— Eu não posso mais… Não posso mais magoá-la a cada vez que insisto em nosso casamento! Eu desisto…

Eu pedia calma, ficamos assim até que ela se acalmou e começou a falar.

— Amo esta mulher como nunca amei ninguém na vida. Sabe como nos conhecemos?  Numa boate. Levei-a para minha casa e no outro dia sumiu sem deixar rastro, até quando a encontrei aqui em sua casa. Mas desde o início sabia que o medo dela de enfrentar um relacionamento do tipo seria difícil de superar, não achei que fosse tanto. São dois anos e eu nunca fui apresentada a nenhum dos parentes. Nunca dormi no apartamento dela e, no meu, ela fica só até amanhecer e se vai como se estivesse fazendo algo de errado. Atende os telefonemas longe de mim. Só uma vez viajamos. Em outra cidade, longe dos outros, ela se transformou. Deu sinais de que poderia encarar um relacionamento homossexual, mas isso desapareceu quando voltamos. Já perdi as contas de quantas vezes a pedi em casamento para formarmos uma família… Agora chega! Não posso magoá-la com minha frustração diante de sua recusa. Não dá mais. Foi o que disse a ela uns minutos atrás. Você entende?

Eu poderia dizer que sim e que não. Não tinha uma resposta para aquela pergunta, eu havia deixado para trás meu passado e junto com ele a minha família. Amigos. Eu não os havia enfrentado, nem você. Foi uma escolha nossa não sua, nem minha. Aceitamos assim: manter nossa vida à parte deles. Não sei como você lidava com isso, mas eu o fazia por motivos um tanto dolorosos de lembrar. Suspirei um pouco melancólica.

— Eu entendo as duas. Sinto muito que não tenham achado um entendimento.

Lúcia se livrou do abraço e me encarou triste.

— Tenho inveja de você…

Eu acariciei o rosto molhado com carinho e sorri complacente.

— Não tenha. Não pense que o que temos não nos custou grande dor e paciência. É diferente. É preciso se redescobrir, se reinventar para que aconteça o milagre, e ainda assim não é fácil. Há dias ruins. — ri nervoso — Agora se acalma e não toma nenhuma decisão sem abrir o coração com ela. Não exigir, conversar, promete?

Ela concordou com a cabeça e disse que já estava tarde e precisava levá-la pra casa, pois havia deixado o carro no prédio dela. Quando entramos você vinha com sua amiga, consolando-a. Vimos os olhares que elas trocaram: mágoa em Lúcia e medo em Lídia. Se despediram e saíram sem palavras uma com a outra.

— O que você acha? — você me perguntou enquanto deitávamos no sofá, bem agarradinhas.

— Sinceramente, eu não sei. Vamos pra cama. —  eu estava realmente cansada e preocupada com o rumo daquele casal, mas também com alguns sentimentos aflorando. A consciência do meu lixo interior vindo à tona. Algo me preparava para as turbulências da vida.

****
Passaram-se oito meses desde aquele dia. Soubemos por Lídia que o namoro delas fora interrompido, desta vez pra valer. Lídia até estava de namorado novo. Eu ainda tinha alguns momentos de apreensão sem motivos. À noite eu sempre colocava nossos filhos felinos para dormir. Give era com você. Durante os últimos dias não saia de seu lado e nós comentamos com Sílvia o fato dela andar sonolenta demais. Estava comendo muito. Marcamos a consulta e nos surpreendemos com a notícia da gravidez. Surpresa e preocupação redobrada, pois Sílvia não ficou muito contente com o resultado dos exames, nos explicando que na idade de nossa rainha o parto era perigoso, o que te deixou deveras abatida com a possibilidade, tanto que foi perguntado sobre um possível aborto. Sílvia foi categórica: o aborto seria fatal. Conversamos muito, depois de dado o diagnóstico. Durante este período ela foi tua sombra e você o conforto dela. Parecia pedir nosso apoio. Os outros felinos estavam todos meio nervosos, então resolvemos deixar que Sílvia os levasse ao sítio pelo menos até Give ter os bebês. Difícil foi convencer os gêmeos, eram muito apegados a eles. Numa noite em que tive que chegar mais tarde, ouvi o telefone tocar. Atendi prontamente, senti tua presença do meu lado enquanto eu falava com uma Lídia muito nervosa, dizendo coisa com coisa, mas entendi o principal: Lúcia tinha sofrido um acidente de automóvel enquanto voltava pra casa. Pedi o endereço e parti para lá te deixando com os gêmeos.

