Pela primeira vez me senti impotente e a frustração era o resultado disso. Fui ver os bebês. Estavam tão serenos. Gian estava acordado e percebi que me olhava. Não seria possível, mas os olhinhos dele estavam abertos e me miravam diretos e vi um sorrisinho no canto da boca pra mim. Um sorrisinho lindo pra mim. Por isso que as enfermeiras o amavam, nosso menino era um galanteador. Quis tanto tocá-lo, mas não pude. Fiquei a tarde inteira ao lado deles. Estava magoada com você. Nunca me senti tão só na vida e estava odiando sentir isso. Não queria sentir pena de mim, queria odiar você por me fazer passar por isso. Prometeu que não me deixaria…  “E não te deixei…” Meu coração veio à boca, me virei rápida, mas não havia ninguém ali a não ser eu, os bebês e as enfermeiras. Mas ouvi nitidamente tua voz pronunciar as palavras. A agitação dentro de meu peito era incrível. Senti como se você me chamasse, como se pedisse pra me ver, então corri para a UTI. Jorge estava lá acompanhado de outros médicos numa movimentação estranha… — Jorge, o que está acontecendo?! – quase gritei…

– Tirem ela daqui, por favor!! – foi a ordem dele pros enfermeiros que acompanhavam a intervenção.

Antes que me colocassem pra fora vi o desfribilador trabalhar em seu corpo…

– Não me deixa!!! – gritei em desespero antes de cair numa profunda escuridão.

Sonhos… Todas as emoções vividas com você. Me sentia serena, calma… Aquecida. Me aconcheguei mais a seu corpo e recebi aquele beijo no pescoço… – — Vida… precisamos levar nossos filhos pra casa… acorda…

Ao ouvir isso, levantei assustada, olhando ao redor e estava no quarto que Jorge arrumou para que eu ficasse no hospital. Você me olhava aquele olhar que eu sabia de cor, mas estava me pedindo alguma coisa. Você se ergueu…

– Desculpa… – e vi as lágrimas escorrerem uma a uma… – Desculpa por ter demorado tanto… – e me abraçou.

Eu ainda não acreditava no que acontecia, mas me agarrei a você como nunca havia feito e, finalmente, me senti em paz…

– Linda… o que aconteceu? Ontem…

Você calou meus lábios com um beijo gostoso… Que saudades…

– Ontem eu me libertei do coma… senti em mim que você se afastava… senti tua raiva… teu desespero… não podia te deixar ir… Não sei bem o que houve… Jorge teve que me reanimar… acho que voltei rápido demais… então você não aguentou e perdeu os sentidos… depois que me senti melhor, pedi a Jorge pra me levar até você… e aqui estou…

Te olhei incrédula…

– Ainda não viu… não viu…

Você sorriu com amor intenso…

– Nossos tesouros? Ainda não… estava te esperando… como sei que adora dormir… fui paciente… mas agora podemos ir vê-los? – fez carinha de cachorro pidão.

EU…

Em casa, finalmente. Entramos, eu com Giancarlo e você com Giovanna. Os bercinhos já estavam prontos no antigo quarto de hóspedes que se tornou o dos bebês. Um mês e onze dias de nascidos. Cresciam a olhos vistos. Ficamos admirando nossas crias, abraçadas…

– Eles são perfeitos… – eu quase sussurrei para não acordá-los…

– Sim… mais que perfeitos… é incrível a importância que eles têm em nossas vidas… são nossa continuação…

Me virei pra você…

– Ter você já era um milagre… agora tenho você ao cubo… que exagero… – sorri te beijando demoradamente, quando ouvimos um espirro. Nos soltamos imediatamente perguntando quem teria sido o autor do barulho. Outro espirro, e Gian se revelou o artista…

– Será que ele está com frio? Será que está gripado?

Você se assustou com a hipótese e eu te tranquilizei, dizendo que seria impossível ele ter gripado de uma hora para a outra. Gian espirrou mais uma vez, o narizinho estava vermelho e corisando, então eu também fiquei assustada. Liguei imediatamente pra Marina… “Agasalha ele melhor… fecha as janelas para evitar corrente de ar , eu estou indo aí…” desligou e nós fizemos o que ela pediu, mas ele não parava de espirrar e começava a chorar por não conseguir dormir. Peguei ele no colo. Nem chegou em casa direito e já estava dodói. Senti um aperto no peito e deixei cair uma lágrima, você veio e nos abraçou. Eu choraminguei …

– Ele não pode estar doente… não pode… – você tentou me acalmar, mas os espirros contínuos de nosso filho não deixavam.

