Em Qualquer Lugar

Capítulo XXIII – Bonança

— Amor! Onde você está?

— Aqui no ateliê.

Cheguei por trás e a abracei cuidadosamente, pois sua cirurgia ainda estava recente. Olhei para a argila que estava sobre o prato giratório, onde se podia ver uma massa arredondada, com uma face sendo esculpida.

Aqueles últimos dias foram os mais loucos e mais difíceis de toda a minha vida. A decepção que eu tive quando pensei que Aghata tinha me traído com o projeto, não chegou aos pés da dor de vê-la quase morta em meus braços, se esvaindo em sangue de um tiro em seu ventre. Eu e Garnet tentávamos, de todas as formas, mantê-la consciente e confortável para que ela chegasse a um hospital em que pudesse ser tratada, adequadamente.

Vou resumir um pouco o que aconteceu na vida de Aghata, depois que ela entrou para o programa de paz, para vocês poderem entender como tudo aconteceu.

Na noite em que eu e Aghata fizemos amor na cabana recém construída, ela me contou que já sabia de todo o esquema do diretor das forças de paz e do chefe de estado; contou também que Garnet era um contato da polícia internacional, eu me desesperei. Aghata me falou que tinha intuído as operações ilegais dentro das forças de paz, pouco mais de dois anos atrás. Garnet viu que ela estava percebendo e para que ela não atrapalhasse a operação da polícia internacional, ele pediu uma minuciosa investigação de sua vida e depois se apresentou, fazendo uma proposta para que ela o ajudasse a desarmar o esquema e para que conseguissem prender os cabeças: Padox, o diretor das forças de paz no país e Hasnar, o chefe de estado.

 Quando Aghata entrou em conflito com Fingal, Garnet já tinha muita coisa contra eles para prendê-los e resolveu que seria melhor afastar Aghata. Sendo assim ela foi para outro acampamento que foi atacado e quase que dizimado pelos asseclas de Fingal. Ele estava realmente com raiva dela e acabou gerando desconforto para o governo e para o diretor das forças de paz. As ações dele estavam começando a refletir sobre eles, fazendo-os perder a confiança nele. Quando Aghata soube que eu estava no acampamento, procurou os contatos da polícia internacional e pediu que a colocassem de volta no programa da polícia. Eles já tinham uma emboscada armada e a intervenção de Aghata poderia ser até bem vinda para distrai-los da operação. Ela procurou Padox com uma proposta de novos contatos, dizendo que Fingal era um cara “muito aberto”, por assim dizer, quando estava bêbado e com raiva. Desta forma, ela colocou a credibilidade de Fingal em jogo e disse que queria participar do esquema e, ao mesmo tempo, eliminar para eles “o problema Fingal”.

Padox e Hasnar não precisaram pensar muito para ver a vantagem em coloca-la de volta no programa das forças de paz e continuar assim com suas atividades extras, com um aumento de seus lucros. Bem, o resto vocês já sabem, a não ser a parte em que a Aghata estava batendo em Fingal a valer e que ele, naquele momento, alcançou uma pistola que carregava em um coldre em seu tornozelo, atirando em Aghata e atingindo o seu ventre. Para o azar dele e sorte de Aghata, Garnet chegava para intercepta-los e vendo a ação de Fingal, atirou matando-o.

Na operação para prender Padox e Hasnar, eles “reagiram” e foram mortos. Até hoje, eu não sei se essa história contada pela polícia internacional é realmente verdade, mas ninguém mais além deles, Fingal e Greg sabia da ação de Aghata; como todos eles foram mortos, Garnet falou que nós não precisaríamos nos incomodar com represálias.

Um helicóptero da polícia internacional nos pegou, sob o comando de Garnet, para levar Aghata para um hospital. Ela passou quase três dias entre a vida e a morte e eu quase fui junto com ela. Se ela morresse, eu acho que não conseguiria suportar. O meu coração está tão preso, tão ligado ao dela que se o dela parar, acho que o meu para junto. Podem achar piegas e exagerado, mas é assim que eu sinto. É uma força tão grande, que eu sinto, tanta alegria em vê-la e tanto aperto quando eu estou longe… Podem sacanear e falar “que dramática”! Eu não ligo. Hoje eu só ligo mesmo é para essa luz que me preenche, quando meus olhos se encontram com o intenso azul dos dela e com o sol que irradia de seu sorriso.

Ok! Vamos voltar. Eu cheguei em casa e sabia que ela estava fazendo alguma coisa para se distrair. Ela é uma excelente médica e uma péssima paciente.

