EU…

Quando abri meus olhos, surpreendentemente, encontrei os seus numa interrogação explícita.

— Aquela mulher foi coisa sua, não foi?

Toquei seu rosto com extrema suavidade.

— Ela não faria nada que você não quisesse.

— Eu percebi. — o silêncio perdurou até minha pergunta.

— Você não gostou? — me preocupei com a resposta.

— Sim, mas…

— Mas?

— Não gostaria de repetir, entendeu? Nunca mais. A única mulher que pode agir daquela maneira comigo é você, só você!

Aproximei mais o meu rosto do seu e respondi encantada.

— Acaba de encerrar com chave de ouro a última etapa de meu sonho. Não esperaria outra resposta de sua parte.

VOCÊ…

Segunda-feira já era por si só um dia preguiçoso, para mim estava sendo pior que isso, mais algumas horas e você estaria longe de mim outra vez. Acordei antes que você. Fiquei te olhando, procurando entender como eu havia me entregue desta maneira a alguém. Lembrei-me de nossa farra no sábado. A sua coragem em me deixar a mercê daquela mulher. Não minto que me excitei ao extremo, mas não me senti muito confortável. A cena só teve efeito porque podia ver o fogo que te consumia me vendo dar bola para ela. E a loucura de me ter ali mesmo, meu Deus! Sorri. Maluca… E no motel então? Me esgotou ao ponto de sentir um desconforto ao sentar no outro dia. Pior foi a zoação das meninas no almoço de domingo ao perceberem a bendita marca arroxeada em meu pescoço. Agora eu sentia a grande tristeza que era esperar tua partida e imaginar quando teria você perto. Quando você me faria de novo e de novo experimentar as mais incríveis sensações. Um nó na garganta. E teus olhos me encontram assim, com a dor estampada nos meus.

— Vem cá… — me apertou nos braços como só você. –Te amo, minha vida. Estamos quase lá. Mais alguns meses e estaremos bem juntinhas. Enquanto isso vai preparando a caixa de mensagens e o coraçãozinho pras surpresinhas que ainda pretendo te fazer.

— Quer levantar agora? — perguntei desejando que sua resposta fosse não.

— Os meninos já foram para a escola?

— Não tem aula hoje. — disse já com a cara enfiada em seu pescoço.

— Que bom. Podemos ficar mais na cama, passar o dia inteirinho juntas, passear com eles, fazer algo divertido. — me beijou de maneira extremamente sensual. — Vamo aproveitar a sua folga, começando pela melhor parte…

E me amou como nunca mais o fosse fazer…

FINALMENTE, A VOLTA…

VOCÊ

E foi como prometeu. Os meses passaram-se com nossos telefonemas, skype e as doidices que cometias fazendo o tempo passar então o dia finalmente chegou.

“Ela está voltando.” Este pensamento me invadia de quando em quando com uma força total. Mais um dia e a tortura acabaria. Já tinha encomendado algumas surpresas para você. Isso me assustava. Eras a rainha das surpresas, o que eu poderia fazer de tão extraordinário que pudesse competir? Mil coisas na cabeça e o coração quase em taquicardia. Verifiquei mais uma vez a lista de providências e resolvi tomar um banho. Quantas horas nos separavam da felicidade completa? Apenas doze e levamos dez meses e onze dias para alcançarmos esta distância. O telefone me tirou dos sonhos e corri apressada em atendê-lo na expectativa de ouvir sua voz.

— “Cristiane, quem fala é o boss… Ouça com atenção…”

Depois destas palavras me vi jogada de supetão na irrealidade completa, como se acabasse de ter desligado a TV depois de um filme emocionante e romântico e encarado a dura sensação de me sentir humana. Não entendi mais o que me diziam. Jatinho… Antecipou a viagem… Carona com os israelenses… Sequestro… Terroristas… Inteligência americana… Mortos… Levados como reféns. Via Marina, Sílvia, Lúcia, Lídia. A TV ligada. Os nomes dos que faleceram. Meus olhos tensionados na tela. O primeiro nome: Glória. Meu coração querendo sair pela boca. Projetista sequestrada. Teu nome. Olhei a todos estranhada. Meus lábios não conseguiam pronunciar o que eu sentia. A esperança. Você estava viva, mas até quando?