Marina havia chegado. Eu estava dando de mamar à Giovanna que acordara faminta e aos berros. Você segurava nosso menino que ainda espirrava. Marina se preocupou na hora…

– Ele ainda espirra sem parar… – você disse com voz chorosa.

Marina retirou um cartão da bolsa e me entregou…

– É a pediatra do Biel, melhor levá-lo lá agora… eu fico com a princesinha… – era assim que ela chamava nossa filha. Deixei uma mamadeira com meu leite na geladeira e fomos à pediatra.

Assim que entramos, vimos outras mães e seus filhos. Olharam imediatamente para nós que entramos apressadas. A recepcionista nem teve tempo de falar para aguardar-mos, e você já foi dizendo…

– Nosso filho está doente, é uma emergência… a doutora pode nos atender agora?” A cara de eto dela não passou despercebida de nós duas…

– A senhora precisa marcar…

Você se exasperou, mesmo eu pedindo para ter calma…

– Qual foi a parte de “é uma emergência” que você não entendeu?!

E sua voz alterada fez o estrago, e algumas crianças no recinto começaram a chorar. Foi quando a doutora apareceu pra saber o que estava acontecendo. E qual não foi minha surpresa quando reconheci imediatamente aquela voz e aquele rosto…

– Lúcia?

Ela me olhou imediatamente… – Mirian? – nos abraçamos…

– Deus do céu… salva meu filho…

Ela nem me olhou, disse pra recepcionista que não atenderia mais ninguém hoje. Nos levou pra sala…

– Então… – eu segurava Gian, ele ainda espirrava um pouco… – Vem cá, garotão… Pegou ele nos braços, você me olhava fazendo enormes perguntas. Lúcia se pronunciou…

– Vocês têm animais em casa?

– Seis… gatos…

Lúcia me olhou, te olhou também… – Seis gatos? – consentimos com um gesto de cabeça… – Deixa eu examinar essa coisa linda… – pôs nosso filho na maca, fez os testes de praxe… – Isso, garotão forte… – ela dizia enquanto levantava ele quando as mãozinhas agarraram seus dedos… – Ele é perfeito… – Lúcia sorria, mas você não.

Ela devolveu Gian pros meus braços, sentou e prescreveu uma receita. Me entregou…”Isso é pra aliviar a coriza e os espirros…como pode observar, ele está espirrando bem menos o que pode se caracterizar como sintoma de alergia… mas precisamos saber exatamente a o quê… – nos olhava enquanto falava para mim, tanto quanto para você… – Aconselho que não voltem com ele para casa… deixem que ele passe três dias longe e observem qualquer reação… depois destes três dias, retirem os animais da casa, aspirem tudo…limpem a casa com produtos antialérgicos e retornem com ele…  depois, tragam os gatos de volta… qualquer reação dele me liguem…a qualquer hora… – estendeu o cartão, que você pegou curiosa… – Bem, mamãe Mirian… poderia te encontrar de maneiras inusitadas, mas isso foi demais… – riu e me abraçou com cuidado para não machucar Gian… – Nos encontramos pra matar as saudades?

Olhei você que já destilava certo cinismo…

– Claro que sim… te convido pra jantar com a gente amanhã, que tal? – você saiu sem dizer palavra. Lúcia deu um riso de quem sabe tudo…

– Ainda se arriscando com as ciumentas?

Olhei bem profundamente para ela…

– A ciumenta que amo mais que tudo nesse mundo… a que me fez e faz a mulher mais feliz do mundo… – sorri sem nenhuma malícia ou desejo de responder a o que quer que fosse. Ela percebeu que eu não era mais aquela Mirian.

Eu estava aborrecida com você. Não devia ter saído de lá, devia ter ficado e mostrado para Lúcia quem é de verdade. Demorei a sair, fiquei com nosso filho nos braços, então me veio a voz de seu advogado. Existia um dentro de mim. Advogava pelo amor e me dizia do que tinha passado nos últimos 42 dias. O inesperado nascimento dos bebês. Quarenta dias morando num hospital esperando eu sair do coma..Essa alergia de Gian. E meu coração foi se derretendo até chegarem lágrimas aos olhos.

Te encontrei no carro com o braço apoiado na porta e a mão segurando a cabeça. Parecia muito pensativa. Olhei bem pra você. Estava mais magra, os olhos estavam marcados pelas olheiras. Parecia estar muito longe. Quando me aproximei, você olhou pra mim e eu não conseguia decifrar que olhar era esse. Abriu a porta para que eu entrasse. Pegou Gian de meus braços e o beijou com extremo carinho. –  Filho… tinha que vir com essa surpresinha pras mamães? – beijou-o mais uma vez, me olhou de novo. – Liguei pra Lídia… nós vamos para lá.

