“Seu primeiro e-mail me chegou como uma enorme surpresa. Um simples ‘olá’ depois de ter lido meu comentário num site de contos lésbicos e começamos a manter uma relação de amizade compartilhando algumas ideias. Fui cedendo espaço aos poucos e me vi numa situação inusitada para meus paradigmas ferrenhos. Dei-lhe o número de meu celular, meu endereço, e em minha mente extremamente vulnerável, me deixei apaixonar… Tanto que comecei a imaginar nosso romance sem me preocupar com a viagem perigosa na qual estava embarcando, sem garantias da chegada, muito menos da volta”.

O bendito relatório estava pronto. Olhei pro relógio: duas da madrugada. Fui pro quarto, tomei um banho, e deitei. De tão cansada, não me vesti. Tentei me manter acordada, preocupada com sua demora. Não sei quanto tempo se passou até eu receber o peso de teu corpo sobre o meu. Teu cheiro misturado com um cheiro de cereja… “Endless?”… Sussurrou em meu ouvido… “Love…” Respondi ainda grogue de sono, estava escuro, me virei para te ver… E vi… Teu olhar brilhando e sabia o que estava por vir. Acariciei seu rosto com carinho, beijei tua testa que amo, e levantei. Você deixou o corpo cair no colchão enquanto eu vestia meu pijama. Peguei meus óculos e fui pra cozinha. A criançada dormia tranqüila. Preparei teu leite para evitar tua dorzinha de estômago. Quando voltei pro quarto você saía do banho com uma expressão estranha. Acompanhei teus movimentos e as escovadas no cabelo “intocável”, colocando o relógio para despertar, ajeitando o edredom e, neste momento, te entreguei a caneca. Ouvi tua voz seca pronunciar: “fugindo de mim, linda?”… Te olho da minha maneira peculiar e respondo: “não de você, mas da frustração que é nunca terminar o que se começa. Não por mim, mas por você que fica arrasada quando acontece, e isso me mata. Prometi esperar teu momento, mas prometi, também, que seria ‘nosso’ momento. Aconteceu algo hoje na balada que te fez estar determinada, mas não se trata de determinação… Não é só prazer… sei como termina, Love… não merecemos isso”. Sem mais palavras sai do quarto e fui pro escritório. Liguei o notebook e procurei algumas músicas pra relaxar…THANK YOU – DIDO…Sorri. A música me disse muito de algumas situações… Lembrei do dia em que aceitei tua amizade… Essa amizade diferente que construímos… Pra suas amigas sou alguém com quem divide as despesas… Aceitei tuas regras… Só me interessava estar perto de você. Foi pensando nisso que teu cheiro me encontrou… “Vai dormir, Love…” disse sem te olhar…”Não consigo”. Você falou com a voz dengosa que eu conhecia bem. Meu coração disparou, girei a cadeira e encontrei você fragilizada… “Vem cá…” te chamei pro meu colo, afastei teu cabelo do rosto e te olhando, percebi que nada posso contra ti… Aceitei mais uma vez a minha condição de te amar acima de tudo. Te levei pra cama, você me circundou com braços e pernas, reclamou de algo que não compreendi e teu sonzinho me acalmou o ser… Dormi contigo…

Acordei nove horas. Você ainda enroscada em mim. Saí de teu corpo com muito sacrifício, te deixando agarrada ao meu travesseiro. Precisava arrumar suas coisas de viagem, preparar nosso café e o das crianças. Tirei o relógio do despertador porque você, apesar de precisar que ele desperte, se irrita profundamente quando ele toca, e eu tenho um jeitinho todo especial de te acordar. Me distraí fazendo sua mala quando seu celular toca. Não costumo pegá-lo em nenhuma hipótese, mas aquela era diferente. Levei-o para a sala e vi o nome… Aquele nome… Atendi educadamente e disse que você dormia. “Ela” me perguntou a que horas você viajaria e deixou recado: “diz a ela que ligue pra mim antes de sair… Pra conversarmos sobre ontem…”. Desligou. Fiquei ainda um tempo olhando pro aparelho. Corri pro quarto para devolvê-lo antes que você… Tarde… Me pegou com ele na mão… Fez uma cara de eto. Estremeci… Verificou de quem era a chamada e se irritou. Me deu lição de moral e eu já chorava… Não pela bronca, mas pelo telefonema esclarecedor sobre o que acontecera na noite passada. De repente me vi dizendo: “sua mala já está pronta… Vê se falta alguma coisa… Ela… Ela deixou recado… Para você ligar… Pra conversar sobre ontem… agora vou comprar a comida dos filhotes…” Sua palidez denunciou a gravidade daquelas palavras… Eu quis sair pra te deixar à vontade…

Quando voltei você já estava pronta… Mas os olhos denotavam que havia chorado. A dor que eu sentia era tanta que não conseguia falar absolutamente nada… “Mirian, eu…” não deixei que falasse. Te abracei forte e beijei tua testa, teus olhos, teu nariz… Encostei minha testa na tua… ”Boa viagem, minha vida…” Fui pra cozinha dar comida pros meninos, deixando minhas lágrimas livres enquanto acarinhava-os… Nossos filhotes… Nosso tesouro. Ouvi a porta bater e a dor tomou conta de mim. Seriam dias de batalha, seriam dias de conflito na espera de sua volta, quando te contaria o meu grande segredo e seria o melhor momento… O único… O que decidiria tudo que estivesse relacionado a nós… Quando você voltar…

