Em Qualquer Lugar

Capítulo XXIV – A felicidade existe – Parte I

Continua Paula —

— Essa minha história só começa, quando meu pai morreu. Eu tinha uns oito anos. Ele era motorista de caminhão e muitas vezes, fazia viagens longas. Minha mãe vivia para a casa e sempre foi muito amorosa comigo, meu pai também, mas não era muito presente pela sua profissão. Quando ele chegava, sempre trazia algum presente, por menor que fosse para mim e para minha mãe. Vivíamos com certa dificuldade, mas éramos felizes. Um dia, meu pai dormiu dirigindo. A notícia de sua morte nos chegou pelos noticiários…

Ela deu uma pausa e minha respiração quase parou. Ela nunca tinha falado de sua família, embora tivesse dito que não tinha ninguém.

— Bem, minha mãe não tinha como nos sustentar, pois nunca tinha trabalhado na vida. Tentou emprego em vários lugares. Empregada doméstica, atendente, faxineira, mas ninguém queria dar emprego a alguém que nunca trabalhou. Um dia, ela me disse que arrumou um emprego, só que era à noite. Eu era criança e não me atinei. Depois de um ano, minha mãe disse que nos mudaríamos, pois nossa casa era alugada e ela estava namorando outro homem. Meu padrasto era um homem truculento e boçal. Após um ano morando com ele, ele começou a chegar tarde em casa e bêbado. Depois de mais seis meses, ele começou a bater em minha mãe. Eu falava para ela larga-lo, mas hoje eu compreendo que ela fez o que fez para me sustentar…

Os olhos de Aghata marejaram e, apesar de estar em uma posição em que pouco dava para ver de seu rosto, sabia que as lágrimas estavam banhando aquela face por mim tão amada. Apertei-a em meus braços e nada falei. Ela permaneceu em silêncio alguns minutos, talvez rememorando esses dias de sua vida.

— Certo dia, eu cheguei em casa depois da aula… Eu estudava em um colégio do governo, próximo à nossa casa. Minha mãe me falava que eu deveria estudar, para que nunca acontecesse comigo o que aconteceu com ela… Eu era uma boa aluna, mas…

 Ela inspirou, novamente.

–… Nesse dia, ele bateu muito em minha mãe. Ela já estava desacordada, eu enlouqueci! Já tinha quase onze anos, mas era grande para minha idade. Ele estava muito bêbado, não percebeu a minha presença, eu o empurrei e ele bateu com a cabeça na quina da pia… Os vizinhos chamaram a ambulância… Ele morreu em decorrência de um edema, devido ao traumatismo crânio-cefálico. Minha mãe morreu logo depois, devido a hemorragia interna pelos traumas sofridos com a agressão. Antes de a levarem para o hospital na ambulância, ela me falou quase em um sussurro de voz. “Minha filha, não deixe que ninguém dite sua vida, você é forte e inteligente. Cresça e ganhe o mundo como jamais eu e seu pai pudemos fazer. Seja feliz e faça a felicidade, senhorita”. Ela me chamava de senhorita quando queria a minha atenção.

Ela fez mais uma pausa e eu já estava chorando, silenciosamente.

— Eu fui mandada para uma instituição para menores órfãos. No processo instaurado para apuração do ocorrido, fui inocentada por apenas reagir em defesa de minha mãe e o ato que causou a morte dele foi considerado um acidente sem intenção. Odiei os meus primeiros anos lá. Era revoltada e briguenta. Um dia, consegui fugir e fui parar nas ruas. Conseguia dinheiro fazendo biscates, mas minha raiva era cega. No início foi difícil, pois sempre tinha alguém querendo se aproveitar de mim, mas aprendi a brigar e era maior que a maioria dos meninos de rua da minha idade. Estava há quase um ano nas ruas. Sempre conseguia tomar banho, dormir, comer em algum bar em que eu me oferecia para auxiliar na limpeza após o expediente, eu tinha quinze anos e era corpulenta, já tinha as curvas de mulher feita. Um dia, um homem de um bar quis me violentar, bati tanto nele que até hoje eu não sei o que aconteceu… Fui presa e me levaram novamente para a instituição para menores. Foi nesse tempo que conheci Senhorita Marli…

Ela deu uma pausa e sorriu. Isso aliviou meu coração por perceber que sua juventude não havia sido só tristeza.

