que ele estava metido em muita coisa errada.

Quando o comboio chegou e todos foram atrás, eu permaneci afastada. Meu coração batia tão rápido, que se eu corresse, era capaz de cair fulminada com um enfarto. Ela desceu do caminhão e eu não conseguia respirar direito. Ela estava linda, se eu não estivesse tão certa de que o Fingal era um cara do mal, era capaz de cair nos braços dela e beija-la até o fim da minha vida. O Fingal a recebeu e a provocou até não poder mais; ele era irritante, mas ela se manteve sem responder as suas provocações. Se eu não tivesse visto e se alguém tivesse me contado, eu diria até que não era ela. Ela costumava ser arrogante nestas situações e, normalmente, não levava desaforo para casa. Quando ele falou que ela não teria lugar para dormir, mais do que depressa, ofereci a minha própria cama para que ela dormisse junto ao meu corpo. Mal sabia Fingal, o favor que ele me fez.

Conversamos sobre o que estava acontecendo até entrarmos na cabana. Quando ela me abraçou, eu não podia pensar em lugar melhor no mundo para estar. Eu, finalmente, estava em seus braços. Chorei, sorri e me convenci por fim que a minha vida era estar junto dela. Quando ela me beijou, eu não pensava em mais nada, só sentia o meu amor transbordar através de minha boca.

Alguém me chamou lá fora e nos separamos. Fora de seus braços eu me sentia pela metade. “Deus! Como a amo”! 

— Entre, Garnet.

— Então, já conheceu a Aghata!

Aghata o abraçou, sorrindo.

— Vocês já se conheciam?

— Paula, todos que tem mais de três anos no acampamento conhecem a Aghata. Essa aqui foi a única que se atreveu a dar umas porradas bem dadas no Fingal! – Ele gargalhou.

Eu olhei para Aghata sem compreender e ela baixou os olhos, meio envergonhada.

— Ele chegou ao acampamento bêbado, um dia, e quando eu vi, ele estava praticamente forçando uma das enfermeiras. Eu não precisei pensar muito para decidir o que eu faria.

— Ela bateu tanto nele que ele ficou de molho uns três dias, mas depois disso ela pediu para sair.

— Eu não poderia mais ficar. Não concordo com ele na direção do acampamento, mas parece que ele tem boas relações nas forças de paz.

— E o que a fez voltar, Aghata?

— Bem, eu… O fato é que depois do ataque, fiquei um pouco insegura. Pensei que retornando para um acampamento mais distante das linhas de frente, me devolveria a confiança.

— Seja bem vinda, minha amiga, mas fique longe de Fingal, ele vai querer tirar à forra. Até hoje, todo mundo olha meio torto para ele e acho que ele pensa que é por sua causa.

— Será que ele não se toca do que ele fez?

— Paula, a única coisa que ele se toca é o que está abaixo do seu umbigo.

— E por que ninguém faz nada?

— Já tentamos. Já enviamos reclamações, algumas pessoas foram transferidas, por conta disso. Paramos de reclamar, pois estamos aqui para ajudar e cada vez que alguém é transferido, nossa equipe fica desfalcada.

— Paula, é melhor voltarmos aos nossos afazeres. Mais tarde, quando pararmos para jantar, poderemos conversar melhor.

A Aghata segurou, gentilmente, o meu braço como uma forma de me acalmar e me chamar atenção para eu parar de falar sobre o assunto.

— Ok! Eu tenho que voltar para a enfermaria. Estão precisando de ajuda com algumas crianças que chegaram hoje muito desidratadas e desnutridas.

— Eu também vou para lá. Seja bem vinda, Aghata! Quando eu puder, te ajudarei na construção da cabana. Precisamos ampliar mesmo o espaço, algumas pessoas estão dormindo juntas no mesmo catre.

— Ok! Eu vou falar com o Fingal.

Ela foi para a cabana de Fingal e eu voltei para a enfermaria. Depois a vi sair, pegar algumas ferramentas e ir em direção à mata. Cada vez que a olhava eu sorria como uma boba e ficava me perguntando, se algum dia estaríamos bem, sem nenhuma confusão nos envolvendo. Durante o resto do dia, enquanto eu ajudava na enfermaria, fiquei relembrando tudo que aconteceu em minha vida desde que conheci Aghata.

Parecia que já tinha se passado mais de vinte anos, de tantas coisas que aconteceram, de tudo que eu senti e como eu cresci. E eu que era uma garota alegre e risonha, me transformei em uma mulher, cheia de responsabilidades e meio triste. Triste por viver algo que era uma grande confusão, provocada por um destino torto, mas que me fez crescer como pessoa. E eu que lá no início achava que minha vida não tinha nada demais! E as flores que eu tanto amava? Fiquei triste em saber que muita gente como essas pessoas aqui, só conheciam algumas flores que davam nas savanas em época de chuva. Essas épocas eram escassas, mas havia chovido alguns dias antes e pude ver a mais linda flor que algum dia eu sonharia em ver: a flor do baobá. Era uma arvore que florescia entre os meses de maio a agosto, mas quando a florescência ocorria era uma verdadeira festa, pois ela permanecia aberta somente por uma noite. Eu fiquei feliz em poder participar disto com essa gente sofrida. Mas agora eu tinha que me concentrar, pois essas pessoas dependiam muito de nós.

À noitinha, eu ajudava o pessoal da alimentação para fazer o jantar coletivo dos trabalhadores e vi a Aghata se aproximar com o semblante cansado. Cumprimentou alguns de seus amigos antigos e se sentou em volta da fogueira que fazíamos para afastar alguns animais indesejados. Apesar do acampamento ter cercas de madeira, às vezes ocorria algum incidente. Terminei meus afazeres e quando as pessoas estavam se servindo, me aproximei de Aghata e sentei ao seu lado.