— Amor! Onde você está?

— Aqui no ateliê.

 Como eu disse antes, subi e a abracei por trás. Ela se voltou para mim com aquele lindo sorriso e me beijou. Que beijo gostoso!

— Comeu alguma coisa?

— Não, vim direto da universidade. Eu queria almoçar com você.

— Então, vamos ter que pedir comida porque não tem nada para comer. Você sabe que essa não é uma das minhas melhores habilidades, não é?

Eu sorri, pois realmente quando ela tentou fazer alguma coisa para mim, ela sujou um monte de coisas e acabou queimando o assado.

— Eu já deixei umas coisinhas engatilhadas, antes de sair.

— Que mulher prendada! – Aghata falou rindo.

Ela estava me sacaneando e eu bati de leve no seu braço. A minha bobeira por amá-la chegava a tanto que eu até achava engraçadinho…

— Vamos, engraçadinha desastrada. Vou esquentar o nosso almoço.

Virei-me para descer e ela quase me pegou no colo.

— Desastrada, é? Você vai ver a desastrada.

— Me coloca no chão, Aghata! Você não pode fazer força, sua maluca!

— E quem disse que eu te pegando no colo, estou fazendo força?

Ela esfregou o nariz em meu pescoço, já me colocando no chão e eu me arrepiei toda. Estava difícil deixar que ela se recuperasse, viu? Cada vez que ela me segurava e fazia um dengo, eu pegava fogo! Ela não ajudava muito, vivia me provocando. Dava até raiva.

Comemos, conversando sobre o nosso futuro. Eu não queria me mudar novamente, tinha minha vida estabelecida e ela disse que era do mundo, então, que não havia lugar melhor para ela começar de novo do que aqui. Pela primeira vez, durante anos, me deu vontade de visitar minha cidade, minha família e meus antigos amigos. Combinamos de, nas minhas férias da universidade, visitar Ana, Cacá e meus pais.

Aghata – Vinte dias depois do hospital

Já tinha mais de vinte dias que eu havia saído do hospital e estava na casa de Paula. Apesar de meu corpo ainda estar se refazendo, minha alma estava plena. Tudo valeu a pena. Desde a traição do André até as agruras sofridas durante todos esses anos nos acampamentos das savanas. As pessoas que conheci, as vidas que salvei com meus conhecimentos médicos, as falcatruas que ajudei a desmantelar e o meu grande amor de volta à minha vida. Talvez tivesse que ser assim mesmo ou talvez pudesse ter sido diferente, não sei… Não conheço nada dessa coisa de destino, mas posso jurar que o meu e o de Paula já estavam traçados desde sempre. Eu a amo e hoje é o que me importa.

Passava horas no ateliê da casa de Paula, ela tinha uma veia artística muito boa. Além de gostar de leitura, havia construído esse pequeno ateliê para suas pinturas. Contou-me que desenvolveu esse hobby depois que veio para cá. Praticava Tai chi chuan todos os dias de manhã e, quando não dava tempo, o fazia a noite. Comecei a acompanha-la aos poucos, pois ainda tinha muita dificuldade devido à gravidade do meu ferimento e posteriormente da cirurgia. Não fazia os movimentos mais complexos, porém já conseguia executar os mais simples. Eu tinha um bom conhecimento dos movimentos de tai chi  devido a minha prática do Kung Fu, mas era um verdadeiro exercício da minha paciência, já que eu sempre optei pelas práticas mais agressivas. No ateliê eu trabalhava em argila, uma atividade que fui aprimorando no meu período de andanças pelas savanas. Era o que eu fazia lá para matar o tempo e o material eu conseguia ofertado pela própria natureza.

A Paula chegava todo dia da universidade para almoçar comigo e eu estava doida para fazer amor com ela, porém ela me dizia para esperar até o meu médico-cirurgião me liberar para atividades mais intensas. Isso estava me deixando maluca! Naquela manhã, eu havia estado no consultório de meu médico para mais uma avaliação e ele me liberou para várias coisas inclusive… Sexo! Muito bom isso. Um lindo, maravilhoso e gostoso sexo como minha mulher!

Cheguei em casa àquela manhã e resolvi fazer uma surpresa para a Paula. Encomendei um almoço em um dos restaurantes mais conceituados da cidade e arrumei a mesa primorosamente, tudo regado a um maravilhoso vinho. Enchi a hidromassagem e coloquei uma espuma de banho com um aroma silvestre. Apesar de saber que nos meteríamos na banheira, tomei um bom banho, me perfumei, coloquei um robe de seda e um conjunto de renda negro.