No hospital encontrei uma mulher desesperada que não fazia outra coisa a não ser chorar. Quando me viu jogou-se em meus braços.

— Você já a viu? Falou com o médico? — às duas perguntas ela respondeu negativamente.

Pedi a uma enfermeira que ministrasse um calmante para ela e para mim. Ficamos esperando notícias, enfim o médico apareceu.

— Vocês são parentes? — aquela pergunta me irritou.

— Somos amigas. Ela não tem parentes aqui. — respondi seca deixando o doutor desconcertado.

— Bom, ela está bem. Quebrou o fêmur esquerdo e tem um corte na cabeça. Quanto ao bebê…

Lídia interrompeu o médico, histérica.

— Que bebê? — eu pedi calma mais uma vez e ele explicou.

— O bebê inacreditavelmente não sofreu nada, apesar de ser uma gestação de seis meses.

— Quero vê-la, doutor, por favor.

O olhar de nossa amiga era tão desesperado que o médico não teve como negar.

Quando entramos no quarto, Lídia parecia não acreditar no que via. Colocou as mãos na boca reprimindo um soluço. Caminhou devagar até a cama e segurou a mão de Lúcia, acariciando-a.

— Por que quis me deixar? Por quê?

Colocou a mão suave no ventre preenchido da mulher deitada e assustou-se quando recebeu o chute do bebê.

— Ela te reconheceu… — era a voz rouca de Lúcia que acabara de acordar. As mãos agora estavam unidas.

— Ela? — a mão de Lídia voltou a acariciar o ventre concebido. Por alguns segundos se olharam profundamente e ali pude ouvir muitas palavras, mas as que saíram da boca de Lídia foram primordiais.

— Nunca mais as deixarei.

****

Saí do hospital com uma sensação estranha. As meninas se perderam por uns meses e a ameaça de perda fez com que uma delas tomasse a atitude necessária para que se reencontrassem. Lúcia havia engravidado para transferir todo o amor que não podia entregar a Lídia. No início ela havia pensado em dizer-lhe do bebê, mas um encontro com ela e o namorado no cinema havia partido o coração de Lúcia e esta havia prometido nunca mais procurá-la. Pelo lado de Lídia, esta havia procurado Lúcia depois de vê-la quando saia do cinema, mas fora completamente ignorada, sendo recebida com a maior frieza possível. Acabou desistindo de vê-la de novo, mas agora se prometiam tudo. Amor, cumplicidade, felicidade. E o que fez com que isso acontecesse? A iminência da morte. Fizeram planos de morar no apartamento de Lúcia que era maior e localizava-se próximo de um lindo parque. Meus olhos se encheram d’água lembrando quando comprei a casa na praia para que nós e nossos filhotes pudéssemos ter espaço suficiente, mas você não veio de imediato. E foram dias que gostaria de esquecer. Fora uma perda temporária e descobri que sem você nada fazia sentido. Me deu um aperto no peito e corri pra casa. Precisava te ver, pois, de repente, o medo de que isso não fosse mais possível me atingiu consideravelmente.  Eu estava delirando. O que acontecia comigo? Entrei apressada e corri pro nosso quarto. Give dormia no cesto ao lado de nossa cama e você lia um livro, recostada na cabeceira, de óculos. Meu coração veio à boca e a respiração ficou difícil. Estava tendo um ataque de pânico. Saí do mesmo jeito que entrei: rápida, indo para a varanda que dava passagem para a praia. Fiquei lá tentando respirar, tentando acalmar o coração confuso e agitado. Braços quentes envolveram meu corpo alguns minutos depois, me cobrindo com um edredom, pois não notei o frio congelante que fazia.