Hoje é um dia especial, não pelo fato de você estar voltando (isso também), mas porque é uma data especial para mim: o dia em que aceitei morar contigo… E hoje você teria que saber o que andei fazendo de minha vida, enquanto você viajava pelo mundo, os dias de solidão, os dias de saudade, todos concentrados no meu objetivo. Fui às compras, mas antes dei uns telefonemas pra deixar tudo encaminhado como teria que ser. Estava nervosa, ansiosa na verdade, pensando na sua reação. Teria que dar certo sim… Nós merecíamos, ainda mais depois da despedida difícil. Comprei coisinhas que você adora. Comprei tua cervejinha sabor cereja… Só duas… Frutos do mar… Velinhas aromáticas… Meu semblante neste momento ganhou um ar pesado pensando na noite que viria. Comprei um cd que você comentou que queria (música eletrônica) e voltei pra casa.

Nove horas da noite e tudo pronto. Deixei os filhotes na minha irmã e só os pegaria na manhã seguinte, queria privacidade total. Ouvi a porta se abrindo e o meu coração chegou a boca, quase sufocando. Você estava linda, entrando e jogando as chaves da porta na mesinha de centro. Me viu dando um sorriso que me desmontou toda…Que saudades do cheiro, da presença,  da voz gostosa.Você veio pra mim e tocou meu rosto…”Então, como está tudo por aqui? Cadê meus filhotes? Tá tudo tão calmo…” você continuou acariciando meu rosto e eu só podia me perder nestes castanhos olhos…”Que cheiro bom é esse que vem da cozinha? Frutos do mar… Você só faz quando…Alguma data que esqueci?” preocupou-se, e eu te impedi de continuar se desculpando…”Não, não é uma data que você esqueceu, é uma data que eu não posso esquecer…” neste momento a campainha toca… “Está esperando alguém?” você pergunta com expressão séria… “Sim…” fui até a porta e recebi a encomenda que acabara de chegar… “Agradece o Sérgio, amigo…”… meu segredo acabara de chegar. Te fiz sentar no sofá, peguei a caixinha que recebi e pus na palma de sua mão. Comecei falando com emoção incontida… “Hoje faz um ano… que você me convidou para estar aqui todos os dias, junto de você… Hoje faz um ano que renasci das cinzas graças a teu apoio forte, teu carinho desimpedido… Hoje faz um ano que trabalho como burro de carga, muitas vezes me privando de tua companhia e da dos filhotes… Hoje faz um ano que decidi alcançar um objetivo na vida e está na hora de saber se consegui.  Isto (fechei tua mão com a caixinha) é o resultado de meu crescimento como ser humano e a realização de um sonho partilhado… Isso aqui é…” a campainha tocou de novo e eu sabia que não fazia parte da comemoração. Agora eu é que estranhei o toque. Você levantou e foi atender deixando a caixinha na minha mão. Me ergui e o que vi foi a resposta real a minhas expectativas… Ela, a mulher que ainda tem seus sentimentos, que mexe com teus sentidos mais profundos, ali em pé, na sala, no ambiente que preparei para poder te contar meu segredo e lá estava a resposta. Eu simplesmente disse boa noite e pedi licença, indo para o quarto de hóspedes. Meia hora depois você já estava do meu lado, enquanto eu pegava algumas roupas e metia numa mochila… “O que você está fazendo?” me perguntou ao ver que arrumava uma bagagem… “Estou indo pra casa…” respondi sem te olhar, pois se o fizesse não teria forças para ir… “Mas, aqui é sua casa…” interrompi bruscamente… ”Não! Aqui é SUA casa!”… Passei a mão no rosto, angustiada com a situação dolorosa e passei a olhá-la fixamente. Tinha o rosto rubro e as mãos contorcidas num gesto nervoso. Segurei-as fazendo com que se sentasse na cama junto comigo. Novamente peguei a caixinha e lhe entreguei. Olhou pra mim com uma enorme interrogação na expressão assustada… “Abra…” eu disse em voz forçada pela emoção. Você o fez e retirou de lá dois chaveiros com algumas chaves. Um deles tinha a carinha da gata Marie da Disney que você amava… Você amava gatos… Tínhamos cinco… ”Este é seu…” ela observou o outro que tinha o rosto enegrecido e sombrio da Fera, também personagem da Disney… “Era assim que você me chamava quando começamos a nos corresponder pela net, lembra? Eu era arredia, sem tato… Muitas vezes te chateava com minha síndrome da caverna…” peguei este chaveiro e coloquei no bolso da calça, ri tristemente e sua expressão continuava emudecida, esperando por mais explicações… “Aquela casa na praia que vimos no primeiro passeio que fizemos juntas quando cheguei do Brasil… Quando me disse desse teu sonho de possuí-la… também se tornou o meu e agora ela é nossa… se você quiser, é claro!” voltei a arrumar minhas coisas… “Mas acho que agora é um pouco tarde, não é?… Vai dar uma chance a ela e eu não posso te pedir para não fazê-lo…” continuava a colocar desajeitadamente  meus pertences na pequena mochila… Senti teu abraço forte em minhas costas… “Sinto muito, Endless…” me virei com calma e lhe segurei o rosto encarando-a demoradamente… “Não sinta por mim…” beijei-a na testa e saí dizendo que pegaria os filhotes na tarde do dia seguinte…