— Amor! Já cheguei!

 Eu a observava pela vidraça da varanda e ela estava divina. Nunca me cansava de olha-la. Serena, segura e de uma leveza que, para mim, parecia que levitava em torno de tudo.

— Eu estou aqui! — Falei.

Ela olhou através da vidraça e sorriu. “Por todas as forças da natureza, que sorriso!” — Eu pensei. – “Por Deus! Como eu poderia ser mais feliz”!

— Hey! Você anda querendo me matar, não?

Ela chegou até mim, me abraçando e pousando as mãos delicadas sobre a peça de seda em minha cintura.

— Você não sabe o quanto eu ando me segurando para que a sua saúde seja completamente reestabelecida? — Me beijou suave, mas transbordando paixão.

— O que você não sabe, minha pequena, é que hoje você pode melhorar substancialmente a minha saúde! — Falei entre seus lábios roucamente.

— Isso quer dizer que você foi ao médico… — Me beijou novamente. — E que temos um pouco mais de autonomia? — Mais um beijo.

— Um pouco mais de autonomia não. Eu tenho total liberdade para amar minha mulher! — Falei com propriedade a enlaçando e beijando-a com ardor.

— Hum! Isso não vai prestar!

— Hum! Isso vai prestar e muito!

Eu falei, já a empurrando para dentro e em direção à escada, sem deixar seus lábios órfãos. Não sei exatamente como chegamos ao quarto, mas estava muito bom. Eu me envolvi em seus beijos e ela já estava praticamente sem roupa. Suas mãos passeavam pelo meu corpo e eu só via sua boca e seus seios em minha boca… Maravilha, não? Bom… Maravilha! Mas não exatamente por que eu conduzia… Eu nunca consegui medir forças com ela nesses assuntos. Na realidade eu me sentia a tal, mas ela é quem ditava as regras, mesmo que sutilmente. Ela sabia exatamente como me deixar à sua mercê… E eu? Eu amava tudo nela! Sem tirar nem por. Ficava louca só de ouvi-la pedindo coisas que eu jamais imaginei serem pedidas, ditas e feitas tão naturalmente.

Depois que eu me descobri a amando e depois que tudo aconteceu nos separando, eu cheguei a ter um relacionamento com outra mulher. O fato é que eu até senti tesão, mas durante o relacionamento, eu não sentia a naturalidade, o desejo e a emoção de estar com alguém. Entendi que eu era homossexual, mas entendi também que eu só amava uma mulher: Ela! Deixei para lá as minhas necessidades, pois não valia a pena e agora… Que coisa louca! Ela me tocava e me pedia, me beijava e me instigava e eu? Bem eu dava, beijava, tocava com essa ansiedade insana que deixava todos os meus sentidos torpes. Isso tudo porque era ela!

— Preciso de um banho.

Ela falou entre meus lábios, mas já me empurrando para que eu parasse.

— É pra já, senhorita!

Ela riu muito.

— O quê?

Eu a segurava pela cintura, com uma expressão intrigada em meu rosto.

— A primeira vez que eu ouvi você me chamar de senhorita, foi quando você deu aquele esculacho no Roberto lá no laboratório onde eu trabalhava e eu fiquei imaginando que tipo de pessoa ainda chamava alguém assim nos dias de hoje, lógico que lá na nossa cidade, porque aqui todo mundo me chama de senhorita. Na realidade, eu achei uma gracinha…

Seu sorriso com aquele narizinho arrebitado era lindo.

— Isso é um sinal de respeito, sabia?

Ela gargalhou. Por que as pessoas riem disso? Eu achava, oras!

— Que foi?  Não gosta? Então, não falo mais assim…

Falei com falsa contrariedade, pois sabia que ela me beijaria para me ver feliz. Não demorou a sentir meus lábios cobertos pelos dela em um beijo para lá de delicioso. Não teve como não desfazer a minha carranca e voltar às carícias.

— Ei! Ei! Ei! Vamos parar senão não tomo meu banho e quero estar tão cheirosa quanto você.

Ela me empurrou, novamente.

— Pois eu preparei um banho para você ótimo.

Apontei a hidromassagem.

— Ok! Então a se-nho-ri-ta vai lá para baixo e me espere.

— Como assim?!

Falei com certa decepção e ela sorriu maliciosa.

— Eu quero me aprontar, quero me perfumar, quero estar gostosa e quero te fazer uma surpresa, além de estar com fome e querer comer a entrada antes do “prato principal” e da “sobremesa”.