— Então, foi assim que você viveu durante esses anos?

Ela olhava fixo para o fogo e sorriu.

— Apesar de sentir uma angústia incessante pelo que nos aconteceu, era aqui que eu me sentia útil e encontrei certa paz…

Olhei seu rosto de perfil. Um rosto de expressões fortes, de olhos vivos e de azul intenso. Um rosto que transmitia segurança e energia. Um rosto que eu amei desde o primeiro dia em que eu vi. Um rosto que me mostrava sua alma.

— Eu sinto tanto ter sido tão irascível…

— Eu sinto tanto ter sido omissa e fraca…

— Nós duas erramos, não foi?

— Foi… *** Mas nós duas vivemos muito e aprendemos muito, também…

Minha vontade era abraça-la e deixar transbordar todo o meu amor, mas naquele momento, eu não podia. Suspirei fundo e me levantei dizendo que traria comida para ela. Quando me levantei, vi que Fingal estava nos observando. Afastei-me, fingindo despreocupação. Quando fui colocar comida nas tigelas de madeira, vi Fingal se aproximar de Aghata. Ele sentou, calmamente. Os dois conversavam tão tranquilamente que até estranhei. Deixei que conversassem durante um tempo e depois me aproximei com as tigelas na mão.

— Boa noite, Fingal!

— Boa noite, bela do acampamento!

Ele tinha um sorriso irônico que me irritou.

— Vou deixar as pombinhas à sós para conversarem. — A risada que deu era sarcástica. — Vejo que já se arrumou, Aghata! Estou gostando da sua nova fase.

Sentei-me ao lado de Aghata, que permanecia imparcial. Era como se ele nada tivesse falado.

— Esse cara é um escroto!

— Ele não me afeta mais, Paula.

— É. Vi que conversavam, amenamente…

— Eu preciso conversar com ele amenamente.

Confesso a vocês que um hirto de desconfiança permeou meu rosto. Não gostei do que senti.

— O que há, Aghata? Você não é tão passiva assim!

Comecei a ficar nervosa, quando ela me olhou de forma dura.

— Você ainda não confia em mim, não é?

— Aghata, não é isso…

— Tudo bem, tudo bem… Só quero descansar agora.

Ela se levantou e se encaminhou para a cabana. Tá certo que eu achei estranho essa forma dela se portar, mas só queria saber o que estava acontecendo, o que eles tinham conversado. Definitivamente, não entendi nada! Quando cheguei à cabana, ela estava deitada virada para a parede. Acomodei-me ao seu lado, afinal o catre era meu. Ele era pequeno e tive que colar meu corpo ao dela. Eu gostei disso, até porque eu não sabia por que ela estava tão irritada comigo, só queria saber o que estava acontecendo! Era meio engraçado eu fazer “a conchinha” com uma mulher tão grande. Ri de meus próprios pensamentos. Ela se virou para mim, querendo saber de que eu estava rindo e percebeu o descompasso de nossos corpos. Começou a rir também.

— Tá legal, vem para o lado de dentro. Desse jeito aí você não vai dormir direito. Eu não consigo ficar irritada com você muito tempo mesmo…

Eu troquei de posição com ela e ela apoiou seu corpo no meu. Era bem melhor! Suspirei com o contato e ela me abraçou.

— E por que você ficou irritada comigo? Eu não entendi.

— Por que você questionou a minha reação com o Fingal?

Falávamos baixo, pois algumas pessoas já entravam na cabana para dormirem.

— Porque você nunca foi passiva. Pelo que eu me lembro, com caras como esse, você não costumava falar tão brandamente, nem baixar a cabeça para provocações…

— A não ser quando eu deixei o André conduzir aquela entrevista, né?!

— Não foi isso que eu quis dizer. O que eu disse é que você é uma pessoa de atitude. Não combina com você deixar que falem besteiras a seu respeito.

Falei com indignação. Para mim, o passado estava morto. Não queria relembrar essa passagem de nossas vidas, senão, nunca mais teríamos paz.

— Paula, não posso bater de frente com ele. Na realidade, quero que ele confie em mim…

— O que você está tramando, Aghata? Não quero que você se coloque em riscos. Não suportaria te perder, novamente.

— Não estou tramando nada, só quero sair com você daqui tranquilamente, sem que pensem que somos um perigo para o esquema deles. Por tudo que eu já passei e já vivi, tenho certeza que tem algo muito podre aqui. Se eles intuírem que nós percebemos alguma coisa, nós estamos fritas.

— Você acha que seriam capazes de nos matar?

— Pelo que Astrid me falou, você ouviu que o próprio governo atacou nosso outro acampamento. Nós duas somos nada perto disso tudo.

Eu estava tão feliz de ter Aghata novamente comigo, que confesso que me esqueci de tudo que eu ouvi e tudo que percebi de errado nas forças de paz. Encolhi-me nos braços de Aghata e ela me aconchegou mais. Meu catre era realmente pequeno, assim que a forma que dormimos não soava muito estranha aos olhos dos outros. Aliás, parece que há muito tempo essas coisas aconteciam. Ajeitávamo-nos como podíamos, pois cada vez mais perdíamos espaço para a população que só aumentava nos acampamentos.

— Está acordada ainda, mas está muito quieta…

— Estava pensando… Essa gente não merece isso…

— É… Não merece… Dorme que, amanhã, mais descansadas, a gente conversa.



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