Apesar de não ter gostado da idéia, sabia que você tinha analisado todas as possibilidades antes de optar por esta. Suspirei conformada.

– Você vai com Gian, eu fico com Giovanna em casa. Temos que contratar uma babá temporária pra te acompanhar. – seus olhos perguntavam. – Não se preocupa, vou amamentá-lo durante o dia e deixo meu leite para a noite.

Você não disse nada e começou a dirigir. Enfim, chegamos ao apartamento de sua amiga. Ela nos esperava e demonstrava uma alegria imensa em nos receber. Pediu pra segurar nosso filho e ficou admirando ele, então você pegou minha mão e me levou pro quarto, fechou a porta e sentou na beira da cama. Me sentei ao seu lado e você, simplesmente, se deitou em meu colo e ficamos assim durante muito tempo, sem palavras. Não eram necessárias. Eu afagava seus cabelos te beijava a cabeça de quando em quando, massageava seu braço, levava sua mão livre aos lábios com ternura. Você demonstrava um cansaço profundo. Te ergui e te acomodei na cama…”Fica comigo…” tua voz manhosa, sonolenta. Te beijei o rosto inteiro, devagar, sem pressa, beijando tua boca por fim, e o sono venceu, finalmente.

– Vai ficar tudo bem, vida… Eu vou cuidar de você. — dizia, acariciando teu rosto.

Na sala, encontrei Lídia abobalhada com nosso filho. Comecei a mudar de idéia quanto a ela. Não sabia o quanto era generosa e boba. Ri ao vê-la fazendo graça  e Gian abrindo aquele sorriso.

– Você é um príncipe, espero que cresça muito rápido, acho que vou querer te namorar, viu?

Diante desta declaração eu não pude deixar de responder.

– Vai ter que pedir a mão dele primeiro e ai de você se não tiver boas intenções. — Pela primeira vez vi um sorriso voltado para mim.

– Boas não… Ótimas… ele é lindo…

Cheguei mais perto. – Puxou a mamãe Cris e se puxar outras coisinhas dela vai dar muito trabalho pras meninas… e pros meninos também, é claro.

Rimos juntas. Olhei bem pra ela.

– Lídia, eu… – ela se saiu como uma dama das desculpas que eu pretendia pedir e do agradecimento que iria fazer.

– Não se preocupa com nada, Mirian. Vocês são minha família também… é o que eu sinto.

Saí do apartamento com o coração apertado. Giovanna, a esta hora, já estaria deixando a babá enlouquecida. Depois de ter extraído de meus seios duas mamadeiras de leite, parti voando para casa. Podia ouvir os berros da entrada. Corri rápido para o banheiro, me asseei, lavando bem as mamas. Pus o roupão e fui para o quarto deles. A babá sentiu um alívio enorme quando me viu.

– Não sabia mais o que fazer. – disse se desculpando pela rebeldia de nossa niña.

– Mamãe chegou, mi corazón… – ela já fazia aquele muxoxo de manha e foi só colocar o seio diante dela e ver a voracidade como mamava.

A sensação? Indescritível. Mamava com uma força enorme. Dez minutos depois já se fartava e parava no cochilo, e logo depois voltava a sugar, até, finalmente, largar a mama. Coloquei-a no ombro batendo de leve nas costas para que arrotasse. O barulho veio forte. Rimos, eu e a babá. Uma dama, nossa filha. Dispensei a coitada e pus nossa princesa no berço.

Não sei nem como fui dormir. Acordei com o barulho do telefone insistente. Atendi, era Lídia, estava com a voz diferente, parecia nervosa.

– Vem pra cá agora, Mirian…

O tom de voz era tenso. Desliguei sem nem me despedir. Fui até Giovanna, a babá cuidava dela.

– Ainda tem leite reserva na geladeira? – ela confirmou.

Troquei de roupa e parti ao teu encontro. “O que teria acontecido?” já me rasgava em pensamentos ruins, mas mantinha a calma. Não havia de ser nada, ficava me repetindo o tempo todo. Mal Lídia abriu a porta, corri pro quarto e o que vi me deixou pasma: você me olhou com os olhos transbordando lágrimas, segurando nosso filho no colo e ele mamava. Você alimentava nosso filho com seu próprio leite. Fiquei sem ar momentaneamente.