— Lúcia está bem? — respondi que sim num sussurro. – Lídia? — Disse que também, com a voz sufocada pelo choro que vinha.

— Se acertaram. — concluí deixando as lágrimas caírem e convulsionando num pranto necessário.  – Não me deixe nunca mais! — me virei e apertei-me em seu abraço. Você repetia as palavras “nunca mais” várias vezes em meu ouvido, até que parei de tremer e relaxei completamente ali, no meu mundo. O mundo que havia conquistado para sempre.
Abraçadas, fomos para o quarto. O tempo todo você me fazia carinho, me olhava com uma intensidade que ainda não tinha sentido. Me despiu, se despiu. Meu corpo inteirinho se arrepiou, não só pelo frio que fazia, mas pela emoção que era te ver nua. Deitamos e sua mão segurou a minha. Nos olhávamos. Queria te dizer algo que exprimisse o que ia dentro de mim, mas você tomou a iniciativa.

— Não posso te adivinhar como você faz comigo, mas posso sentir que algo não está bem. Não vou ter paciência para esperar que fale, me conhece. — deu um sorriso lindo que acompanhei embevecida. — Quero que saiba que, o que quer que seja, deixe vir, mas não deixe te levar de nós, porque somos parte de algo maior. Mesmo que uma de nós deixe de existir, esse algo se tornará maior. Perdas e ganhos, na vida que construímos, têm potencial igual por que é de verdade, é real, não são ilusões passageiras. — minhas lágrimas foram secadas uma a uma por teus dedos maravilhosos, então recebi teu corpo sobre o meu. Sabia que me tomaria agora e não poderia mais sustentar todo o fogo que se acendia em mim.

— Antes de você, os dias eram apenas os dias. Depois, eles se transformaram em uma vida após a outra, cheias das mais intensas sensações. — as palavras saiam de sua boca com delicadeza. Você pegou minha mão e levou ao coração. — Está sentindo essa pulsação acelerada? É minha alma prestes a encontrar a sua. Te quero…– disse ao me erguer para sentar em seu colo, deixando nossos sexos colados.  – Vem pra mim, amor… Deixe que minha alma te sugue a essência… Vem… — e me tomou a boca com sensualidade nos levando ao primeiro orgasmo que recebi como o mais maravilhoso de nossas vidas, pois não foram os corpos que o detonaram, mas a certeza de que nos amávamos demais. E a noite se tornou um sonho sem fim.

Acordei do jeito gostoso que sempre acordava: você inteira sobre mim, deixando o pescoço irresistível ao meu bel prazer. Encostei os lábios nele devagar e teus braços me apertaram mais, se encaixando, dizendo claramente que não sairia dali tão cedo.

— Vida? — o primeiro resmungo e depois silêncio. — Vida, temos que levar a Give na Silvia hoje. — beijei o pescoço mais uma vez, e você se mexeu e soltou mais um resmungo, beijando todo o meu rosto.

– Eu sei, mas aqui tá tão bom…

Me livrei de seu abraço te puxando pela mão. — Banho.

Nossa primogênita estava cada vez mais dengosa. Os meninos se despediram dela e foram para a escola com Bertha, a babá. Na clínica, ficamos aguardando o resultado dos exames que Sílvia fazia. Surgiu na porta com uma cara não muito boa. Sentou perto de nós e começou.

— Falta ainda um mês para que ela entre em trabalho de parto, mas não sei se conseguirá levar adiante. Os sinais vitais dos filhotes estão fracos… — respirou fundo antes de dizer.  — Temos que fazer a cesariana agora ouu arriscar…

Você levantou imediatamente.

— Faça! Não quero arriscar nada! É minha filha! — te abracei pedindo calma. Vi o constrangimento de Sílvia e você também. Pediu desculpas.

— Tudo bem, minhas queridas. Sei que não será fácil. Só quero que saibam que o risco de fazermos isso agora é menor, mas não deixa de ser um risco.