— Ela era dura e, ao mesmo tempo, cheia de amor. Diferente das outras diretoras que eu tinha conhecido nessas instituições. Ela não dava mole, sabia que muitos de nós tínhamos passado por muitas coisas ruins, mas não nos tratava com hipocrisia, pois a maioria de nós, se deixasse, montava mesmo. Ela conseguia ser severa na medida certa e conseguia ser compreensiva da mesma forma. Ela era como poucos, pois a maioria que trabalhava nesses lugares ou eram condescendentes demais por achar todos pobrezinhos, ou eram rudes demais por achar que éramos um bando de delinquentes.  Até hoje eu não sei como ela conhecia tão bem a natureza humana, porque ela sabia exatamente quando dava uns apertos maiores ou quando afrouxava o laço.

Aghata sorriu mais uma vez e relaxou seu corpo em meu abraço, fechou seus olhos e se calou. Deixei o tempo que fosse para ela continuar a falar. Vi que era algo muito doloroso para ela se lembrar dessa época, mas intuí que ela queria… queria não, ela precisava se expor. Sentia como uma necessidade latente desde que nós retornamos. Apesar de estar se reestabelecendo, ela estava nostálgica e extremamente calada. Era como se tudo que passamos retornasse a algo que ela era incapaz de expurgar. Após alguns minutos, ela voltou a falar.

— Ela me chamava de “Senhorita” quando queria a minha atenção, assim como minha mãe e pedia para eu chama-la de Senhorita Marli. Ela, um dia me explicou que não era casada, e quando uma mulher não é casada recebia o título de senhorita, depois de casada o título que recebia passava a ser de senhora. Dizia que era sinal de respeito e que eu a chamasse de senhorita só o dia que eu achasse que a respeitava. A partir daquele dia, eu passei a chama-la de Senhorita Marli e não mais de Dona Marli como eu a chamava antes. Ela sempre me chamou de Senhorita Munhoz. Um ano depois ela se casou e eu já não era tão rebelde. Sempre a procurava para minhas dúvidas e inseguranças. Ela me incentivava cada vez mais a estudar e dizia que eu estava destinada a uma vida de conquistas. Falava para eu fazer meu próprio destino. Eu já a chamava de Senhora Marli e não mais de senhorita. Quando completei dezoito anos, me vi perdida, pois sairia da instituição. Ela não tinha filhos, não conseguiu tê-los, não sei se por ela ou pelo marido. Ela me chamou para morar com eles, pois eu havia passado no vestibular para medicina por incentivo dela e ela achava que eu daria uma ótima médica. Seu marido era médico e ele já me conhecia, pois ele sempre ia lá na instituição e sempre foi um exemplo para mim. O nome dele é André.

Suspendi minha respiração, momentaneamente. Fiquei chocada! Então essa é a história do André com a Aghata? Minha cabeça estava em um turbilhão e eu fiquei imaginando como a de Aghata ficou todos esses anos, depois do que ele fez na secretaria com ela. Ela retomou o relato, vendo que eu estava estarrecida.

— Vivi na casa do André e da Marli, durante toda a faculdade. Aprendi muita coisa e sempre conversava com a Marli, ela era uma verdadeira mãe para mim e o André, apesar de sempre manter certa distância, quero dizer, ele sempre colocou que eu era uma pessoa bem quista, mas não exatamente como a Marli. Ela me tratava como uma verdadeira filha, me tratava como uma pessoa querida. A gente sente a diferença, mas eu entendia, pois eu já tinha uns dezesseis anos quando ele me conheceu. Ao longo da faculdade, eu me destaquei e comecei a ganhar a credibilidade dos professores, ele era professor também, mas só o peguei quando eu fiz minha residência, aí ele realmente constatou a minha capacidade. Estreitamos mais ainda os laços. Tornei-me uma médica conceituada e resolvi viver por conta própria. Nunca deixei de visitar ou de procurar a “Senhora Marli”.

Ela fez outra pausa e sorriu novamente.

— Para mim, nesse momento, era só Marli, e eu para ela, era sua filha. Para mim, hoje, ela é minha mãe. Entenda bem, eu não estou negando minha mãe de sangue, ela fez tudo que ela podia por mim e a tenho no meu coração para sempre. O nome da minha mãe verdadeira era Maria e não poderia ser melhor.

Aghata sorriu outra vez. Mas era um sorriso triste e nostálgico, ao mesmo tempo.