Confesso que eu me emocionei por ela se lembrar da primeira vez em que nos amamos. Quem não se emocionaria? Ela nunca se esqueceu de mim realmente, nunca esqueceu nosso amor e nossos momentos juntas. Meus olhos enchiam de lágrimas e eu me virei para não deixar que ela visse minha emoção. Ela me segurou pelo braço e me fez encará-la.

— Ei, meu amor! Não quero que você esconda nunca de mim o que você sente, pois eu não quero nunca mais esconder de você o que eu sinto e o que eu sou.

Ela me beijou nos olhos e me abraçou apertado. Essa mulher era parte de mim e isso era um fato. Eu sorri e assenti com a cabeça, me virando para ir para a sala. Voltei-me novamente.

— Quando você descer, eu te conto a história do “senhorita”.

Voltei-me novamente e saí.

Paula

Terminei meu banho mais rápido do que de costume, considerando que eu sempre adorei banho de hidro, mas não queria fazer a Aghata esperar muito. Eu não queria esperar muito! Estava ansiosa por ela, pelas mãos dela, pela sua boca, pela sua pele e… Pelo seu passado… Que coisa foi aquela de dizer que me contaria a história do senhorita? Bem, como eu disse antes, eu era uma pesquisadora por profissão e por natureza também. Minha veia investigativa me deixou com a pulga atrás da orelha.

Passei hidratante no corpo, vesti um conjunto de renda preta como o dela. É isso mesmo! Eu havia reparado pela transparência de seu robe de seda. Quem em sã consciência não repararia aquela mulher toda gostosa vestida daquele jeito? Porém, optei por um robe atoalhado para não deixar transparecer meu corpo, pois não queria distraí-la. Sentia que Aghata queria mais a minha atenção para sua história do que propriamente nosso momento íntimo. Esse momento viria com certeza, mas ela precisava de mim. Eu sabia disso e aprendi que ela costumava sufocar suas emoções por não querer dividir com ninguém, mas aprendi nesses poucos dias de convivência com ela, que ela estava cada vez mais debelada com seus sentimentos. Desci as escadas e observei seu olhar risonho. Abracei-a e pousei meus lábios sobre os dela em um leve e suave beijo.

— Vamos comer?

Perguntei passando a mão pela minha barriga, quase indicando que era só isso que eu queria naquele momento. Ela elevou sua sobrancelha num gesto tão apreciado por mim.

— Está com muita fome mesmo! Pelo visto a “entrada” está mais esperada que o “prato principal”!

— Deixa de ser boba, eu quero te namorar sem pressa.

Gargalhei da expressão que ela fazia. Fiz uma cara maliciosa para que ela relaxasse da preocupação.

— Ok! Ok! Temos aqui um ma-ra-vi-lho-so pato ao molho de poivre.

Ela destampou os pratos e lá estava o nosso prato da “primeira vez”. Eu sorri e meus olhos encheram de água. Ela podia negar com todas as forças, mas era uma romântica irreparável. Estendi a mão para que ela sentasse.

— Vamos fazer como manda o figurino. Primeiro, a entrada. — sorri.

— Já entendi.

Começamos a comer e realmente o prato estava maravilhoso. Lembrei-me de cada momento junto a ela naquela noite em que fizemos amor pela primeira vez. Parecia que tudo que tínhamos passado depois disso tinha sido encoberto por uma bruma de passado e tempo. Parecia que não fazia mais parte de nossa história e sim de algum conto de filme de horror.

— Você disse que ia me contar a história da “senhorita”. Que história é essa?

Ela parou com o garfo na metade do caminho para a boca e depois inspirou pesadamente.

— Não quero estragar a nossa tarde. Depois falamos disso.

— Não. Tudo que é relacionado a você me interessa. Nada estragaria a nossa tarde se eu conhecer mais um pedaço de você. Entenda que eu a amo e se o que você contar é a seu respeito, eu vou querer participar. O sexo eu adoro com você, mas o que me move é meu amor e isso inclui tudo que você é.

Ela inspirou novamente.

— Está bem. Vamos lá.

Ela inspirou outra vez passando as mãos pelos cabelos.

— Acho que é um assunto um pouco pesado, mas se você quer…

— Eu quero.

Falei com firmeza e me levantei, pegando-a pela mão para que sentássemos no sofá da sala. Acomodei-me em umas almofadas e puxei-a para que ela se acomodasse entre minhas pernas, pousando sua cabeça em meu peito. Comecei a acariciar seus cabelos vastos e negros deixando-a a vontade para começar a falar a sua história. Depois de alguns minutos de silêncio, ela pareceu relaxar para falar.



Notas:



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