Depois de duas semanas, minha abstinência de você esta no limite. Eu e os filhotes aproveitávamos o sol de manhãzinha na praia. Give era a mais velha e a sua mais querida e a mais fresca também… Ri achando vocês bem parecidas… A gata siamesa tinha uma pose e tanto, odiava areia da praia, pode? Para um gato comum isso era surpresa. Os tri-gêmeos caramelados se engalfinhavam uns com os outros e Branca, nossa persa da mesma cor, olhava ao redor a procura de algo. Me perdi assim, em pensamentos lúdicos, quando minha gata rainha lentamente se levantou e começou a sair de sua toalha, pisando com certa cautela a areia branca que tanto repudiava indo em direção a casa. Era inacreditável! Virei-me para segui-la com os olhos e meu ser inteiro se empertigou diante da emoção de te ver vindo em nossa direção. Pisquei algumas vezes temendo ser aquilo uma miragem, uma ilusão de ótica, um delírio, mas não era… Era mesmo você num vestido longo e colorido, óculos escuros, cabelos desprotegidos sendo castigados pela brisa forte do mar… Agachou-se e apanhou nossa filha do chão, fazendo-lhe os carinhos prediletos, soltou-a na toalha e foi se aproximando devagar… “Oi…” disse quando já estava a menos de meio metro de mim e se aproximando até literalmente se colar no meu corpo, se livrou dos óculos e me olhou. Neste momento eu era uma estátua … ”Veio… veio… ver… as crianças…”… gaguejei como uma menininha assustada… “Sim… e você também…”… Emudeci por alguns segundos… ”Ah… certo… eu ia… ia… ligar…” continuava o gaguejo sem me controlar… ”Ia?…” disse com olhar sarcástico e malicioso, sim, você sabia como me deixar louca, sentia prazer nisso. Por alguns segundos constrangedores eu me pronunciei meio estabanada… ”Então como vocês estão, a vida deve estar boa agora, ela… ela tá te fazendo feliz?” disse isso tudo numa velocidade impressionante, quando recebi teu sorriso divertido que me deixou um pouco irritada, só um pouco… Amava seu sorriso e vê-lo depois de tanto tempo só conseguiu me fazer bem… “Ela se foi…” o sorriso safado continuava lá como se isso não importasse à mínima… “Por… por… por quê?” a distância entre nós já não existia… “Disse-lhe que iria para casa…” as palavras foram ditas praticamente dentro de minha boca quando o beijo se fez imperioso e definitivo. Sabia que retomaríamos a mesma velha amizade. Quando nos separamos, permanecemos num abraço carinhoso… “Acho que a família vai aumentar mais uma vez…” você me olhou curioso e com um gesto pedi para olhar nossa filhota Branca, engalfinhada com um gato pretinho que depois descobrimos se tratar de uma fêmea a quem você chamou de Plita (Preta em ehol).

“Love, por favor…” era a décima não sei quantas vezes que eu te pedia… “vai pro banho! Vou te trazer um chá…”  você nem se movia. Voltei da cozinha e coloquei o chá na mesinha do lado… “Love…” chamei de novo e ouvi um palavrão? Sim, aquele que me arrepia quando você diz, mas dessa vez me irritou… “Você precisa tirar a lente de contato!” moveu-se pro outro lado dizendo que não tinha condições. Virei-a de volta e disse que tirava pra você, então ficou arredia… “Preciso dormir!” quase grita. A minha respiração já não era normal… “Deveria pensar nisso antes de aceitar o convite de suas amiguinhas pra esticar a noite, saindo direto do aeroporto e nem passou em casa…”  fui pegar os apetrechos das lentes e sentei de novo na cama… “Abre o olho!” você resmunga… “Não…”… Meloso e dengoso… “Abre!” já tava com os dedos forçando suas pálpebras e enfiando o dedo da outra mão no olho, pegando a lente enquanto você cuspia palavras dizendo que eu queria cegá-la… “Uma já foi…” tentei o outro olho, você me impediu… “Quer furar meu olho?!”… Respirei fundo… “Até que agora não seria má idéia! Tudo bem! Vai fazer pirraça! Ótimo! Nada de chazinho! Nada de abraço de polvinho! Nada de beijinho! Vou dormir na sala!” pegava meu travesseiro e lençol, quando sinto sua mão segurar a minha… “Espera…” dengosa e melosa de novo. Abriu o olho para que eu pudesse retirar a lente… “Boa menina…” te levantei e te deixei no banheiro, enquanto pegava sua roupa de dormir e seu roupão, quando entrei no banheiro e te disse que o roupão estava lá, de supetão, você abre o box. Congelo ali, tendo a visão de teu corpo nu… Olho em teus olhos e lá estava um brilho de desejo inicial, mas logo vi o medo em teu gesto de se cobrir rapidamente com o roupão. Sai batendo a porta e indo para a sala com o coração na boca…precisava parar aquilo…precisava parar a dor…