– Ele estava desesperado e eu também… não conseguia fazê-lo parar de chorar… tentava achar o cel pra te ligar e ele chorava… então eu fiz o que nem eu mesma esperava… coloquei meu peito na boca dele para que se acalmasse e eu pudesse te ligar… ele sugou… e ficou assim…até que vi um pouco de leite escorrendo pelo cantinho da boca dele… Juro que quis desfalecer na hora…

Sentei do seu lado, aquilo era inacreditável.

– Eu te amo… muito… – disse e te beijei longamente.

Nosso menino acabava de adormecer com a boca ainda em seu seio.

– Vem com a mamãe, seu danadinho. – o peguei e coloquei na posição de arrotar. Fiquei te olhando, embevecida. Estava amamentando nossos filhos. Minha parceira… Minha mulher… Mãe maravilhosa… Espetacular… Sorri sem perceber. A felicidade era uma delícia.

O dia se passou rapidamente e eu insistia para que você jantasse comigo e Lúcia. Tentava te fazer entender que era uma maneira de agradecer, mas você estava irredutível. Não insisti mais.

Lúcia chegou às oito horas e, desde que me lembro, era mesmo muito doida. Quando entrou foi logo olhando tudo, admirando. Ficou feliz e abriu um sorriso largo.

– Mulher de sorte, você, hein?

Quis lhe dizer que ali não havia nada de sorte. Tudo fora construído com muito amor, com muita fé. Ofereci uma bebida. Tínhamos em casa, mas, diferente de outra época muito distante, nenhuma me apetecia a não ser água mineral com gás. Coloquei uma bebida forte em seu copo, abri minha água e brindamos. Ficamos nos olhando, eu curiosa e ela mais ainda.

– Lembra de tudo que houve entre nós? – ela perguntou sem olhar direto para mim.

– Lembro de tudo que não houve. – respondi sarcástica.

– É… você tem razão…nenhuma de nós duas estava bem naquele momento.

— Tivemos sorte. – sorri para ela que retribuiu imediatamente.

– Tudo o que nos unia era uma forte tendência pra música e literatura e uma atração boa, o resto era só pra descurtir a dor, a sua e a minha. foi bom…tenho lembranças muito boas.

Eu larguei a garrafa na mesa de centro e disse sem nenhum remorso.

– Tenho uma lembrança muito boa…aquela quando eu quis te bater com o ventilador na cabeça, lembra? Bebemos muito e dissemos coisas horrorosas sobre nós mesmas. Não me arrependo. Só de não ter conseguido te bater mesmo. — Rimos juntas.

Conversamos mais um pouco antes de jantar. Ela me falou das aventuras e de como chegou até aqui. Falou do relacionamento complicado com uma mulher mais velha que a estava perseguindo desde que decidiu se afastar dela. Depois do jantar, levei-a pra ver nossa filha. Ela pareceu se emocionar muito.

– São vermelhos… – acariciou os cabelos de nossa filha e desatou num choro incontido.

Não pude fazer outra coisa que não abraçá-la no intuito de confortá-la.

– Minha menina também era ruiva…

A frase me surpreendeu, pois quando falávamos sobre isso a resposta dela era sempre negativa. Não queria filhos, nunca, ela dizia.

– Se foi com dez meses de vida… não pude evitar… Deus… eu já exercia a profissão e não pude ajudar minha filha.

Ficamos abraçadas olhando Giovanna. Percebi tua presença quando o perfume se instalou no quarto. Me virei já sorrindo e indo ao teu encontro.

– Não se preocupem com minha presença, só vim pegar algumas coisas que preciso e ver minha filha.

Saiu do quarto sem nem me cumprimentar. Lúcia percebeu teu desconforto e entendeu o recado.

– Já vou, Mirian… obrigada pela noite agradável… estou aqui há mais de dois anos, mas não tenho com quem conversar muito… obrigada por me receber em sua casa, mesmo a sua esposa não gostando muito.

Olhei bem pra ela.

– Ela não é assim, Lúcia. Isso é outra coisa.

Levei-a até a porta e fui te encontrar.

No quarto, você colocava algumas coisas numa mala pequena.

– Já chamou o pessoal da limpeza para amanhã? – você perguntou sem olhar para mim.

– Já, vou com Giovanna pra casa de Marina.

Me aproximei e fui colocando algumas coisas que sabia que ia querer levar. Num momento te parei e quis que me olhasse.

– O que está havendo, Love?

Você suspirou. – O que está havendo? – devolveu a pergunta com certa aspereza. – Eu estou longe de minha mulher… de minha casa… de minha filha!

– Cris, eu entendo… – você me cortou na hora…

– Não…você não pode entender! Eu nunca fiquei longe deles! Desde que nasceram, eu estive com eles! Não me diga que entende!



Notas:



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