Entregamos na mão de Deus. Ali, naquela sala de espera, relembramos o encontro com nossa Give. A carinha que você fez quando, numa de nossas viagens, pediu para levarmos a gatinha siamesa franzina e maltratada de olhos grandes e azuis como o céu, que havia se enfiado em sua bolsa quando estávamos na praia. E o céu estava assim quando a enterramos junto com três filhotes que faleceram no dia seguinte. Sílvia tentava nos consolar, dizendo que um bravo gatinho ainda resistia e que precisava de nós. Teu olhar, cada vez que Sílvia se referia a ele, era frio, indiferente. Não seria difícil adivinhar que você o rejeitaria em nome de um amor eterno por nossa gata.
Mais de um mês havia se passado desde a partida de nossa menina. Tinha chegado a hora de trazer o filhote para casa. Nesse ínterim eu tentava te dissuadir da ideia de deixá-lo com Sílvia, mas estava difícil. Acabamos discutindo feio e resolvi não insistir mais. Liguei pra Marina e disse que podiam ficar com o gatinho que ainda não tinha nome. Fui te encontrar no quarto admirando uma foto onde estávamos todos juntos. Give estava em seu colo, olhos semicerrados, pois recebia seu afago no pescoço e ela adorava isso.

— Falei com Marina. — você pareceu se assustar.

— Não quero ter notícias dele, nem quero vê-lo. Sugira que o levem para o sítio. Ficaria desconfortável em visitá-las caso queiram ficar com ele na casa.

Era incrível o poder que a dor tinha de te fazer ficar dura e insensível.

— Quanto a isso não acho que podemos intervir. Seria querer demais. Elas já se apegaram a ele…

Você me interrompeu. — Então que fiquem com ele e sem mim.

Quando ia te dizer algo mais, a campainha toca. Ao abrir a porta me deparei com Marina e o filhote acomodado num cesto.

— Por que o trouxe, Marina? Cris… — ela não me deu oportunidade de dizer mais nada.

— Onde ela está? — deixou o cesto em cima do sofá onde um gatinho siamês de olhos extremamente azuis tentava fugir com miadinhos fracos.

— No quarto. — respondi, me deliciando com as estripulias do filhote rolando a cada vez que conseguia agarrar a borda do cesto. De repente uma vontade maior de tê-lo conosco me fez pegá-lo no colo e levá-lo ao quarto onde vocês estavam. E presenciei uma conversa que jamais iria esquecer. Marina te abraçava, enxugando algumas lágrimas de seu rosto.

— Achei que esse seria o sentimento de minha família para comigo, quando minha mãe morreu por conta de complicações no meu nascimento. — você olhou-a curiosa. — Sim. Minha mãe morreu no meu parto. Vivi com um sentimento de culpa tão grande pelos outros irmãos que me impedi de ser feliz durante muitos anos, até desabafar com a única pessoa que me mostrou justamente o contrário: a maluca da Mirian. — você riu, ela também. — Me chamou de injusta quando percebeu que eu pedia para ela escolher entre mim e nossa mãe. Disse que eu era o grande presente que ela havia deixado para nos confortar e nos orientar na vida, porque era isso que ela me fazia sentir todos os dias de minha vida: útil. Esse sentimento que está te corroendo, a dor da perda, é natural, mas observe, tem um serzinho todo iluminado que perdeu muito mais que nós todos e lutou para sobreviver como nunca vi antes. Ele precisa de sua família, pois já perdeu a origem junto com os irmãozinhos. Ele só pede para entrar na sua vida, pra ser amado e amar de forma igual.

Nessas últimas palavras você se desmanchou em lágrimas, e eu entrei com nosso “neto” nos braços. Ele deu um miadinho e você se ergueu imediatamente. Ele te olhou aquele olhar que conhecíamos bem azul. Miou de novo e você se aproximou para resgatá-lo de mim. Que momento indescritível. Ele te olhava o tempo todo como se esperasse você dizer alguma coisa.

— Precisamos te dar um nome, precioso. — e o apertou nos braços.

— Isso. É esse nome mesmo. — você olhou pra mim sem entender — Precioso Love,  bem vindo à família. — falei te abraçando.



Notas:



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