Saí de casa em direção ao mar. Ventava forte, mas a lua cheia indicava o caminho até a praia.  Cabeça confusa e não era a primeira vez, tão pouco seria a última. Ela provocou? Não se deu conta? Sabe que preciso de preparação para vê-la daquele jeito, quando faço massagens na banheira, quando lavo os cabelos dela… Sorri, lembrando de como fica irritada com o chão molhado quando faço isso. Hoje não… Hoje foi diferente… O que tá acontecendo comigo? Nunca reagi assim… Demorei até perceber que sentia muito frio. Voltei… Você dormia… Tomei um banho rápido e deitei. Fiquei olhando seu rosto e me parecia muito cansada. Sua expressão dizia. Agarrou-me de repente em um abraço forte… “Não me deixa…” aquela frase, e seu corpo relaxou unido ao meu, então concluí que esta era minha missão: estar com você, te preparando, te ajudando a entender para que um dia encontrasse a felicidade que tanto busca. Sei que nosso pacto continua… Você escolheu e eu aceitei, ainda não sou o seu amor… E amanh

“Love…” disse beijando teu pescoço… ”Acorda, vida, vamos dar uma volta com os filhotes, eles sentem tanto sua falta… Love?” você resmunga muito e me abraça mais… ”Apronta tudo e leva para a praia, Endless…” responde sem ao menos abrir os olhos. Eu levanto e digo sem mais nem menos “Vamos levá-los pro parque com balões que eles amam estourar e pipoca…” eu sorrio e você vira pra mim meio etada… ”Parque? Você tá louca? Não se leva gatos ao parque! Cães, sim” retruquei veementemente…” Ninguém vai me dizer onde levar meus filhotes! Eles são tão educados ou mais que os cães! São nossos e quero ver quem vai me impedir…” entrei no banho, saí e te encontrei com eles na cozinha, dando comidinha, falando com eles. Fiquei admirando a cena, pedi que fosse se aprontar, porque sei que demora muito. Deu tempo de preparar tudo e te esperar.

Lá fora, vi você na garagem procurando o carro. Buzinei e você olhou imediatamente, abrindo o sorriso lindo que amo quando está satisfeita com o que vê. Veio em direção ao carro, eu desci para abrir a porta pra você… “Não acredito…” soltou com um sorriso gostoso… ”Desde quando está dirigindo?…” te olhei como sempre gosto: dentro do olho… ”Desde quando foi o seu desejo, minha vida… pra facilitar… pra te poupar de cansaço desnecessário… pra te fazer feliz… Ao parque!”… Quando liguei o carro e tentei sair, você segurou meu rosto com carinho e me beijou a boca. Pus minha alma nesse beijo… Você se afastou e me olhou séria e pra quebrar o clima, eu disse: “Se soubesse que receberia tal agradecimento, dirigiria com cinco anos de idade…” gargalhou e me chamou de palhaça… “Só pra você, amor…” respondi.

O parque estava cheio. Dia de sol… Sábado… Você estava linda de óculos escuros, chapéu que comprou em Veneza para passear de gôndola. As crianças se enroscavam, paravam para ver as bolas e as crianças comendo pipoca. Ficamos assim por mais ou menos meia hora quando decidi comprar algo para comer e os balões dos filhotes. Give, como sempre, ficou ao seu lado, e os outros se curtiam, curtiam a grama. Pedi pra você olhá-los enquanto eu ia comprar as coisas, mas não dei mais que três passos quando ouvi um miado estridente. Voltei rápida quando vi um cara xingando nossa Plita…”Sai pra lá bicho nojento!” afastando-a com os pés. Não sei bem o que aconteceu depois. Quando vi, estava socando a cara do maldito, enquanto ouvia sua voz implorando para eu parar. Foi então que percebi o rosto do rapaz sangrando e minhas mãos inchadas. Tudo rodopiava na minha frente… “O que foi que fiz?” me perguntava olhando pra você, pros nossos filhotes, pro rapaz que saiu correndo… “O que fiz?” olhava pras minhas mãos e sentia nojo delas, queria arrancá-las fora. Você tentava me acalmar, mas eu não te ouvia. Saí correndo. Queria me afastar com medo e vergonha. Peguei o primeiro táxi que vi e sumi dentro dele.  Fiquei numa praia a uns dois km de casa. O celular tocou… era você…quis atender, mas não agüentava olhar minhas mãos, imaginando qual situação me faria agir assim com você ou com nossos filhotes. O choro veio com força tamanha a dor que sentia. Que bicho libertei naquele parque? Deveria ter conversado com o rapaz, quase um menino… Deus, que fúria é essa que me toma assim do nada? Caminhei até em casa… Fiz menção de entrar, mas não o fiz.  Já era quase noite, dei meia volta e sentei na areia sentindo o vento bater no rosto, como se ele tivesse o poder de levar pra longe a sensação de angústia que sentia, que apagasse a cena cometida…

Acabei adormecendo lá, na areia da praia, e tive um pesadelo estranho com rostos me encarando com medo, com desaprovação  e todos eles sangravam. Eu olhava minhas mãos e estavam cobertas de sangue,  procurava nos rostos, o seu, mas eram muitos, finalmente te via ao longe com nossos filhotes. Você estava triste e eu queria ir até lá, mas os rostos não me deixavam, eles se amontoavam, me cercando enquanto você sumia e minhas mãos pingavam sangue.  Vozes me chamavam de animal, de monstro… Eu negava, eu gritava que não era um monstro, então acordei gritando e senti o seu abraço dizendo que estava tudo bem. Caí num pranto inconsolável e só sabia dizer: “sinto muito, Love…” você repetia…”eu sei, Endless…eu sei…” ficou me embalando até que eu parasse de chorar, levantamos da areia, você foi me levando pra casa. Eu me sentia zonza como se tivesse embriagada, como se as forças estivessem me faltando… “você está com febre…” te ouvir falar depois de encostar a mão em minha testa. No quarto eu via os rostos me acusando… “Não sou um monstro…” eu repetia enquanto ouvi você falar no telefone.  Ainda via os rostos. Repetia a frase e via seu rosto perto…estava sangrando… fiquei desesperada… pedia perdão a você…sentia seu abraço…mas via sangue em minhas mãos, em mim, e tudo ficou escuro e frio…