****

Uma semana tentando compreender tudo, tentando sair da caixa fechada onde me puseram atada em correntes e lançada ao mar. Assim me sentia: um Houdini que nunca aceitou o fracasso, nem de si, nem de ninguém. Não queria afundar. Não podia. Entrei em contato com todos os órgãos que poderiam me ajudar no caso, mas eles me davam sempre a mesma resposta: esperar. Já estava de malas prontas para partir em busca de meus direitos, quando a campainha tocou. Seu chefe estava parado na nossa porta. Olhar sério, me cumprimentou e perguntou se poderia entrar um pouco.

— Fique à vontade. — respondi sem entusiasmo.

Ele sentou no sofá, pôs a mão no bolso do paletó e, o que retirou de lá colocou em minhas mãos.

— Encontraram isso num corpo carbonizado que foi desovado na frente da embaixada americana em Telaviv.

Deus, eu sabia o que era. Eu não precisava olhar para saber que encontraria o seu cordão de ouro com o pingente. As letras F e L entrelaçadas. E Houdini finalmente fora vencido.

A CERIMÔNIA…

Não permiti parentes que não fossem Marina, Sílvia, Lúcia e Lídia, Jorge (nosso “parteiro” e padrinho de um gêmeo), seu chefe e Bertha.  Cuidei de tudo pessoalmente, e o encargo mais difícil foi ter que contar a nossos filhos o que acontecera.

Gian esperava o que quer que fosse. Me olhava com atenção e resignou-se com as respostas dadas, apesar de me comover ao enxugar minhas lágrimas com mãozinhas frias depois do que fora dito e me revelar em redondas palavras movidas ao choro fraquinho que tudo ficaria bem. Giovanna. Ah, nossa menina… Perder lhe era praticamente inaceitável. O verde dos olhos era duro como que irritado. Estava com raiva e eu não poderia, ali, naquele momento, dissipar-lhe a reação. Nada disse, nem chorou, e ficou assim todo o tempo do funeral.

Por fim, levamos suas cinzas para casa e, lá, no mar que você me entregou um dia, eu e nossos filhos largamos teu corpo para que descansasse em paz. Giovanna foi a primeira a se retirar. Gian segurou minha mão e ficou até que decidi, também, voltar pra dentro de casa. Ele mantendo a segurança que ameaçava me deixar. Olhei-o com amor, pois nele via uma atitude que seria sua. Nunca me abandonaria. Em seus olhos que eram meus, recebi a mensagem que sempre nos dissemos: vamos continuar mais fortes, mesmo que um de nós não esteja mais. Abracei-o fortemente, beijando-lhe com intensidade.

— Te amo, meu menino… Muito…

O grito ecoou nítido até pra meu sono de calmantes. Corri sem demora para o quarto dos gêmeos. Nossa menina se debatia na cama chorando e gritando ao mesmo tempo. Abracei-a com força, pedindo calma, mas ela continuava a se debater, te chamando num esforço inútil. Ela te chamava de mentirosa, quando percebi que nossa menina ardia em febre.

No hospital…

— Cris? — a mão quente de Lúcia me tocou o ombro. — Ela está bem. Está dormindo e a febre cedeu. Precisa buscar ajuda. Tenho um amigo de mestrado, um psicólogo infantil. Pega… — me entregou o cartão.  — Você também, olhe para suas mãos, elas tremem, você inteira está tremendo. Vai estourar a qualquer momento e, assim  sendo, o estrago será muito maior.

Eu não queria ouvir aquilo, de repente meu corpo não parecia mais obedecer. Vi Lídia se aproximar e com ela Marina e Sílvia. Me seguraram pelo braço e, junto com Lúcia, me levaram até um quarto.

— Onde estão me levando? Não quero! Não quero ficar aqui! Quero voltar para casa!

Vi as lágrimas nos olhos de Lídia. “Sinto muito.”, foram as palavras dela antes de eu sentir a picada de agulha e cair num sono profundo.

****

Acordei sobressaltada, sendo amparada por Lídia. Lúcia havia entrado neste momento seguida de um médico.

— Como ela está? — Lúcia se dirigiu a Lídia.