— Não poderia ser diferente, não?! E para terminar essa história da “Senhorita”, naquele dia na festa do André, quando eu e você nos beijamos pela primeira vez, a Marli não estava, pois ela estava em um tratamento de câncer de mama, e estava muito cansada. Apesar de tudo que eu conversei com ela, ela se sentia inadequada para acompanhar o André, pois ela tinha feito uma cirurgia para retirada do tumor e, consequentemente da mama, tinha perdido os cabelos pelo tratamento, e ela ainda passaria por outra cirurgia de reconstrução do seio. Depois tudo aconteceu muito rápido na secretaria, culminando com o André fazendo aquilo comigo. O fato é que ela não conseguiu aceitar e entender o que o André fez, mas ele não admitiu o erro. O casamento deles já estava deteriorando e aí, naquela turbulência toda, ainda peguei uma traição do André com uma assistente da secretaria. Não contei para a Marli naquela época, pois queria que ela se recuperasse, mas antes disso, ela pediu a separação. – Aghata suspirou, cansada. – O André não quis aceitar, pois estava em plena campanha e já tinha perdido o meu apoio. Jogou-me na cara e fez chantagem emocional. Disse que eu não era nada sem ele, mas a Marli ficou ao meu lado e ele usou todo seu conhecimento político para não deixar nada para ela. Ele tinha conhecidos no judiciário e, realmente, ela ficou sem nada na separação.

— Meu Deus! Que monstro!

O rosto de Aghata não era de raiva, mas de amargura.

— E eu ainda achei que ele era meu segundo pai. Fico pensando como eu pude me enganar e manchar a integridade moral do meu verdadeiro pai assim…

Acariciei de leve seus braços. Um afago de força para aquela imensidão de dor. Senti-me tão minúscula imaginando que toda a minha infância difícil, sem dinheiro e humilde que meus pais viviam, mas que eles me deram muito amor e forças para as minhas conquistas, era uma enorme benção em comparação ao que Aghata viveu.

— Ela não está sem nada. Eu nunca deixaria isso acontecer! Ela mora em minha casa e administra a minha clínica. Nunca fechei minha clínica. Mesmo na época em que estava envolvida na política com o André, eu nunca pensei em desfazer dela. Na realidade, apesar do André sempre me falar que não precisava mais me preocupar com a clínica, ele até me incentivava a vender, eu nunca quis, pois eu adorava clinicar e sempre pensei um dia em voltar. Que ironia, hoje ela prospera alicerçada em meu nome.

Seu sorriso agora era de orgulho.

— Ela sabe por onde você andou? — Eu perguntei.

— Ela é a única que sabe cada passo que eu dei, cada sentimento que eu tive e cada coisa que eu vivi e realizei. A Ana também, mas para Marli eu sempre fiz questão de comunicar tudo. A “Senhorita Marli” sempre me falou para nunca deixar a “Senhorita Paula Atanar” morrer em meu coração… Ela sempre disse que a “Senhorita Paula Atanar” seria a minha paz e minha felicidade um dia… Ela me conhece melhor do que eu mesma me conheço. Quando ficamos a primeira vez, eu conversei com ela. Nem o André sabia. Eu perguntei como eu poderia estar sentindo coisas tão fortes por uma pessoa que eu praticamente não conhecia. Eu sempre fui muito prática, muito racional e isso não fazia sentido para mim. Ela me respondeu que o dia que fizesse muito sentido deixaria de ser sentimento.

Ela sorriu e se voltou para mim. Beijou-me quase que solenemente. Nunca fui beijada com tanto carinho, tanto cuidado e tanto amor. Essa mulher foi tudo que eu mais amei durante anos de minha vida e me sentia decepcionada com atitudes das quais ela não tinha a menor culpa. Pelo menos a culpa dos atos em si. Eu fiquei imaginando se o destino quis que eu amadurecesse e que ela compreendesse a roda da sua própria vida para que nós pudéssemos nos encontrar novamente. Ela me olhou ternamente.

— Sabe que eu sempre a vi como um anjo?

Ela falou, mas eu não compreendi. Virei levemente minha cabeça de lado e enruguei minha testa com uma expressão de incompreensão.

— Eu sempre olhei para você e sempre vi tanta ingenuidade perante as cruezas da vida, sempre a olhei com esse sorriso sereno que acalmava meus instintos mais rebeldes, que eu pensava se era possível alguém não ter nenhuma maldade real no coração. Hoje eu sei que é verdade. Você é meu anjo. Você pode ter se magoado, pode sentir tristeza perante as coisas e atitude das pessoas e da vida, mas você nunca gostou da agressão. Você se retirava e sofria sozinha.

Sorri mais uma vez para ela. Ela podia não acreditar em si própria, mas era ela que era meu anjo.

— Sabe de uma coisa?

Ela me olhou inquisitiva.

— O que?

— Seu anjo está doido para te comer todinha!

Ela gargalhou gostoso.

Nota: Pessoal, esta história está próxima do final. Mais um capítulo, na próxima semana, e Aghata e Paula terminarão de contar a história de amor delas. Por enquanto, vamos aproveitar mais um pouquinho deles nesse capítulo. Boa leitura!



Notas:



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