Minha boca seca denunciava a sede de acordar depois de muito tempo.  Já estava claro e a cabeça doía um pouco. Olhei pro lado e vi você com olheiras enormes, respirando pesado sem estar grudada a mim. Estranhei o meu polvinho, quando  tentei me levantar, mas a cabeça rodou sentindo uma vertigem e deitei novamente fazendo movimento suficiente para que você acordasse assustada. Te pedi calma, disse que estava tudo bem. Me olhou, me analisou e colocou a mão em minha testa. Te puxei pra mim, te abracei, senti você trêmula…”Já passou, minha vida, está tudo bem agora… já foi, viu? Já saiu de mim…” ficamos assim, agarradinhas, até que senti sua respiração normal. Fiquei me perguntando quanto tempo fiquei mal, e o quanto te dei trabalho. Beijei teu rosto todinho, cada pedaço, me sentindo mais forte por ter você ali cuidando de mim. Com o maior cuidado, saí de seu abraço e fui pra cozinha ver nossos filhotes  pedindo  desculpas a cada um deles. Segurei Plita um pouquinho, verificando se não tinha se machucado.  Miou fraquinho me fazendo sorrir. Abracei-a com cuidado, depois coloquei-a de volta no chão, quando percebi seus braços já me envolviam… “Me deixou na cama pra dar atenção a eles?E euzinha?” essa é a minha gata rainha, a dona de minha alma…”Vim fazer um desjejum pra gente, vida…” surpreendentemente você me põe no colo e me leva de volta pra cama… “Nem pensar, Madame…hoje eu cuido de você”.

“Love?…”  beijei teus olhos, tua boca… ”Vida, acorda…”  me puxou de volta pra cama…”Agora não…fica aqui vai…só um pouquinho…” fiquei te olhando. Sim, eu viveria assim em teus braços para sempre e nada nem ninguém me afastaria de você,  e os que tentassem se arrependeriam amargamente, mas você não pensa igual, e é por isso que insisto… “Love, já são nove horas” falei um pouco mais alto e me afastei bruscamente de você…” Café da manhã pra minha enfermeira favorita…” você se ajeitou na cama e eu coloquei a bandeja em seu colo, a flor azul não passou despercebida…”Onde encontrou?” perguntou com ela na mão, admirando-a, levando-a ao nariz… “Encomendei lá no mercado… chegou ontem pra te agradecer” você olhou pra mim, respirou profundamente e largou…”Você faria o mesmo por mim, afinal somos amigas”… Senti uma pontada forte no peito e respondi…” é…amigas…vou colocar comida pras crianças”… amigas, a palavra ficou rebatendo na cabeça. Quando voltei ao quarto, você já estava se arrumando… “Comprei seu perfume, já está na mala… Vou te levar no aeroporto”… “Não precisa, você ainda está convalescendo…”…”Então vou chamar o táxi…”…”Também não precisa…vou com um colega de trabalho, ele vem me pegar” então ouviu-se uma buzina. Você beijou meu rosto, pediu pra tomar cuidado e se despediu.  Incrível como fiquei sem palavras e você entendeu, nem reclamou saindo pela porta sem nem olhar pra trás. Só fui me ligar quando ouvi o carro partir.

Sua viagem demorou mais que o esperado e durante seis dias tive que trabalhar dobrado por causa dos dias perdidos. Recebi recado do boss sobre o projeto na China. A nova supervisora contratada estava trazendo novidades e me pediu para adicioná-la no MSN para conversarmos os detalhes. Glória era o nome. Depois de dias conversando no MSN, ela estava voltando e, como o boss tinha urgência, pediu-me para encontrá-la assim que chegasse da China, por coincidência, o dia em que você estava voltando. Fomos a um restaurante chinês, ela preferiu, por sorte gosto muito de frango xadrez. Me mostrou todos os detalhes sobre o projeto e quando, finalmente, terminamos já era muito tarde.  Quando nos levantamos para sair, um homem, já meio embriagado, esbarrou na minha cadeira,  derrubou a bebida em minha roupa e foi ao chão. Estado lamentável. Senti pena do coitado e ajudei-o a levantar-se, perguntei se precisava de ajuda, mas uma senhora bem distinta se aproximou e disse ser a esposa e que estava tudo bem, pediu desculpas e saiu carregando ele… “Destino cruel o dessa senhora…” foi o breve comentário de Glória e vi tristeza e mágoa nos olhos verdes…”Cada um tem o destino que merece… o destino que constrói…se ela suporta este destino é porque o quer imensamente, não acha?” disse enquanto tentava limpar o estrago na minha blusa…”Tem razão..” e fomos embora, antes deixei-a no seu apart e fui pra casa morta de saudades. Quando abri a porta você estava na sala. Give em seu colo enquanto você lia um livro. Coloquei um sorriso de mil quilômetros na boca e me aproximei pra te beijar, ao que você rapidamente se levantou e falou indignada..” caindo na gandaia enquanto estou fora, meu amor?” jogou toda a ironia na frase..” enchendo a cara com as amiguinhas? O que você pensa que sou? Te avisei que não tolero bêbados!!” e desatou a dizer as coisas mais terríveis que ouvi em minha vida…”Love, escuta…” mas você não escutava, então fiz a única coisa que me veio a cabeça: te segurei forte e te beijei a boca com raiva, emoção e paixão. Senti que correspondia. Fui acalmando a intensidade do ato, fui explorando devagar sua boca inteira e, ao final, te perguntei… ”Então? Deu pra se embriagar com o gosto de meu beijo?” te soltei e fui pro quarto.