— Acabou de acordar assustada.

Minha cabeça dava voltas, e eu não conseguia ainda concatenar ideia alguma até que meus sentidos foram normalizando e me lembrei de tudo o que aconteceu. Olhei-as com olhar rancoroso. Lídia baixou a cabeça e Lúcia me encarou firmemente como era de se esperar.

— Bem, me parece que voltou a ser a velha Cris. Se criticar vai te fazer bem, o faça. Quer nos processar? Fique à vontade. Tente fazer de novo e vai acontecer a mesma coisa! Até você parar de se sentir a dona da dor inteira! Até você enxergar um palmo a mais diante dessa sua prepotência em achar que é a maior coitadinha do mundo! Nós a perdemos também!

Lúcia saiu acompanhada de Lídia que a seguiu preocupada, antes que eu pudesse me recuperar das palavras marcantes. O médico apenas assistia. Olhou-me com curiosidade e com a imparcialidade de quem nada tinha a ver com o caso. Aproximou-se e, sem me pedir permissão, me examinou o pulso, os batimentos cardíacos.

— Bom, Cristiane, você está aqui há três dias. Tem sido monitorada constantemente e, acredito, o nível de estresse baixou consideravelmente. A sonoterapia ainda é uma ciência nova, mas tenho certeza que te ajudou a permanecer no eixo. Se você tivesse entrado em colapso, como fatalmente aconteceria se Lúcia não tivesse feito a loucura que fez pondo em risco sua licença médica, tua recuperação seria muito mais difícil, dolorosa e, principalmente, demorada. O que são três dias para quem poderia passar três meses ou mais longe de tudo? — anotou alguma coisa no prontuário e saiu sem mais palavras.

****

Estava pronta para sair do hospital. Não permiti a presença dos gêmeos lá. Não queria que me vissem do jeito que estava. Meu corpo estava reagindo bem. Não sentia mais como se fosse sumir de repente, nem dormência nas pernas, braços, nem os tremores. Mas meu peito ainda se comprimia cada vez que me lembrava de você. Respirei fundo e saí pronta para ter uma conversa séria.

— Cris? — Lídia abriu a porta surpresa.

— Onde está sua esposa? — minha voz saiu fria e sem emoção, vi a consternação e o desânimo num suspiro cansado dela.

— Cris, olha, nós…

Me adiantei até ela e disse.– Onde está sua esposa? — falei mais baixo e tentando não me irritar.

— No quarto de Carol. — respondeu, mas antes de eu ir ao encontro de Lúcia avisou. –Veja bem o que vai dizer, Cristiane. É a mulher que eu amo, é a minha vida.

Diante daquelas palavras meu coração se condoeu um pouco, um pouco de inveja, mas passou logo e fui até o quarto indicado. A porta estava entreaberta, empurrei-a com cuidado, pois era o quarto de Carolzinha a filha delas. Minha afilhada podia estar dormindo. Vi Lúcia com as mãos apoiadas no berço olhando para uma menininha de quase três anos, de cabelos loiros como os de Lídia, mas olhos negros como os seus. A garotinha apertava uma bola de pelúcia e tentava dizer a palavra do objeto.

— Hora da soneca mocinha e não tente me enganar com essas palavrinhas babentas. Já basta sua mãe que consegue me tirar até do juízo. Te amo, meu amor, dorme.

Beijou-lhe a testa e se virou, me encontrando parada na soleira da porta.

— Podemos conversar? — o sorriso amargo aflorou em seu rosto.

— Como recusar? Estou em suas mãos. Veio me dizer que eu fui estúpida…

— Sim! — me aborreci novamente. Ela continuou com o riso no rosto, mas junto com ele uma lágrima escorreu sorrateira. — Estúpida o suficiente para colocar a sua felicidade e da sua família em risco só pra ajudar uma teimosa, prepotente e mal agradecida!

Fui até ela e abracei-lhe com carinho, logo após senti o abraço de Lídia que, zelosa, me seguiu para se certificar de tudo. Ficamos num abraço único e cheio de afeto. Era minha família. Então ouvimos uma vozinha chamar.

— Dinda! — caímos na gargalhada e fizemos festa pra “galeguinha” mais sabida do mundo.



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