Saí do banho, te vi deitada, mas sei que não dormia. Fui a cozinha jogar a blusa fétida no lixo, dei boa noite às crianças e voltei pro quarto, deitando do seu lado. Você virou pro outro… ”Amiga mais bravinha essa minha…” disse e te abracei por trás, te dando beijinho no ombro, no pescocinho. Você vira pra mim e me abraça apertado… ”Desculpa,  Endless…”…”Não, Love, não tenho que te desculpar de nada…você acha que aquela mulher lá na sala, que me disse coisas horríveis, é a minha amiga Love? Não… a minha Love me olharia nos olhos e perguntaria se bebi… eu responderia que não, que uma alma perdida tinha tropeçado e derrubado a bebida em mim…” enquanto falava, acariciava suas costas…””Você acreditaria porque sabe que não minto e me mandaria para a desinfetação…” nessa hora você gargalha, eu me emociono…”Essa é minha Love… a que me disse aquelas coisas é uma Love magoada…insegura…” você fica tensa…””Diz pra sua amiga,  vida… o que aconteceu nessa viagem?”…você se afasta um pouco do abraço e me olha, “Que segredo é esse que você tem que me descobre assim?”…eu faço um carinho em seu rosto e digo: “Amor…” você baixa os olhos…”É difícil falar…” …”Então eu te ajudo…olha pra mim… você ficou atraída pelo seu colega de trabalho…” você consente…”Ele te correspondeu e vocês acabaram trocando carinhos…” vi uma lágrima tentar fugir de seus olhos antes que eu pudesse impedi-la..”Surgiu um desejo forte entre vocês…ele é gentil, inteligente, bem humorado, atencioso e, o melhor, é homem…” cada palavra dita por mim era uma contração em meu peito…”Mas, na hora da entrega…” neste momento você fecha os olhos e soluça, eu te abraço mais forte…” você recuou…não se permitiu de novo…mas sei que dessa vez você chegou muito perto, porque está sofrendo mais do que das outras vezes…Love, quando o desejo acontece entre duas pessoas…só o sentimento conta…e o sentimento é cego, é guiado pela necessidade de dar e receber prazer… não desiste, Love… vai chegar o momento…e você vai ser feliz… mesmo que seja apenas uma boa de uma trepada…” eu me levanto, você pergunta pra onde vou e eu digo que não tenho sono e vou preparar um chá pra nós. Você sorri e deita de novo. Noite longa…

“Você pode, por favor, passar no pet shop pra comprar a comida de nossa filhota?… Sei, vida…eu sei…mas é que o boss inventou essa reunião no escritório….sei…sei… Love… sim, eu sei…meia hora…Por quê?…E nossa filhota?…Tá… Eu sei, vida…mas estou te pedindo…..não pediria se não fosse extremamente necessário… Tá…beijo…”.   A manhã correu assim: rápida. Recebi a sua chamada e corri pra rua da petshop. Quando entrei te encontrei olhando três gatinhos cor de caramelo… ”Podemos levar um?…” você apontou pro pequeno com mancha branca na testa, pedi ao atendente que pegasse o bichano, e, quando o fez, um reboliço aconteceu na gaiola: o filhote que estava nas suas mãos miou sofrido e tentou sair de seu colo, enquanto os outros miavam desesperados, colocando as patinhas na gaiola…” o atendente falou em tom mal humorado …“É sempre assim quando tentam levar algum…” … “Mas por quê?”você indagou já preocupada… “São filhos da mesma gata… irmãos… pode deixar, moça, daqui a um mês eles irão pra carrocinha… o chefe não agüenta mais pagar ração pra eles…” tomou o bicho das suas mãos com uma insensibilidade que me matou…. “Devolve!” gritei… “O quê?” ele, surpreso, retrucou. Teus olhos já estavam derramando lágrimas, me olhando com aquele olhar de quem diz: “não podemos deixá-los”… “Quero todos eles…” eu disse, segurando no braço dele decidida…”Pegue-os como se pegasse em nitroglicerina…Se ouvir um miado…um movimento que transpareça ser de dor…” soltei-o e ele colocou-os numa caixa e nos entregou. Você olhou pra eles, me olhou… “São lindos… parecidos com você… guerreiros lutando por quem amam…”… Acordei com essa lembrança na cabeça, de quando trouxemos os tri-gêmeos para casa. Deliciosamente, tuas pernas se perdiam nas minhas, teu hálito acariciava meu pescoço, mas eu precisava levantar, tinha vídeo conferência com o boss em uma hora e, você, o tão abençoado “call”… “Vida?…”te beijei a testa descendo para a orelha…”Vida?…”se agarrou mais em mim…” Acorda, amor… ”… Beijei seus olhos, sua boca, suas sobrancelhas, seu nariz, quando, de repente, senti um volume em minhas pernas que veio subindo e se enroscando…”Lelo?!”tua voz, grave e irritada…”Vem cá, filho” o chamei e ele miou carinhoso, se esfregando em teus braços primeiro… “Endless?!”você se virou…”Vem cá amorzinho…”peguei ele no colo…”Mamãe Love te escolheu primeiro, lembra? Era mais magrinho… Ela te ama, viu?…”fiz careta… “Mas ama as almofadas dela também…” você soltou um bufo irritado.

“Não pego mais carona nisso!!!”… gritei descendo da “cavalgadura”… Glória tirou o capacete sorrindo… “É só você pegar a carona certa, amiga…” ria à vontade. Havíamos combinado de comemorar o projeto na China que estava praticamente encaminhado. O boss nos encubia de fecharmos o contrato. Liguei para Cris e convidei-a para nos encontrar lá. Entramos. Glória pareceu um pouco desconfortável… “Não está gostando?…” ela me olhou bem profundamente… “Estou cansada demais pra rapapés…” falou ao perceber a finesse do local. Entrou quase jogando o capacete na barriga do porteiro. Eu entreguei o meu educadamente. Nos sentamos na mesa reservada e pedimos uma bebida. Ela, vinho branco (por coincidência o mesmo que você toma) e eu, um suco de morango com hortelã. Engraçado como nestes lugares chiques podemos pedir tudo ou quase. Vinte minutos e vi você entrar acompanhada de um homem. E que homem. Olhei pra ele, já diagnosticando a situação fazendo meu coração se transformar numa uva passa, pois a análise do homo sapiens era mais que satisfatória.

Deixando de lado a imagem masculina, quis buscar em teu olhar alguma resposta à minha aflição, mas você percorria a fisionomia de Glória dos pés a cabeça e teu olhar era frio. Olhou pra mim da mesma forma… “Acho que temos que nos apresentar…” eu me adiantei, afinal, o convite foi meu…” Cris, esta é Glória Andrade, colaboradora essencial na empresa onde trabalho… Glória, esta é Cris com quem divido as despesas da casa onde moramos…” apertaram-se as mãos, mas senti certa relutância de sua parte. Você segurou o baço do homem ao seu lado…”Bom, este é Roberto…”…você percebeu meu olhar de interrogação…. “Foi me buscar na última viagem…” então a ficha tinha caído e num momento pouco oportuno… “E o cardápio? Tô morta de fome…” vi Glória segurar o menu e procurar seu pedido, mas eu não conseguia dar palavra, nem me mexer…” Mirian, que acha de frango grelhado acompanhado de vinagrete e batatas assadas com arroz grego?” teu olhar foi medonho à sugestão…”Combinação estranha, essa…” não acreditei quando você falou isso. Estava sendo antipática com Glória, que te deu um sorriso maroto… “Combinação comigo só na roupa… ou na cama…” deu um gole no vinho e te encarou, ainda com o sorriso nos olhos. Não conseguia respirar direito, então fizemos o pedido e, enquanto esperávamos, a conversa rolou num clima de cortesia disfarçada. Roberto não deixava de te olhar e falava bem. De vez em quando acariciava tua mão e levava-a à boca. A conversa voltou para a gastronomia, quando  Glória de repente me diz…” A gente podia almoçar num restaurante brasileiro que conheci ontem… eles servem uma galinha ao molho pardo com feijão verde que é uma delícia. Vocês podem vir com a gente…” se referiu a você e Roberto. Vi teu olhar para ela, gelado… “Se servirem comida decente também, eu topo…” neste momento eu apertei o copo com tanta força que ele se espatifou em minha mão. Você estava tentando humilhar minha amiga e, de contrapeso, estava me humilhando, humilhando minha cultura. Senti o ardor do corte e quando percebi o estrago que fiz levantei rápido e fui em direção ao banheiro. Lavei a mão na pia, e verifiquei que o corte não tinha sido profundo, mas sangrou um bocado. Não sei quanto tempo fiquei observando meu rosto no espelho e me perguntando por que tinha reagido daquele jeito. Eu estava com raiva de te ver com aquele homem, de saber que ele tinha as chances que eu queria ter, então usei o fato de ter zombado de uma das comidas que gosto, usei o fato de você estar antagonizando com Glória sem nem mesmo conhecê-la. Glória entrou no banheiro e seu olhar era preocupado, eu diria até, carinhoso… “Deixa eu ver…” pegou minha mão…”Vamos pra uma farmácia…Você a ama…não é?” ela olhou bem dentro dos meus olhos e eles deixaram a dor transparecer em forma de grossas lágrimas…”Não posso mais esconder…ela encontrou a pessoa…eu sinto…” ela me abraçou. Senti conforto no abraço. Eu raramente falo do que sinto, só com você. Me desvencilhei do abraço, e voltamos para a mesa. Roberto te abraçava e beijava sua testa, a minha testinha linda que eu beijo todos os dias. Meu estômago embrulhou na hora, senti náuseas fortes, mas consegui me controlar… “Já pediram a conta?” você me olhou, olhou para minha mão… “Você está bem?” eu afirmei que sim com um gesto de cabeça e você perguntou… “Quer carona?” te olhei demoradamente antes de responder… “Não, vou dormir no flat da Glória… ainda temos muito a discutir antes de viajarmos pra China daqui a dois dias… Roberto já conhece a nossa casa? Leva ele lá…acho que vai gostar…te vejo amanhã…” a surpresa estava estampada em seu rosto, quando o garçom apareceu com a conta e seu amigo gentilmente se ofereceu para pagar. Fomos embora.

Quando entramos no flat, Glória me deixou a vontade e foi para o banho. Fiquei na sala. O flat era confortável, a varanda tinha vista para o parque, o mesmo que freqüentamos, mas a noite tirava minha visão de lá. Respirei fundo me perguntando se eu estava te perdendo, ou eu estava me perdendo de você. O impasse havia sido colocado num momento extremamente delicado. Senti a presença de Glória atrás de mim… “Vai ficar um pouco grande, mas acho que dá pra passar a noite…”ela me entregou um pijama, escova de dente, uma calcinha e toalha…” a calcinha é nova…comprei várias lá na China… toma um banho enquanto preparo um drink pra gente…”…”Sabe que eu não bebo…” ela segurou a minha mão e disse suavemente…”Sim, eu sei…não confia em você mesma…tem medo de se entregar…mas sei que não vai…você é mais forte que isso…e vai beber o suficiente pra relaxar e descansar…Agora, mocinha, pro banho…” soltou minha mão um pouco desconcertada, me deixando curiosa.

Fui encontrá-la na sala. Estava encostada na porta que dava pra varanda com um copo na mão. Vestia uma regata branca e um moleton rosa…” acho que agora podemos conversar…” ela disse sem que eu esperasse, mas não queria falar com ela sobre nós. Ela preparou um martini e me entregou,  me puxou pela mão e me fez sentar no sofá ao seu lado…”vou te contar uma coisa que raramente falo a alguém…acho até que nem a mim mesma eu digo… fui casada durante um ano com uma mulher…”neste momento ela olhou pra mim, depois desviou o olhar para o copo…”nos conhecemos durante um congresso em Londres… eu tinha acabado de chegar do Brasil… finalmente tinha conseguido emprego numa das maiores empresas de consultoria da Europa…iria morar em Londres…Para uma menina que aos 13 anos viu o pai matar a mãe e se matar logo depois sendo jogada numa instituição pública que cuida de menores, não é nada mal…não é auto piedade…não…tive sorte de um casal de boas condições financeiras e ajustado ter me escolhido para adoção…e eu agarrei isso com unhas e dentes…e lutei para alcançar o que tenho hoje…Bom… ela era a palestrante…me encantei…no final da apresentação fui cumprimentá-la…eu estava em outro mundo, levada pelo sorriso mais lindo que já tinha visto…trocamos contato e fomos nos conhecendo devagar… até rolar o primeiro beijo… depois foi tudo muito rápido…” deu uma pausa que diria dramática e bebeu mais um pouco…”projetamos tudo e em dois meses estávamos morando juntas…havia uma peculiaridade nela que me deixava confusa…ela sumia, um, dois dias…às vezes quase uma semana…sem deixar rastro…quando voltava era como se nada tivesse acontecido…agia normalmente como se nunca tivesse saído do meu lado…os intervalos entre estas sumidas foram ficando cada vez menores…um dia, já não aguentando mais, eu a segui… ” neste momento eu vi, pela primeira vez em seus olhos uma fragilidade infinita, mas ela não chorou…”…ela era viciada em ópio…frequentava uma casa clandestina…ela passava dias lá…se drogando…” riu nervoso nesta hora…”ela não tinha o direito de fazer isso comigo…não pelo fato de se drogar… mas pelo fato de deixar que eu descobrisse, desta maneira, que não conhecia a pessoa que eu amava e, portanto, descobrir que não amava ninguém…eu amava uma idéia…uma pessoa que construí na cabeça…” me encarou de novo…”eu amei uma pessoa que só existia para mim…perfeita… sem defeitos… fenomenal…o que estou querendo te dizer, Mirian, é que idealizar um amor não é normal…o normal é esperar que esse amor se revele… é não deixar a paixão cegar o que temos de ver realmente…não da noite pro dia…é com paciência…é colocando tijolo por tijolo…é conquistando cada espaço, com dedicação e afeto… e é assim que você é…é assim que você faz…você conquista a cada minuto sendo quem você é e conhecendo quem você ama… e eu te digo mais… você está quase chegando lá…” nesta hora eu me levantei e disse…”não…não estou…você não viu os dois?”ela foi até o bar e, enquanto preparava mais dois drinks, falou…” sim, eu vi…e vi também ciúmes…ciúmes dos grandes por parte dela…ela me identificou como ameaça…” eu discordei mais uma vez…”ela é assim mesmo, Glória…tem ciúme até de um chinelo que nem usa mais…” ela sorriu…”Não se compare a tão pouco…te disse que a paixão não deixa a gente enxergar muito longe…vou te dizer uma coisa e depois vou te deixar refletindo… você tem que acreditar no que quer… tem que parar de dizer que não tem chance… que ela é hétero e por isso não vai rolar entre vocês…ela está tentando fazer como eu fiz… idealizar um amor… está escolhendo o caminho mais fácil porque tem medo de assumir o que sente e todas as conseqüências disso… o que não pode e nem deve mais acontecer é você ter que pagar esse preço…é caro demais, amiga… você tem que decidir, mas decida rápido…antes que não haja mais o  que você possa oferecer a alguém… pensa nisso…”



Notas:



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